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Do Quênia de 2013 ao Brasil de 2020: uso de dados das redes está acabando com democracia

Estamos diante de um processo eleitoral importante para eleger prefeitos e vereadores. Como realizar o debate eleitoral?
Paulo Cannabrava Filho
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

A internet é algo que apaixonou o mundo. Um verdadeiro fenômeno revolucionário, com a possibilidade de oferecer uma comunicação horizontal, sobretudo democrática, possibilitando o encontro entre velhos amigos, a descoberta de novas amizades. Mas, de repente, a gente percebeu que estamos diante de uma arma de guerra, tão mortífera como qualquer outra arma de guerra.

Aquilo que servia para unir pessoas passou a ser o pomo da discórdia e passou a não só separar as pessoas, como colocá-las umas contra as outras. O amigo de ontem foi, hoje, transformado num demônio, agente do mal a ser exterminado.

Facebook, WhatsApp, principalmente, mas também Instagram, Twitter e, claro, o YouTube, em maior ou menor medida, passaram a ser utilizados como instrumentos de propaganda político-ideológica e, para os incautos, fator de desagregação social. Para os criadores, essas plataformas funcionam como verdadeiras máquinas de fazer dinheiro. Vejam com que rapidez eles subiram nas listas de bilionários da revista Forbes.

Estamos diante de um processo eleitoral importante para eleger prefeitos e vereadores. Como realizar o debate eleitoral?

Reprodução: Pxhere
Aquilo que servia para unir pessoas passou a ser o pomo da discórdia e passou a não só separar as pessoas

Origens

Tudo começou há menos de uma década quando, no Quênia, a Cambridge Analytica realizou experiências de manipulação de redes sociais para fins eleitorais ou projetos de desestabilização política. 

Atuou nesse país nas eleições de 2013 e de 2017, contratada pelo presidente Uhuru Kenyatta, que se elegeu em ambas as votações. 

Em 2015, atuou nas eleições da Nigéria, contratada por um bilionário local apavorado com a possibilidade de vitória do candidato muçulmano Muhummadu Buhani. Ele gastou US$ 2 milhões com a Cambridge Analytica, mas perdeu a eleição assim mesmo.

Aprimoramento

A experiência mas importante da Cambridge Analytica foi realizada em junho de 2016 no plebiscito realizado na Inglaterra para decidir sobre ficar ou sair da União Europeia. 

Com anterioridade, a empresa se apoderou dos dados de milhões de cidadãos britânicos e, pelas redes sociais, tratou de induzir o voto para deixar a União Europeia. O Brexit, neologismo de Britain e exit.

Nesse mesmo ano, em novembro, a companhia elegeu Donald Trump nos Estados Unidos. Antes, atuou na eleição parlamentar de meio de mandato para eleger republicanos com vistas a ter maioria no Congresso. Satisfeito com os resultados, atuaram em processos eleitorais ou de desestabilização em mais de 60 países.

Israel, hoje um estado teocrático, gostou do que viu e criou a empresa Archimed Group com a mesma finalidade de ganhar muito dinheiro vendendo os serviços de manipulação das redes para fins eleitorais. A empresa israelense atuou nas eleições presidenciais de Togo, República Democrática do Congo, Nigéria e Tunísia. 

Controle

Esses episódios de manipulação da rede têm levado governos a adotarem medidas de controle, afetando a liberdade de uso e a horizontalidade, restringindo a democracia na internet. Por ora, 25 países na África estão impondo medidas restritivas com vistas a evitar a manipulação das redes pelas empresas.

Na África do Sul, a Comissão Eleitoral emprega centenas de pessoas para rastrear o trabalho dessas empresas e tentar evitar a manipulação.

Relatório da Kofi Annan Fundation adverte que, em um futuro imediato, as eleições nas democracias dos países do Sul serão alvo de discursos violentos, de desinformação e de ingerências exteriores e de manipulações sobre as plataformas digitais.

O documentário O Dilema das Redes, que está bombando na Netflix, traz  os inventores dessas máquinas confessando suas intenções. O filme é também um alerta importante, já que exige que a sociedade faça uma pausa e reflita sobre o quanto está sendo prejudicada. 

As máquinas e os algoritmos foram inventados para mudar a realidade, em função dos interesses desse clube de bilionários. Já não precisam de exércitos para ocupar um país, pois basta ocupar a mente da pessoas, exacerbar o individualismo egoísta e consumista, jogar uns contra os outros e então gerar o caos.

Brasil e Argentina

Aqui, na Nossa América, a Cambridge Analytica atuou para favorecer a eleição do neoliberal Mauricio Macri, na Argentina, e para o plebiscito realizado na Bolívia, que reprovou o governo de Evo Morales. 

Mas a grande façanha da empresa foi a eleição, em 2018, no Brasil, de um desconhecido capitão do Exército por um minúsculo partido (PSL).

Claro que não foi a Cambridge Analytica que ganhou a eleição. A coisa é muito mais complexa, contou com planejamento de longo prazo e com vários protagonistas de maior hierarquia. Porém, o papel coadjuvante de manipulação das redes foi fundamental nessa estratégia.

Captura do poder

Tivemos, em outubro de 2018, a culminação de uma Operação de Inteligência das Forças Armadas para captura do poder. Essa operação contou com a cumplicidade do Poder Judiciário, organizações de empresários, empresas e, o que é mais grave, do Departamento de Justiça, Departamento de Estado e Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos.

Soma-se aos atores anteriores, o papel coadjuvante da Cambridge Analytica na pessoa de Steve Bannon, a serviço do bilionário Robert Mercer, ao lado da famiglia, o clã Bolsonaro.

Uma vez capturado o poder, esse aparato de manipulação das redes passou, em parte, a ser operado de dentro do Palácio do Planalto, a própria sede do poder Executivo, o que lhe conferiu o apelido de “Gabinete do Ódio”, pois é o ódio que eles tratam de disseminar nas redes. 

A estratégia de captura do poder, bem sucedida, agora substituída pela estratégia de permanência no poder. A campanha publicitária pouco mudou e continua tendo como foco a demonização e a destruição do inimigo. Segue o falso dilema entre o verde e amarelo, e o vermelho. 

Agora estamos novamente diante de um processo eleitoral importante para eleger prefeitos e vereadores em mais de seis mil municípios brasileiros. Daí a importância de a gente discutir o tema, chamar a sociedade à reflexão. A pergunta que fica é: como organizar o debate eleitoral?


Paulo Cannabrava Filho, jornalista e editor da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1957. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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