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ToggleTrancafiados em um porão sem janelas nem entradas de ar, eles dormiam amontoados e trabalhavam diuturnamente na produção de cigarros falsificados. O elevador de acesso ficava escondido dentro de um contêiner, onde a vigilância era constante. Parecia um filme de terror, mas era a vida real de 17 trabalhadores paraguaios e um brasileiro em Triunfo (RS), a 80 km de Porto Alegre, descoberta durante operação em outubro de 2021.
O dono do negócio era Moacir José Machado, procurado por contrabando, corrupção de menor, organização criminosa e, desde então, trabalho escravo e tráfico de pessoas. Além de estar na lista de foragidos da Interpol, Machado passou a integrar também a “lista suja” do trabalho escravo, atualizada no dia 05/10 pelo Ministério do Trabalho com os nomes de 95 novos empregadores responsabilizados por submeter 685 trabalhadores às formas contemporâneas de escravidão.
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Entraram na “lista suja” também pecuaristas fornecedores dos maiores frigoríficos do país (como JBS, Minerva, Marfrig e Masterboi), madeireiros, cafeicultores, aliciadoras de trabalhadoras do sexo, empresários da construção, entre outros – alguns deles financiados pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), que usa recursos públicos para oferecer empréstimos a juros mais baixos que os de mercado.
Com a atualização, o cadastro totaliza 183 empregadores autuados por auditores-fiscais do trabalho nos últimos anos e incluídos após exercerem o direito de defesa em duas instâncias na esfera administrativa. Confira a relação completa neste link.
Os 18 resgatados durante a Operação Tavares – realizada por auditores-fiscais do trabalho, policiais federais e fiscais da Receita – foram aliciados no Paraguai com a promessa de receberem R$ 200 por dia para atuarem em um depósito cerealista no interior gaúcho. Porém, ao chegarem ao aeroporto de Porto Alegre, eles foram levados a um posto de combustíveis e seguiram, vendados e com os celulares confiscados, até o subsolo onde viviam confinados para fabricar cigarros.
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Até o resgate, foram 20 dias sem ver a luz do sol e em condições desumanas. Eles compartilhavam um único dormitório com cinco treliches, uma beliche e uma cama, e o serviço era de 24 horas por dia, com os trabalhadores divididos em dois turnos.
Eles almoçavam com as máquinas funcionando, segundo relataram aos fiscais. Os mantimentos eram deixados próximos à entrada do elevador por uma pessoa desconhecida. Como havia apenas pequenos exaustores para a renovação do ar, o risco de intoxicação com cola, lubrificante das máquinas e pó de fumo era elevado, além do “altíssimo” risco de incêndio, em razão de fiações expostas.
Após a operação, os trabalhadores não quiseram esperar a indenização trabalhista nem o abrigo para migrantes e retornaram ao Paraguai, abrindo mão dos valores das rescisões contratuais a que tinham direito. A Repórter Brasil não conseguiu contato com Machado até a publicação desta reportagem.
A indústria do fumo foi um dos setores com mais resgatados na nova “lista suja”, com 76 trabalhadores ao todo, ficando atrás apenas da pecuária (85) e da produção de carvão vegetal (81). Na sequência aparecem extração de madeira (59), cultivo de cana-de-açúcar (44) e indústria de roupas (44).
Trabalhadoras do sexo
Pela primeira vez, a “lista suja” do trabalho escravo inclui empregadores que submeteram profissionais do sexo à escravidão contemporânea. O caso aconteceu em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, afetando 16 vítimas, todas elas travestis ou mulheres transexuais.
Vindas em sua maioria do Norte e Nordeste, as jovens eram atraídas por posts em redes sociais sob a promessa de trabalho digno, transformações cirúrgicas no corpo, hospedagem e alimentação. Contudo, nada era como imaginavam: a dívida delas começava no momento em que pegavam o ônibus em direção a São Paulo, e aumentava a cada suspiro.
