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Do desenvolvimento econômico a nova Constituição: o que esperar do talibã 2.0?

Um Talibã mais sábio, mais viajado e conhecedor de mídia social se esforçará para evitar os muitos erros terríveis de sua regra de 1996-2001
Pepe Escobar
Paris

Tradução:

O anúncio dos nomes dos ministros do gabinete do novo governo interino do Emirado Islâmico do Afeganistão, pelo porta-voz dos Talibã Zahibullah Mujahid, em Cabul, já provocou grande tumulto: conseguiu enfurecer os dois lados, o OTANistão woke,[i] e o Estado Permanente (orig. Deep State, lit. “Estado Profundo”[ii]) dos EUA.

É um gabinete formado só de homens, predominantemente pashtuns (há um uzbeque e um tadjique), prêmio à velha guarda dos Talibã. Os 33 membros do gabinete de governo do Afeganistão são Talibãs.

Mohammad Hasan Akhund – que presidiu a Rehberi Shura Talibã, ou Conselho de Líderes, por 20 anos – será o primeiro-ministro interino. Para todas as finalidades práticas, Akhund é considerado terrorista pela ONU e pela União Europeia, e está sob sanções do Conselho de Segurança da ONU.

Não é segredo que Washington considera Organizações Terroristas Estrangeiras [ing. Foreign Terrorist Organizations] algumas facções dos Talibã; e que os Talibã carregam uma sanção especial como organização “Terrorista Global”. 

Sem apoio popular, Talibã nunca teria ganhado força para retomar poder no Afeganistão

É crucial salientar que Nimatullah Akhondzadeh, Líder Supremo dos Talibã desde 2016, é Amir al-Momineen (“Comandante dos Crentes”). Não pode ser primeiro-ministro; seu papel, como líder supremo espiritual, é fixar orientações para o Emirado Islâmico e mediar disputas – incluídas as disputas políticas.

Akhundzada distribuiu uma declaração na qual se lê que o novo governo “trabalhará muito para manter as regras do Islamismo e a lei da sharia no país” e garantirá “paz, prosperidade e desenvolvimento duradouros”. Acrescentou que “o povo não deve tentar deixar o país”.

O porta-voz Mujahid teve alguma dificuldade para dizer e reforçar que o novo gabinete é apenas um governo “interino”. Implica que um dos próximos grandes passos será criar uma nova Constituição. Os Talibã “tentarão trazer pessoas também de outras partes do país” – implicando que é possível que permaneçam abertas posições para mulheres e xiitas, mas não no nível mais alto do governo.

Abdul Ghani Baradar, co-fundador dos Talibã, que até aqui tem estado ocupadíssimo em tarefas diplomáticas, como presidente do gabinete político em Doha, será primeiro-ministro interino. É cofundador dos Talibã em 1994 e amigo muito próximo do Mulá Omar, o primeiro a chamá-lo de “Baradar” (“irmão”). 

Talibã que retorna ao poder não é o mesmo dos anos 1990. Realidade e China se impõem

A indicação de Sirajuddin Haqqani para o posto de Ministro do Interior interino foi saudada por uma previsível torrente de histeria. Afinal, o filho de Jalaluddin, fundador da rede Haqqani, um dos três vice-emires e comandante militar dos Talibã, que tem terrível reputação, tem a cabeça posta a prêmio ($5 milhões!) pelo FBI. A página do FBI, de “Procurado”, para Sirajuddin Haqqani não é o que se poderia definir como prodígio de inteligência: não sabem quando e onde nasceu, e que fala pashtun e árabe.

Esse talvez seja o principal desafio para o novo governo: impedir que Sirajuddin e os jovens que o seguem ajam como selvagens medievais em áreas não pashtuns do Afeganistão, e, sobretudo garantir que os Haqqanis rompam quaisquer conexões com grupos jihadistas. Essa é condição sine qua non imposta pela parceria estratégica China-Rússia, em troca de apoio político, diplomático e para desenvolvimento econômico.

