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Do silêncio à palavra: violência assassina em São Paulo

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

Emília Estivalet Broide, Jorge Broide e Roberta Tinoco*

charge-maioridadeA análise do fenômeno da violência e dos homicídios entre os jovens no Brasil deve contemplar tanto a dedicação e o olhar cuidadoso frente a cada situação de vulnerabilidade individual – onde uma vida é ceifada – quanto à problematização do incremento da violência e dos homicídios em grupos específicos e gerações.

Desde 1998 foram produzidos no Brasil 19 relatórios contendo mapas e análises da evolução da violência no país. Já no primeiro mapa, a concentração de homicídios na faixa jovem da população estava presente, e isso se repercute até os dias de hoje. (WAISELFISZ, 2012)

O relatório de 2012, com a inclusão do quesito raça/cor[i], demonstrou uma inquietante tendência estatística, qual seja o contraste da crescente elevação da mortalidade entre os jovens negros frente à diminuição dos homicídios na população jovem branca. A “juvenilização” da mortalidade, portanto, é pobre e negra, moradora das regiões periféricas da cidade. (WAISELFISZ, 2012).

Os equipamentos de Assistência Social que desenvolvem Programas de Prestação de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto dirigidos aos jovens em conflito com a lei em toda Grande São Paulo vivem essa realidade estatística cotidianamente, visto que acolhem para atendimento majoritariamente este público específico. Inquietos frente ao incremento, no momento atual, das chacinas dirigidas jovens usuários de seus serviços, os técnicos responsáveis pelo atendimento em um destes equipamentos em uma das cidades da Grande São Paulo, trouxeram essa situação à tona em um espaço de supervisão institucional realizada por um psicanalista[ii].

A observação desse mapa não nos permite confirmar que os homicídios sejam necessariamente um fenômeno relacionado à periferia, indistintamente, pois estão altamente concentrados em alguns bairros determinados como Jardim Ângela, Cidade Ademar, Brasilândia e São Rafael. O mapa mostra vários outros distritos com privação igualmente elevada nas áreas nordeste e leste da cidade, onde os índices de homicídio estão abaixo ou perto da média da Região Metropolitana, indicando que a mera consideração da privação (ou de um status de periferia) não é suficiente para explicar a presença de índices altos ou baixos de homicídio. Instituto de Estudos Avançados da USP.
A observação desse mapa não nos permite confirmar que os homicídios sejam necessariamente um fenômeno relacionado à periferia, indistintamente, pois estão altamente concentrados em alguns bairros determinados como Jardim Ângela, Cidade Ademar, Brasilândia e São Rafael. O mapa mostra vários outros distritos com privação igualmente elevada nas áreas nordeste e leste da cidade, onde os índices de homicídio estão abaixo ou perto da média da Região Metropolitana, indicando que a mera consideração da privação (ou de um status de periferia) não é suficiente para explicar a presença de índices altos ou baixos de homicídio. Instituto de Estudos Avançados da USP.

Essa equipe técnica, em sua supervisão mensal, abordou o homicídio de dois jovens atendidos no programa e discutiu como enfrentar a situação. O supervisor da equipe propôs a realização de um encontro onde estivessem presentes as famílias enlutadas e os jovens atendidos pelo programa com suas famílias. A criação desse dispositivo de fala tinha por objetivo a construção de um espaço de elaboração psíquica e homenagem aos mortos, além de servir para criação de estratégias de enfrentamento às fragilidades decorrentes da extrema violência vivida no bairro. O encontro foi marcado e organizado pela equipe dez dias após essa supervisão. Foram convidadas pelo supervisor duas colegas[iii] que dividiram a coordenação do grupo e o registro do material grupal.

Mesmo que a iniciativa dos técnicos, de “dar voz a alguns cidadãos que compõem as estatísticas”, possa parecer uma ação pequena, se comparada ao número de envolvidos e a complexidade destas situações, criar espaços de conversa sobre as mortes, constituindo e instituindo a possibilidade para a elaboração do luto nestes contextos a partir dos testemunhos, faz existir os crimes. As breves narrativas, ao serem retiradas da invisibilidade e do silêncio, são capazes de incitar a reflexão acerca das razões de seu sufocamento.  Torna-se, então, uma ação de grande magnitude.