A investigação teve início em 2017 a partir da denúncia de duas vítimas que conseguiram fugir dos locais onde eram exploradas. Ela eram obrigadas a trabalhar todos os dias entre 19h e 3h, submetidas a um cenário de servidão por dívidas, em razão de ser cobrado um valor dobrado pela passagem, alimentação da viagem e deslocamento até os alojamentos administrados pelos aliciadores. Isso sem contar despesas que continuavam aparecendo durante a estadia em Ribeirão Preto, como a compra de entorpecentes e perucas.
Além disso, as trabalhadoras pagavam entre R$ 50 e R$ 60 por dia para viver nas pensões, independentemente de irem ou não trabalhar, tendo que arcar com a limpeza do local e alimentação. Caso não conseguissem pagar, dormiam na rua.
Os aliciadores faziam a administração do trabalho e cobravam comissões, determinando o preço e onde o programa aconteceria, tirando uma porcentagem que poderia chegar à metade do valor. As dívidas das mulheres transexuais e travestis aumentavam também por conta de “financiamentos” com os cafetões para procedimentos estéticos.
Dos 11 aliciadores investigados pelo caso, apenas 2 cafetinas foram incluídas no cadastro até o momento: Agda Dias da Silva e Nicole Castro (que na “lista suja” aparece como Antônio Alenisio da Silva). Caso as trabalhadoras desrespeitassem as regras, eram julgadas em “tribunal do crime”, sendo submetidas a punições físicas, morais e econômicas. De acordo com a investigação, há registros de suicídios, desaparecimentos e homicídios.
“Máquina” de moer gente
“Era uma máquina de moer gente”, define André Menezes, procurador do Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo. Ele afirma que há três núcleos de acusados, respondendo pelos crimes de tráfico de pessoas, redução à condição análoga à de escravo, exploração sexual e organização criminosa. O número de vítimas pode chegar a 38.
Menezes lamenta a demora no processo criminal, o que vem abrindo espaço para a impunidade. “Aquilo que terminaria com os réus já presos, virou um processo comum, que se arrastou e é difícil de tocar”, diz. O procurador conta ainda que, em razão da lentidão do Poder Judiciário, algumas testemunhas não foram encontradas e algumas vítimas pediram para retirar seus nomes ou deram depoimentos diferentes à Justiça, o que pode enfraquecer a decisão. O processo caminha para sua primeira sentença nos próximos meses.
O advogado de Nicole Castro nega as acusações. “Segundo informações de testemunhas e até mesmo por parte das investigações policiais, as supostas vítimas compareciam para trabalhar de forma livre e espontânea, sendo garantido livre acesso à pousada e sem qualquer retenção de objetos, valores ou documentos”, afirmou Alexandre Gonçalves de Souza, em nota (confira na íntegra). A Repórter Brasil entrou em contato com a advogada de Silva, mas ela não se manifestou.
Pecuaristas com grana do BNDES
Além do maior número de trabalhadores resgatados, a pecuária também lidera o ranking por empregadores na nova “lista suja”, com 15 empresários, alguns deles fornecedores da JBS, Marfrig e Minerva, os três maiores frigoríficos do país. Entre eles está Carlos Roberto Tavares de Oliveira, responsabilizado por submeter à escravidão contemporânea 11 trabalhadores, entre eles um adolescente de 17 anos.
O resgate ocorreu na Fazenda Bom Jesus, em Piranhas (GO), em outubro de 2021, quando os integrantes da força-tarefa de fiscalização se depararam com um caminhão transportando pessoas na carroceria, em pé e sob chuva. Descobriram então que parte do grupo vivia em um barracão de lona, armado sob chão batido e à beira de um córrego. Quatro trabalhadores já moravam ali e outros sete eram recém-chegados da Bahia.
Não havia banheiros nem local para fazer as refeições com acesso à água potável. Os trabalhadores tinham sido contratados para roçar o pasto e aplicar agrotóxicos, mas não receberam qualquer equipamento de proteção. Alguns dos resgatados relataram também que tiveram que comprar as próprias ferramentas de trabalho.