A política exterior será bem mais acomodatícia. Amir Khan Muttaqi, também membro do gabinete político em Doha, será ministro de Relações Exteriores interino, e terá Abas Stanikzai como vice. Stanikzai é favorável a que se criem relações cordiais com Washington e a garantir direitos religiosos às minorias afegãs.

Mulá Mohammad Yaqoob, filho do Mulá Omar, será ministro da Defesa interino.

Até aqui, os únicos não pashtuns são Abdul Salam Hanafi, uzbeque, indicado para o posto de segundo vice-primeiro-ministro; e Qari Muhammad Hanif, tadjique, é ministro de Assuntos Econômicos, posto muito importante.

Um Talibã mais sábio, mais viajado e conhecedor de mídia social se esforçará para evitar os muitos erros terríveis de sua regra de 1996-2001

Imagem: Screengrab
O novo primeiro-ministro afegão, Mullah Mohammad Hassan Akhund, é amplamente acusado de terrorismo.

O Tao de se manter paciente

A Revolução Talibã já chegou aos Muros de Cabul – que vão sendo rapidamente cobertos de branco e pintados com inscrições em signos Kufic. Numa dessas inscrições lê-se que “Para haver sistema Islâmico com independência, é preciso superar testes e manter-se paciente”.

É quase lição taoísta: lutar pelo equilíbrio rumo a um “sistema islâmico” real. Oferece visão crucialmente decisiva do que a liderança Talibã pode estar buscando: dado que a teoria islâmica admite a evolução, o novo sistema afegão será necessariamente único, bastante diferente do sistema do Qatar ou do Irã, por exemplo.

Na tradição jurídica islâmica, seguida direta ou indiretamente durante séculos por governantes de estados turco-persas, não é legítimo rebelar-se contra governante islâmico, porque a rebelião cria fitna (sedição, conflito).

Esse já foi o fundamento da destruição da “resistência” fake no Panjshir – liderada pelo ex-vice-presidente e agente da CIA Amrullah Saleh. Os Talibã tentaram até negociações sérias e enviaram ao Panjshir uma delegação de 40 intelectuais estudiosos do Islamismo.

Talibã foi patrocinado pela CIA na Guerra Fria e hoje tomou poder no Afeganistão

Mas a inteligência dos Talibã estabeleceu que Ahmad Massoud – filho do legendário Leão do Panjshir assassinado dois dias antes do 11/9 – operava sob ordens da inteligência francesa e israelense. E isso selou o destino de Ahmad: não estava só criando fitna, era agente estrangeiro. Seu parceiro Saleh, líder de fato da “resistência”, fugiu de helicóptero para o Tadjiquistão.

É fascinante observar que há paralelo entre a tradição jurídica Islâmica e o Leviatã de Hobbes, que justifica governantes absolutistas. O Talibã hobbesiano: eis farto tópico de pesquisa para a Think-tankelândia dos EUA.

Os Talibã também seguem a regra segundo a qual vitória na guerra – e nada mais espetacular que derrotar o poder combinado da OTAN – legitima poder político absoluto, embora não se descartem alianças estratégicas. Já assistimos a isso, em termos de como os Talibã políticos moderados, com base em Doha, já estão acolhendo os Haqqanis – negócio extremamente sensível.

Abdul Haqqani será ministro interino de Educação Superior; Najibullah Haqqani será ministro de Comunicações; e Khalil Haqqani, até aqui ultra-ativo como chefe interino da segurança em Cabul, será ministro para os Refugiados.

O que será das mulheres que eu conheci no Afeganistão agora que o Talibã voltou ao poder?

O passo seguinte será muito mais duro: para convencer as populações educadas urbanas nas grandes cidades – Cabul, Herat, Mazar-i-Sharif – não só da legitimidade dos Talibã, conquistada em combate; mas também de que esmagarão as elites urbanas corruptas que saquearam a nação ao longo dos últimos 20 anos.

A lista completa dos 33 indicados. 