Foucault em “A vida dos homens infames”, realizou uma pesquisa documental se valendo de cartas dirigidas ao rei, pedindo a prisão de soldados desertores, monges vagabundos, mulheres e homens escandalosos e danados na França dos séculos XVII e XVIII. Neste ensaio, o autor se propõe a recolher histórias de vida reais que não tiveram qualquer notoriedade e que foram silenciadas pelo poder. Os únicos rastros da existência destes desafortunados só podem ser acessados, atualmente, uma vez que registrados enquanto pedido de prisão e denúncia. Isso permite hoje sua visibilidade.

“por uma violência, uma energia, um excesso na malvadez, na vilania, na baixeza, na obstinação ou no infortúnio, tais que lhes proporcionassem, aos olhos daqueles que os rodeavam, e à medida da sua própria mediocridade, uma espécie de medonha ou lamentável grandeza” (FOUCAULT, 2002, p. 97).

A aposta de Foucault era que estas breves narrativas, ao serem retiradas da invisibilidade e do silêncio seriam capazes de emocionar e, ao mesmo tempo, incitar à reflexão acerca das razões de seu sufocamento  – “como se sufoca um grito, um fogo, um animal” (2002, p. 92). Seriam, portanto, os adolescentes “em conflito com a lei”, novos configurações dos “homens infames” de Foucault? Ganham notoriedade, existência e inscrição pelos delitos cometidos? Pelos excessos cometidos? Pela violência e urgência nos gestos e nas ações?

Inicia o grupo com cerca de 40 pessoas. Um dos técnicos do equipamento expõe os objetivos do encontro, esclarecendo que o mesmo foi pensado após a perda de dois adolescentes atendidos naquele local. Falou sobre os episódios de violência retratados e noticiados pela mídia e apresentou os dados estatísticos dos homicídios ocorridos por região no estado de São Paulo, coletados junto à Secretaria de Segurança Pública. Em seguida, um dos coordenadores da reunião colocou a questão temática do encontro:

“O que fazer para vocês não ficarem tão expostos? Estamos aqui para que vocês possam falar sobre isso, sobre o luto…, porque se a gente não fala, vira um soco que tira nosso ar. É importante poder dizer, por mais que seja preciso coragem para falar sobre tudo isso. Podemos, vamos falar para homenagear os mortos”.

revolverAdolescentes e familiares se remexeram nas cadeiras, inquietos pelo tema e atentos à fala de um dos técnicos, que relatava como ocorrera o assassinato dos dois meninos[iv]. Os adolescentes presentes se fecham, as mães se emocionam, assim como os trabalhadores do equipamento, todos visivelmente envolvidos, perpassados pelas mortes recentes.

As falas giravam em torno dos casos noticiados pela mídia, até que entraram no grupo a mãe, o avô e o irmãozinho de um dos adolescentes assassinados. Enquanto a mãe buscava palavras para falar da sua dor, o avô começou a falar sobre a perda do neto e sua vontade de que houvesse justiça.

O pedido de justiça remete à necessidade de nomear as situações nas quais os homicídios ocorrem e à ausência de julgamento dos assassinatos, uma vez que o registro dos homicídios como “resistência seguida de morte” impede o julgamento e a justiça, tornando assim o ato violento imoral.

 “Não tem o que falar, foi a polícia que matou… Eles matam quem eles querem e fica por assim mesmo. Que Lei é essa? Não pode ser assim! Esse cara deve ter o fim que merece. Caras que trabalham errado devem morrer também. Meu neto não era bandido, tinha todos os documentos em mãos. Agora vamos ficar com essa mágoa, que a gente vai levar para sempre, não sara nunca.” (avô do menino assassinado)

Durante a fala dos familiares enlutados, os adolescentes presentes no grupo foram aos poucos se colocando, inicialmente por gestos, até enfim conseguirem falar. Um dos meninos ficou com os olhos marejados e recebeu o abraço do amigo ao lado.

