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Ditadura teve até “comissão” para incinerar livros, filmes, revistas e discos

Decreto de 1970 autorizava a queima de obras. Aeroportos e terrenos baldios tiveram “cerimônias”
Vitor Nuzzi
Rede Brasil Atual
São Paulo (SP)

Tradução:

A cerimônia era formal, no depósito de lixo do Departamento de Limpeza Pública da prefeitura de Porto Alegre, durante a ditadura. Em 13 de outubro de 1975, autoridades se reuniam para cumprir mais uma atividade patriótica. No caso, a incineração de aproximadamente 3 mil revistas.

Outra equipe se reuniu na manhã de 27 de janeiro de 1977 no Aeroporto Internacional de Brasília, com tarefa semelhante. Talvez mais intensa. Afinal, segundo o relatório, foram 3 mil quilos de filmes (436), videotapes, revistas/jornais (1.262), livros (890), fitas magnéticas, discos e “cortes de filmes”. Todo esse material teve como destino o incinerador do aeroporto.

Decreto de 1970 autorizava a queima de obras. Aeroportos e terrenos baldios tiveram “cerimônias”

Pixabay
Segundo o relatório, foram 3 mil quilos de filmes, videotapes, revistas/jornais, livros, fitas magnéticas, discos e “cortes de filmes”.

Tripé da proibição

Era também dessa maneira, além da censura direta, que a ditadura lidava com produções culturais e veículos de comunicação. Vários dispositivos e determinações tinham como base o Decreto-lei 1.077, que completou 50 anos em janeiro. Assinado pelo general-presidente Emílio Garrastazu Médici e pelo ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, o decreto avisava que “não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos costumes”.

Segundo o governo ditatorial, a norma “visa a proteger a instituição da família, preserva-lhe os valôres éticos e assegurar a formação sadia e digna da mocidade”. O DL 1.077 evidentemente não foi o único dispositivo legal, mas ajudou a fortalecer a “armadura” montada com o AI-5, em 1968. O termo é da historiadora Beatriz Kushnir, que em 2004 lançou o livro Cães de Guarda (Fapesp/Boitempo), em que esmiúça o funcionamento da censura no Brasil até a Constituição de 1988.

A autora cita um “tripé” de normas da ditadura que de alguma maneira sustentou os trabalhos dos censores. O Decreto 20.493, de 1946 (Regulamento do Serviço de Censura de Diversões Públicas do Departamento Federal de Segurança Pública), a Lei 5.536, de 1968 (censura de obras teatrais e cinematográficas e criação do Conselho Superior de Censura) e o próprio Decreto-lei 1.077.

Plano subversivo

Além dos supostos atentados à moral, havia publicações que “insinuam” o amor livre, ameaçando a família brasileira, dizia o decreto de 1970. Tão ou ainda mais grave, certos meios de comunicação obedeceriam “a um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional”.

O aviso de que todo esse vasto material imoral e subversivo teria o fogo como destino estava no artigo 5º, item II. Sem contar possível responsabilização criminal e multa, os infratores estavam ainda sujeitos “à perda de todos os exemplares da publicação, que serão incinerados a sua custa”.

É verdade que não havia muito critério no processo de triagem do que iria ou não para as fogueiras morais da ditadura. Na dúvida, ia tudo. A lista de Brasília, por exemplo, tinha até a gravação de um show da cantora Elizeth Cardoso, que apesar do epíteto de “Divina” não escapou das chamas. Junto foram 20 cópias de uma apresentação de Tom Jones, além de Ray Charles, Trini López e um programa com o nome de Sambão. Não se discriminava gênero musical.

Os livros incinerados, por seus títulos, tinham conteúdo sexual. Destacam-se 204 exemplares de O Último Tango em Paris (1973), escrito por Robert Alley depois do filme estrelado por Marlon Brando e Maria Schneider – que havia sido proibido no Brasil. Já na categoria revistas/jornais, foram queimados 450 exemplares d´O Pasquim, publicação alternativa de grande circulação na época, e sete da revista Playboy, edição italiana.

Houve até a formação de “comissões de incineração”, para dar conta da tarefa. Em 7 de junho de 1972, por exemplo, comissão designada pelo Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), apresentava relatório para detalhar atividades: Trabalhos da 1ª Comissão de Incineração Ano de 1972. Todo esse material está disponível no Arquivo Nacional.

Cerimônia no terreno baldio

O relatório apresenta o material arquivado no setor, mas não deixa claro se tudo foi para o fogo. O SCDP tinha 6.566 revistas (sendo 3.960 de uma só edição da Veja, número 15, de 18 de dezembro de 1968, logo depois da edição do AI-5). 6.968 discos (5.549 compactos e 1.419 LPs), 630 filmes. E até 52 agendas Vozes 1969, apreendidas por conter “pensamentos e mensagens” nocivos à segurança nacional.

Esse mesmo colegiado se reuniu solenemente em Brasília, em um terreno baldio “situado em local distante desta cidade”, das 10h às 13h de 1º de março de 1973, para cerimônia de incineração. Além de seus três componentes, estavam presentes três integrantes do Corpo de Bombeiros. O repertório, como sempre, variado, conforme conta no Diário Oficial da União, edição de 10 de julho de 1972: desde Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, de Zé do Caixão, ao desenho animado Scooby-Doo e pelo menos um episódio de O Gordo e o Magro. Até edições do Canal 100, que se celebrizou por imagens de futebol.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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