E tudo isso, ao mesmo tempo em que se inicia algum processo de interesse nacional crível, para melhorar a vida dos afegãos médios, sob novo sistema Islâmico. Deve-se observar, porque será fator decisivo, o tipo de ajuda prática e financeira a ser oferecido pelo emir do Qatar.

O novo gabinete tem elementos de uma assembleia tribal pashtun (jirga). Assisti a algumas dessas jirgas e é fascinante ver como funciona. Todos se sentam em círculo, para evitar qualquer hierarquia – mesmo que só no plano simbólico. Todos têm direito de manifestar opiniões. Assim se caminha para forjar alianças necessárias.

As negociações para formar o novo governo estavam sendo conduzidas em Cabul pelo ex-presidente Hamid Karzai – crucialmente importante: HK é Pashtun, de um pequeno clã Durrani, os Popalzai – e Abdullah Abdullah, tadjique e ex-presidente do Conselho para Reconciliação Nacional. Os Talibã não lhes deram atenção; acabaram por escolher efetivamente o que foi decidido pela própria jirga.

Os pashtuns são extremamente firmes em tudo que tenha a ver com defender as próprias credenciais islâmicas. Creem que seu ancestral fundador mítico, Qais Abdul Rasheed, converteu-se ao Islã ainda em vida do Profeta Maomé, e os Pashtuns então se tornaram os mais fortes defensores da fé em todo o mundo.

Qais Abdul Rasheed. Imagem: YouTube 

Não aconteceu bem assim na história. A partir do século 7º, o Islã permaneceu concentrado na região de Herat, no oeste; no legendário Balkh, no norte; para o norte até a Ásia Central e para o sul entre Sistan e Kandahar. As montanhas do Hindu Kush e o corredor de Cabul a Peshawar resistiram contra o Islã durante séculos. Cabul de fato ainda era reino hindu à altura do fim do século 11. Passaram-se cinco séculos até que as terras pashtuns centrais se convertessem ao Islã.

Islã com características afegãs

Para resumir uma história muito complexa, os Talibã nasceram em 1994 sobre a fronteira – artificial – entre o Afeganistão e o Baluquistão paquistanês, como movimento de pashtuns que estudavam nas madrassas em Deobandi, no Paquistão.

Todos os líderes do Talibã afegão mantinham conexões muito próximas com partidos religiosos paquistaneses. Durante a jihad contra a URSS, nos anos 1980s, muitos desses Talibã (lit. “estudantes”) em várias madrassas trabalhavam lado a lado com os mujahideen para defender o Islã no Afeganistão contra os infiéis. Todo o processo foi canalizado pelo establishment político de Peshawar: sob a supervisão do ISI Paquistanês, com enorme impulso que vinha da CIA, um tsunami de dinheiro e futuros jihadistas que fluíam da Arábia Saudita e de todo o mundo árabe.

Quando finalmente tomaram o poder em 1994 em Kandahar e em 1996 em Cabul, os Talibã emergiram como grupo não uniforme de clérigos de baixo escalão e refugiados investidos numa espécie delirante de reforma afegã – religiosa e cultural –, quando se puseram a implantar o que viam como Emirado Islâmico salafista ‘puro’.

Vi lá mesmo como a coisa funcionava, mas, por demente que fosse o funcionamento, converteram-se numa nova força política no Afeganistão.

Os Talibã eram muito populares no sul, porque prometeram segurança, depois da sangrenta guerra civil de 1992-1995. A ideologia islamista totalmente radical veio depois – com resultados desastrosos, especialmente nas grandes cidades.

Mas não no interior do país, que ainda vivia em tempos de agricultura de subsistência, porque a visão social dos Talibã refletia apenas a prática social afegã rural.

Os Talibã instalaram um Islã Safista de estilo século 7º combinado ao código Pashtunwali. Enorme erro foi a aversão que manifestaram contra o sufismo e a veneração de locais sagrados – práticas extremamente populares durante séculos no Afeganistão Islâmico.