Após a fala do avô, a mãe do menino morto manifestou-se. Reclamou do tratamento que recebera após a morte de seu filho e o descaso que fizeram com a vida dele e com a dor dela. Ela transbordava tristeza, mas mantinha a fala forte, buscando encontrar nesse espaço institucional criado, entre o íntimo e o público, a potência da palavra, da denúncia. Ansiava por alertar para o que estava acontecendo com os jovens moradores do bairro, a fim de promover uma elaboração possível, pessoal e coletiva.

“Meninos que já passaram pela Fundação já pagaram. Se humilharam, apanharam, enquanto precisavam ser protegidos. Meu filho levou um tiro com muito ódio no coração. Tenho três filhos, agora dois, me deixou um buraco enorme… Não pude ver meu filho, só no caixão. O delegado e o médico fizeram descaso, o médico deu um atestado de óbito falso e o delegado chamou meu filho de bandido, falando que vagabundo tem que levar tiro na cara… Só porque os meninos erraram, não significa que precisam sofrer assim. Nunca imaginei um menino cheio de vida, de sonhos, sair de casa procurando serviço e não voltar mais. Os seres humanos precisam de mais compaixão. Todo dia jovens sendo assassinados de forma cruel, só podia ser coisa de polícia, até os bandidos respeitam mais a gente…”.

A respeito do que é verbalizado pela mãe do adolescente, não há como não lembrar o que Zizek ressalta em seu texto “Como ler Lacan”, referindo-se a um debate televisivo sobre o destino dos prisioneiros em Guantánamo na NBC, em meados de 2004.

“um dos estranhos argumentos em prol da aceitabilidade ético-legal de seu status era que ‘eles são aqueles que as bombas deixaram escapar’: como eles eram o alvo do bombardeio dos Estados Unidos e por acaso sobreviveram, e como esse bombardeio era parte de uma operação militar legítima, não se pode queixar de sua sorte quando aprisionados depois. O argumento sugere que, seja qual for sua situação é melhor, menos severa, que estar morto.” (p.111)

De fato, o prisioneiro fica numa posição de morto-vivo. Eles são, portanto, como situa Agamben, homo sacer, homens que podem ser mortos impunemente porque, aos olhos da lei, sua vida não conta mais. Nesse sentido, a aproximação dos adolescentes em conflito com a lei, que cumprem medidas socioeducativas em meio aberto nas periferias dos grandes centros urbanos, com os prisioneiros de Guantánamo –, estando “entre duas mortes”, ou seja, vivos, mas, sob constante ameaça–, faz pensar a necessidade da passagem daquele que é o portador de memórias à posição de testemunho, a fim de que o crime possa ser reconhecido como tal.

Nessa medida, introduz-se aqui a noção de responsabilidade, tão necessária de ser problematizada nos casos dos adolescentes em conflito com a lei. Um delito ou um crime não pode servir como justificativa para outro. Essa lógica poderia induzir a uma perigosa coerência, como mostra tão bem a concepção de banalidade do mal presente na obra de Hannah Arendt (1999), a respeito do julgamento de Eichmann em Jerusalém. Nesse livro, a autora lança mão da tese de que os carrascos nazistas não eram particularmente maus: tinham plena consciência do que estavam fazendo, impunham sofrimento e dor as suas vítimas, mas eram capazes de desresponsabilização, não sofrendo diante das atrocidades feitas.

Ao se colocarem como bons servidores hierárquicos, tendo a tarefa de eliminar vidas alheias, tocou-lhes o trabalho sujo que deveria ser feito e o faziam com esmero e dedicação. A mesma lógica opera hoje, tanto nas mortes de jovens pobres e negros moradores das periferias dos grandes centros urbanos, quanto nos fundamentalismos religiosos.

Meninos da Fundação Casa:
Meninos da Fundação Casa: “Somos perseguidos igual bicho”. Foto: Marcos Santos/USP

A mãe do adolescente morto voltou a falar, insistindo na discriminação que os adolescentes sofrem por terem passado pela Fundação Casa. Falou da vivência do preconceito que surge de todos os lados, “eles acabam perdendo a expectativa de transformarem seu futuro em algo diferente”.