A propriedade de Oliveira – que tem outras oito fazendas, segundo o Incra – forneceu gado para a JBS em 2018 e para o frigorífico Minerva entre 2019 e 2020, antes, portanto, do resgate dos trabalhadores. Mas outra propriedade de Oliveira em Pinhara, a Fazenda Duas Irmãs, seguiu fornecendo animais para unidades da JBS e Minerva até janeiro e março de 2021, respectivamente. Parte do gado criado ali teve origem na Fazenda Bom Jesus, onde viviam os 11 trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão.
Além do relacionamento com as grandes empresas de proteína animal, Oliveira é cliente do BNDES, com cinco contratos de empréstimo vigentes junto ao banco público, totalizando R$ 9,7 milhões. O mais recente é de 2020, no valor de R$ 2,5 milhões. O pecuarista tem também uma dívida tributária de mais de R$ 3,7 milhões.
Diretrizes do BNDES
O BNDES possui diretrizes que vedam o financiamento de empregadores condenados por trabalho escravo. Em nota, o banco informou que, no momento da contratação dos empréstimos, a documentação dos empregadores estava regular. Porém, assim que os nomes foram incluídos na “lista suja”, o banco “imediatamente” suspendeu as contratações e liberações de recursos. “O BNDES esclarece que não compactua e condena a prática de trabalho escravo.”
A reportagem procurou Oliveira por meio de seus advogados, mas não teve retorno. O espaço permanece aberto. Já a Minerva afirmou que bloqueou o pecuarista após a atualização da lista. A JBS informou que bloqueia imediatamente os fornecedores da “lista suja”, que a medida já foi tomada em relação a Oliveira e que as compras mencionadas na reportagem ocorreram antes da inclusão do pecuarista no cadastro. Leia os posicionamentos na íntegra.
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Na nova “lista suja” há um pecuarista reincidente. O produtor Rafael Saldanha Junior entrou pela primeira vez no cadastro em 2016, após o resgate de 12 trabalhadores na Fazenda Guaporé, em São Félix do Xingu (PA). Dois anos depois, em setembro de 2018, fiscais do trabalho resgataram três trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão em outras duas propriedades na mesma cidade: Boa Sorte e Anzol de Ouro.
Os três resgatados trabalhavam em outras fazendas da família Saldanha no Pará antes de chegarem a São Félix do Xingu. Uma delas era a Fazenda Primavera, localizada em Curionópolis (PA). Centenas de animais saíram dessa propriedade para o abate em unidades da Marfrig e da JBS em Tucumã (PA) entre 2018 e 2019, meses após o mais recente flagrante de trabalho escravo nas propriedades da família.
Além das violações trabalhistas, Rafael Saldanha Junior acumula também infrações ambientais. Entre 2001 e 2017, foi multado sete vezes pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) – a mais recente no valor de R$ 6,3 milhões pelo desmatamento de 631 hectares na Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo do Xingu. A unidade de conservação foi a mais pressionada pelo desmatamento no primeiro trimestre deste ano, segundo análise do Imazon.
Procurado, o advogado de Saldanha, em nota, negou as acusações e destacou que seu cliente não foi o responsável pela contratação dos trabalhadores, reiterando que não há “nenhum elemento a sequer presumir a prática do crime de trabalho escravo por parte de Rafael” (leia a íntegra).
Já a Marfrig disse que, quando negociou com Saldanha, o produtor não constava na lista e que desde março de 2020 não compra animais de produtores do Pará. A JBS afirmou que o pecuarista estava bloqueado em seu sistema desde o ano passado.
No caso do pecuarista Olenio Cavalli, incluído na “lista suja” pelo flagrante de trabalho escravo na Fazenda Vitória Régia, em Uruará (PA), em setembro de 2019, o fornecimento de gado para JBS, Marfrig e Masterboi se dá de forma indireta. Os animais foram criados na propriedade palco do trabalho escravo, mas encaminhados para outra antes de chegar ao abate nos frigoríficos.
