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Do ódio ao inimigo

Maria José Silveira

Tradução:

Quando temos um inimigo – e estamos em luta contra esse inimigo – suspendemos a crença de que nele há um ser também capaz de algo bom. Abstraímos suas características de ser humano como nós. Passamos a vê-lo como um ser achatado, sem família, sem sentimentos, sem uma vida que, para ele, certamente é tão preciosa quanto, para nós, a nossa. Sua única dimensão é o mau.

Maria José Silveira*
1 a ah odioNa guerra, em uma revolução armada, essa visão caolha torna-se necessária. Sem ela, o soldado, o combatente, torna-se incapaz de levantar a mão para fazer o que tem que ser feito. É uma necessidade vital para seja lá quem for que estiver em uma luta de morte com um inimigo, seja ele qual for. É preciso estar focado nessa necessidade, e abstrair qualquer outra dimensão que o inimigo possa ter. Como se um mecanismo natural acompanhasse a própria nomeação de um grupo de pessoas como inimigas, transformando-as imediatamente em seres unidimensionais.
O problema é que essa visão maniqueísta necessária para uma situação de guerra não se contenta com o seu lugar. Ela vai se espalhando, se espalha, e quando você se dá conta já se espalhou para várias outras instâncias. Tudo é oito ou oitenta. Tudo é contra ou a favor. Tudo é claro ou escuro. A ambiguidade não pode ser aceita. A dúvida menos ainda. A mudança no modo de pensar, ainda que pequena, passa a ser um perigo. E assim, o companheiro que em certo momento quis exercer seu direito de pensar diferente pode ser também enquadrado como inimigo. Aquele intelectual que disse coisas não muito claras em momentos que exigem clareza é desacreditado. O escritor que não fala dos temas que verdadeiramente interessam não merece ser lido. Pessoas estão morrendo. Companheiros estão sendo torturados. Não há tempo para separar o joio do trigo. Ou é isso ou é aquilo. E pronto: tá acabado.
Esse tipo de imposição é praticado por qualquer grupo em combate. Pelos dois lados. É da natureza dos enfrentamentos. Não há escape.
No entanto, mesmo aí, mesmo em guerra, é também necessário que haja limites. Pertencemos à sociedade humana que historicamente vem tentando controlar sua própria desumanidade, e para isso estabelece acordos, regulamentos e contratos sociais que impõem limites e definem crimes de guerra. Mesmo no embate de vida e morte, é preciso respeitar o prisioneiro. É preciso dizer não à tortura e à carnificina. É preciso estabelecer matizes para que, ao abstrair a humanidade do inimigo, não corramos o perigo de perder a nossa. Não caiamos na selvageria.
E eis que, então, a guerra termina, a luta acaba. Provisoriamente ou não, passamos a viver em paz. Em tempos de construção/reconstrução, essa visão maniqueísta – tão vital antes – não faz mais sentido. Tem que ser extirpada. Mas como extirpar algo que, em um momento, foi impresso com o rigor de vida e morte nos corações e mentes?
Se, como afirmou Clausewitz, o general prussiano que melhor a definiu, “A guerra é a continuação da política”, depois que ela termina, volta-se à política, com suas alianças e tentativas de administração dos diversos interesses das classes sociais. Volta-se às contradições e à luta de classe que, ao se acirrar, levou à guerra que terminou. A guerra termina, mas a política, a luta de classes, não. Continuam de outra forma. A forma da tentativa de convivência, do diálogo, da escuta das diferentes forças sociais.
