Já superamos a marca dos 120 dias desde o início do isolamento social. A vida mudou bastante; nosso ritmo cognitivo e de movimento corporal, nossa carência afetiva e de contato físico aflora como se fôssemos estrangeiros em nossa própria terra. O futuro tornou-se uma tela em branco onde projetamos nossos medos e nossas fantasias camufladas de esperanças reais. O mundo jamais será o que foi antes porque nós mudamos para sempre.
Como dizia o velho Marx, apenas em sociedade podemos sentir-nos sozinhos. O isolamento social emoldura a atomização típica do ambiente urbano pós-industrial. Ao remover do cotidiano a proximidade, o contato direto, a pandemia realçou como nossa individualidade é eminentemente social. No outro nos encontramos; e é nele também que nos perdemos. O coronavírus faz banquete desta ambiguidade.
Pesquisa recente do Datafolha mostrou que, entre março e junho de 2020, aumentou o número de pessoas com muito medo de serem contaminadas (de 36% para 47%). No mesmo período da coleta, diminuiu bastante o grau de isolamento social (de 21% para 12%). Esta contradição é apenas aparente.
Após quase 15 semanas de quarentena, os sinais do cansaço começam a aparecer. A impaciência vai crescendo conforme as limitações de mobilidade desmontam nossa identidade. O café com os amigos, a corrida em grupo, os jantares naquele restaurante favorito… até o sofrimento de se levantar para ir à academia parece menos penoso do que fazer alongamentos na sala de estar.
Em seguida, aparece outro estado psíquico comum em isolamentos duradouros motivados por uma ameaça externa persistente: a complacência. O custo de permanecer em casa distorce a nossa percepção quanto aos riscos de exposição ao contágio. As estatísticas veiculadas na imprensa vão ficando mais abstratas e mais distantes. Ficamos mais autoconfiantes e passamos a reduzir mentalmente o risco de nos tornarmos vítimas da Covid-19. As falas de Bolsonaro e do prefeito Itabuna (BA) não deixam dúvidas. Afinal, muita gente vai morrer mesmo, e daí?
Com efeito, a impaciência turbina a complacência numa causação circular que empurra as pessoas para fora de casa. Desnecessário dizer que o comportamento negacionista da nossa liderança mínima – negativa, vale dizer – no Alvorada joga nitroglicerina neste processo. A reação dos governadores no sentido de afrouxar gradualmente as regras de isolamento e reabrir setores em que as aglomerações são tão típicas mostra quão contagioso é o vírus da impaciência-com-complacência.
A dinâmica das quarentenas requer uma boa percepção de temporaneidade (timing, no inglês) das políticas públicas. Se começar muito tarde, o sistema de saúde entra em colapso antes que medidas possam ser tomadas para ampliar a capacidade de atendimento. Se começar cedo demais, o afastamento social sofre relaxamento prematuro, isto é, antes de se atingir o pico do contágio. Em ambos os casos, o sistema colapsa, mesmo com a nova capacidade de atendimento construída. Infelizmente, os obstáculos não param por aqui.
Rovena Rosa/Agência Brasil
Reabertura do Horto Florestal após flexibilização da quarentena da covid-19, na zona norte do Rio
Émile Durkheim definiu como fato social qualquer força social ou cultural de mobilização coletiva (e inconsciente) que é apenas sentida quando se resiste a ela. Em sua coluna na Bloomberg, Tyler Cowen refletiu sobre um novo fato social: o excepcionalismo americano no lockdown.
O país vem enfrentando uma quarentena ioiô: reaberturas seguidas por maior restrição e elevação das taxas diárias de contágio. Segundo Cowen, a complacência seria reforçada por um fenômeno de rede: eu me permito correr maior risco se os outros também estiverem se expondo mais.
Esta valentia de rebanho é uma variante do comportamento de manada, em que a ausência de alternativa (TINA, em inglês – There Is No Alternative ) leva ao medo de perder uma oportunidade (FOMO, em inglês – Fear Of Missing Out). Se os dados estão lançados, que mal há em passear no shopping ou fazer aquele churrasco com 70 amigos?
As cenas de pessoas nas ruas, nos parques, nos bares do Leblon podem tornar sua vida pior em comparação com a dos seus pares. A economia comportamental tem um amplo catálogo de distorções cognitivas motivadas por autointeresse. Mediante processos complexos e crônicos, a nossa mente busca regras simples de decisão. Dentre eles, o viés de autoconfirmação costuma ser péssimo conselheiro, ao nos fazer acreditar que os riscos são menores do que eles realmente são.
Esta percepção reduzida de risco afeta a realidade do isolamento social, alavancando o contágio do vírus em sua luta pela sobrevivência. A esperança vai-se reduzindo com a extensão da quarentena e a forma indisciplinada com que vimos lidando com ela em praticamente todas as esferas sociais e políticas, a despeito de todas as evidências em contrário.
Podemos realmente aguardar uma quarentena ioiô permanente, até que uma vacina não apenas seja desenvolvida, mas produzida em escala grande o suficiente para chegar ao hemisfério sul. Até lá, viveremos a formação distorcida de expectativas baseadas em convenções sociais. Estas são fortemente influenciadas pela visão de mundo e pela experiência individual recente (ou dependência de trajetória).
O primeiro aspecto tem a ver com o viés negacionista com respeito à pandemia. Pesquisa recente mostrou que a Covid-19 fez mais vítimas nos municípios em que Bolsonaro foi o mais votado. A fidelidade ideológica (ainda que difusa) a Bolsonaro pode explicar parcialmente a desobediência às recomendações dos técnicos do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde.
O segundo aspecto é a autoconfiança dilatada que projeta a imunidade atual sobre o futuro. A elevada exposição ao risco pela coletividade eleva as chances de uma crise de perdas alavancadas, na forma de recorrentes colapsos do sistema de saúde. J.M Keynes e Hyman Minsky mostraram a importância da política econômica em moderar as distorções na formação de expectativas em períodos de bonança que conduziam à formação de bolhas de ativos baseadas no endividamento privado.
No caso das medidas de enfrentamento da pandemia, a ausência de um comando central com credibilidade e transparência fomentou a descoordenação de medidas em todos os níveis de governo, com respostas tardias e insuficientes.
Sem um farol pelo qual se orientar, cada indivíduo deve dar a sua quota de contribuição a um problema de decisão coletiva. E assim, sob o efeito dos vieses comportamentais, a descoordenação se dissemina e o “cada um por si” vira a norma.
Para isso, uma boa dose de confiança mútua seria necessária para compensarmos, de forma comunitária, a inépcia federal. Contudo, a deterioração do capital cívico da sociedade brasileira foi reforçada pelos maus exemplos das elites política e econômica em meio à pandemia. Em particular, salientamos a “amoralidade dos laços familiares” de Bolsonaro, como definiu Edward Banfield em seu The Moral Basis of a Backward Society, de 1958.
A pandemia nos vitima no momento em que nossas lideranças políticas são as menos competentes para lidar com um desafio desta monta. Não bastará pedir a cada cidadão que pergunte “não o que seu país pode fazer por você, mas o que você pode fazer por seu país”. Quando as estatísticas abstratas se tornarem aflição familiar concreta, o pânico tenderá a se instalar com a mesma potência das manadas. Tudo o que vivemos até aqui não passará de uma boa lembrança. Já disse o poeta, tristeza não tem fim…
André Roncaglia é professor de economia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e pesquisador associado do Cebrap.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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