Durante a operação de fiscalização, os fiscais resgataram dez trabalhadores, sendo duas mulheres, que atuavam como cozinheiras – uma delas sequer recebeu pelo serviço, segundo os auditores-fiscais. Cinco trabalhadores dormiam em barracos de lona e palha no meio da mata, e não havia equipamentos de proteção nem registro em carteira.
Em agosto de 2019, um mês antes do flagrante de trabalho escravo, a Fazenda Vitória Régia havia encaminhado 270 animais para engorda na Fazenda Bananeira, Apucarana e São Pedro, em Marabá (PA). Essa mesma propriedade tem um longo histórico de fornecimento de gado para abate nos principais frigoríficos do país. Depois de setembro de 2019, foram enviados centenas de animais para unidades da JBS em Marabá e Altamira (PA), para a Marfrig em Tucumã (PA), além do frigorífico Masterboi, em São Geraldo do Araguaia (PA).
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Cavalli disse à Repórter Brasil que discorda da inclusão de seu nome na “lista suja”, que se tratou de “armação” da força-tarefa de fiscalização, pois algumas das pessoas que estavam no local seriam parentes de seus funcionários e estavam fazendo uma visita a eles, e não trabalhando na propriedade. Ele diz que não estava na fazenda no momento do flagrante e que à época estava em tratamento de saúde e que o encarregado pela propriedade então era o gerente da fazenda. “A mulher dele estava de touca na cozinha e os fiscais forçaram ela a dizer que era funcionária, mas ela não era”, afirma. “Paguei tudo em 2019, as multas rescisórias, o hotel, mas agora recebi novo auto de infração sobre os mesmos fatos. É uma fábrica de multas”, diz. Veja o posicionamento completo.
A Masterboi preferiu não se pronunciar. A Marfrig informou que o pecuarista não fornece animais diretamente à empresa. Já a JBS disse que todas as compras ocorreram antes da inclusão de Cavalli na “lista suja” e reafirmou que o bloqueio dos fornecedores “é imediato assim que o CPF do produtor aparece na lista”.
A pecuária é o setor econômico com o maior número de vítimas de trabalho escravo no Brasil. De 1995 a 2021, foram 17,2 mil trabalhadores resgatados, ou 30% dos 57,6 mil, segundo dados do Ministério do Trabalho, sistematizados pela Repórter Brasil e Comissão Pastoral da Terra.
A “lista suja”
Prevista em portaria interministerial, a “lista suja” inclui nomes de responsabilizados em fiscalização do trabalho escravo, após os empregadores se defenderem administrativamente em primeira e segunda instâncias.
Os empregadores – pessoas físicas e jurídicas – permanecem listados, a princípio, por dois anos. Eles podem optar, contudo, por firmar um acordo com o governo e serem suspensos do cadastro. Para tanto, precisam se comprometer a cumprir uma série de exigências trabalhistas e sociais.
Apesar de a portaria que prevê a lista não obrigar a um bloqueio comercial ou financeiro, ela tem sido usada por empresas brasileiras e estrangeiras para seu gerenciamento de risco. Isso tornou o instrumento um exemplo global no combate ao trabalho escravo, reconhecido pelas Nações Unidas.
Em setembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a constitucionalidade da “lista suja”, por nove votos a zero, ao analisar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 509, ajuizada pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc).
A ação sustentava que o cadastro punia ilegalmente os empregadores flagrados por essa prática ao divulgar os nomes, o que só poderia ser feito por lei. A corte afastou essa hipótese, afirmando que o instrumento garante transparência à sociedade. E que a portaria interministerial que mantém a lista não representa sanção – que, se tomada, é por decisão da sociedade civil e do setor empresarial.
O relator destacou que um nome só vai para a relação após um processo administrativo com direito à ampla defesa.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea no Brasil: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de se desligar do patrão); servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas); condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida); ou jornada exaustiva (levar o trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).
Daniel Camargos, Hélen Freitas e Poliana Dallabrida | Repórter Brasil
* colaboraram Isabel Harari e Diego Junqueira.
** O texto foi alterado pela Repórter Brasil às 13h do dia 7 de outubro de 2022 para inclusão do posicionamento do BNDES.