Penso nos nossos anos de militância contra a ditadura. Sobretudo de 1969 ameados dos anos 70, os tempos mais acirrados. Estávamos em guerra. Ainda que os considerados inimigos de um lado – o nosso – fôssemos poucos e tivéssemos uma força absolutamente desigual, a violência foi brutal contra nós. O que fomos, então, obrigados a fazer naquele momento? Abstrair qualquer consideração sobre a humanidade desse inimigo. O policial armado tinha filhos? Era um bom homem para sua família? Era um bom filho para seus pais? Não acreditávamos nisso. E se podemos dizer que a realidade nos dava razão, em relação a executores e mandantes convictos da ditadura, como um Sergio Fleury e um Garrastazu Médici – para citar dois nomes que encarnam até a raiz do cabelo o que era a parte da cabeça mandante e a parte do braço executor – havia também, como acontece o tempo todo, os que por ignorância, precisão ou completa ingenuidade e alienação, estavam do lado inimigo.  Não os resolutos cumpridores de ordens, não os da espécie dos que banalizam o mal, mas aqueles em que – caso fosse possível abandonar a abstração para vê-los em sua concretude – reconheceríamos um ser humano. Mas isso não era possível. No momento de enfrentamento, isso não é possível. Em graus maiores ou menores, não nos foi possível escapar da visão maniqueísta da situação de conflito armado e aberto. Estávamos lá, abstraímos a condição humana do inimigo e, passado aquele momento, tivemos que nos forçar a ser outra vez capazes de recolocá-los em sua concretude – menos os que, à maneira de um Fleury ou um Garrastazu, não mereciam esse esforço de nossa parte.
É então – no momento de reconstrução – que damos conta do estrago que a visão maniqueísta pode fazer quando já não é mais imprescindível.
Quanto tempo é necessário para aceitar ver em todas suas dimensões aquele que foi considerado digno de ser morto? Para voltar a rever o amigo que preferiu não pensar como nós? Quanto demora para que se possa ler sem preconceitos o livro daquele autor pequeno burguês? O filme daquele cineasta que não tomou partido? A tese daquele intelectual que não conseguiu ser claro? Quanto demoramos para voltar a ser capazes de ver as pessoas do outro lado de forma mais redonda, mais completa, tanto sua capacidade de fazer o mal quanto sua capacidade de fazer o bem, por mais restrito que seja esse bem? Para voltar a aceitar conviver com um ser humano com todas suas múltiplas dimensões?
Falei em guerra e combate porque é aí que esse tipo de comportamento se explicita. Quero falar da política que, nesses momentos de paz, acontece em níveis bem menos exaltados, bem mais comuns. E do comportamento que também se manifesta nos conflitos do dia-a-dia, nas minúsculas guerras de nosso cotidiano, quando essa visão maniqueísta do mundo é muitas vezes – e facilmente – repetida por nós e nossos preconceitos.
Veja, então, o que está acontecendo entre nós. Veja como estamos extrapolando para o plano do cotidiano o epíteto de “inimigo”. Veja como não suportamos quem não está do nosso lado. Mais até do que nos 21 anos de ditadura que já vivemos – e na resistência e reação a ela – nunca o ódio de inimigos foi tão abrangente e dividiu tanto o nosso país, acirrado pela tática golpista e pela mídia. Destamparam o caldeirão da luta de classes. Seu caldo entornou e está dividindo amigos, dividindo familiares e parentes. Não estamos em guerra, mas agimos quase como se estivéssemos. Nos próximos anos, teremos que enfrentar retrocessos terríveis em quase todas as áreas (se não todas). Dos avanços conseguidos farão pó. Se perpassando tudo isso continuar esse clima de ódio no país, será ainda mais penoso conviver com tantas contradições e conflitos. Que calamidade ter chegado a isso!
 
Maria José Silveira, colaboradora de Diálogos do Sul, é goiana e mora em São Paulo. É formada em Comunicação e Antropologia, e mestre em Ciências Políticas. Foi sócia-fundadora da Editora Marco Zero e trabalhou na Cosac&Naify Edições. Tem vários romances publicados, entre eles “A Mãe da Mãe de sua Mãe e suas Filhas”, com o qual recebeu o Prêmio Revelação da APCA, 2002, “O Fantasma de Luís Buñuel” e “Guerra no Coração do Cerrado” e “Paulicéia de Mil Dentes”. Escreve também para jovens e crianças.
 


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Maria José Silveira

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