Ainda é muito cedo para dizer como o movimento Talibã 2.0 se movimentará no tabuleiro de xadrez emergente e alucinantemente complexo da integração da Eurásia.

Mas internamente, o movimento Talibã é hoje mais inteligente, mais viajado, mais consciente da ação das mídias sociais e parece mais consciente de que o grupo não se pode permitir os mesmos terríveis erros de 1996-2001.

Deng Xiaoping traçou o quadro no qual se inscreveria o socialismo com características chinesas. Os Talibã 2.0 ainda têm pela frente o grande desafio geopolítico de modelar efetivamente algum desenvolvimento sustentável de um Islã com características afegãs.

Pepe Escobar é jornalista.

Notas dos tradutores

[i] Sobre “woke” – “O Oxford English Dictionary, que é atualizado trimestralmente, expandiu a definição de “woke”, online e na próxima edição impressa atualizada. Apesar de a palavra também ser, há anos, um particípio passado do verbo “(to) wake,” os negros norte-americanos têm usado o termo para descrever aquele que tem “consciência social e política” [ou é pressuposto como tal].

No website, o dicionário define o termo como “alerta à injustiça na sociedade, especialmente ao racismo”. Oxford observa que a palavra, mais recentemente, tornou-se “muito mais frequente no uso dos falantes norte-americanos em geral”, o que levou os especialistas de Oxford a acolher a definição da palavra também como adjetivo.

“O significado original de woke como adjetivo (e, antes, como ‘quem acorda mais cedo’) era simplesmente ‘acordado’, ‘desperto’ ou ‘bem informado’ em sentido político ou cultural” – explica o dicionário. “Ao longo da década passada, esse significado foi catapultado para o uso social geral, com a específica nuance de ‘alerta para a discriminação racial ou social e para a injustiça’, popularizado na letra da canção de 2008, ‘Master Teacher’ de Erykah Badu, na qual as palavras ‘I stay woke’ servem como refrão; e, mais recentemente, mediante a associação com o movimento Black Lives Matter, especialmente nas mídias sociais.”

O dicionário observa que não é novidade que a cultura e o vocabulário dos negros sejam adotados por não negros que absolutamente não compreendem nem conseguem avaliar o contexto que subsiste por trás das palavras e expressões. Por esse motivo, o programa de “consulta popular”, do Dicionário Oxford [ing. OED Appeals Program está atualmente buscando casos em que a palavra woke tenha sido usada no sentido de “socialmente consciente” antes de Badu, em 2008. (Em 1962, o autor negro William Melvin Kelly usou o adjetivo “woke” na acepção de “bem informado, atualizado”, num glossário de expressões de gíria das comunidades negras, em artigo do New York Times.)

“Woke” é a palavra derivada da gíria das comunidades negras norte-americanas a chegar mais recentemente aos dicionários. Há outras. Em fevereiro de 2017, Merriam-Webster acrescentou ao seu dicionário o substantivo “shade” [tonalidade], para substituir “color” [cor] de pele. [De Huffington Post, 2017, aqui traduzido] NTs.

[ii] Sobre Deep State (lit. “Estado Profundo”) – Já há algum tempo temos optado por traduzir a expressão por “Estado Permanente”. Depois de muito discutir, chegamos a um consenso: “Afinal de contas, o tal Deep State (i) não é ruim por ser profundo: é ruim por ser eterno, permanente, imutável, inalcançável pelas instituições e forças da democracia; e além disso, (ii) nem ‘profundo’ o tal Deep State é: ele vive à tona, têm logotipos, marcas e nomes na superfície, é visível, portanto; mesmo assim se autodeclara “profundo”?! Não. Ele que se autodeclare o que queira. Nós o declaramos “Estado Permanente” (e anotamos nossos motivos, aqui, em nota dos tradutores (NTs).


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Pepe Escobar Pepe Escobar é um jornalista investigativo independente brasileiro, especialista em análises geopolíticas e Oriente Médio.

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