Os adolescentes balançaram a cabeça concordando e um disse:

“é isso mesmo que tá acontecendo, somos perseguidos igual bicho”.

Aos poucos, a fala começou a circular entre os adolescentes. Todos querendo falar, sussurrando entre si, agitando-se nas cadeiras, inquietos, uns comentando a fala dos outros ao mesmo tempo:

“Tem que ficar atento com qualquer fita né?”

 “Me sinto coagido. Tenho visão da coisa… não vou nem mais pro baile.”

“Os cara[v] senta o pau, até de dia. Eu conhecia o I.[vi] e foi à luz do dia, imagina a noite como tá?”

“Os caras estão fazendo tiro ao alvo.”

Outra mãe começou a falar sobre o problema das drogas, levantando polêmica.

“Porque a juventude acende maconha em qualquer lugar e assim, acabam se colocando em risco, ou porque a polícia pode passar, ou porque tendo o conhecimento do uso da “maldita droga”, mesmo assim se envolvem. Os policiais também acabam forjando”. “A Polícia está atrás, para eles vai ser só um a menos; eles não aguentam mais correr atrás, então vão forjar para prender”.

Os meninos se incomodaram com esta fala e voltaram a silenciar. Um dos coordenadores intervém:

“Dá para pensar que a droga é consequência, que alguma coisa leva a droga, algo não está bom, o que está pegando

Os jovens voltaram a falar de seus medos, angústias e impotência frente ao que denominaram de “guerra”.

“O que a gente faz os outros vê, o que eles fazem ninguém vê… Se você vai para delegacia denunciar, apanha.”

“Polícia cheira cocaína e de noite chega querendo matar os caras.”

“Mandô eu levantar a mão, já tô correndo.”

 “Você erra uma vez e o cara vai ficar atrás de você te atormentando.”

Começou um burburinho entre eles e seguiu-se a intervenção de um dos coordenadores: “Sabe qual o nome disso? TORTURA”.

Todos balançaram a cabeça concordando. Falaram que estão numa guerra e que esta não vai acabar tão cedo, vai passar de geração para geração e, cada vez mais, a revolta vai aumentar:

“Isso gera revolta, a guerra não vai acabar não. Muita revolta gera em nós, nós vamos ter filho e o bagulho é loko”.

“Como acabar com isso?”

“Mudar de lugar, vai pra Bahia”. (Falas de adolescentes)

 “Em dois, ou três numa moto vocês são vítimas fáceis para “eles”, vocês devem andar menos em grupo, fazer as coisas sozinhos, não andar de moto em dois. “Quando é dois mano, não pode ser boca dura, fica suave, meu filho já perdeu 5 motos sendo boca dura…”. (Fala de familiar)

Outros familiares deram conselhos para os meninos, dizendo como deviam se proteger. Essas estratégias, embora simples, vão-se somando a novas formas de relação e interação entre os jovens, seus familiares e a equipe técnica. Também, debatem novas maneiras de buscar proteção e cuidado que devem fazer parte da rotina, estratégias que permitam salvar vidas. Depois de muitas situações faladas e expostas, tanto pelos familiares, quanto pelos técnicos e pelos próprios adolescentes, a mãe do menino assassinado concluiu: “eles não podem ter nada e os policiais podem tudo”.

Nesse momento a coordenação intervém:

“Vocês estão dizendo que tem muita maldade e estão usando a expressão que é uma guerra sem fim. Podemos falar disso. Se a gente não fala, não pensa sobre a guerra, a gente morre na guerra. O que é possível fazer?”

“E não vai acabar mesmo”

“Nós não podemos fazer nada”

“Correr”

“Não sair mais de casa”

“Os cara tem o poder, eles podem andar armado, pode fazer tudo, quem eles querem matar, eles matam…”. (Falas de adolescentes)

“Não vai ter vida própria” (Fala de familiar)

 “Tá dando sono essa conversa aí”, disse um dos adolescentes.

“Que sono é esse”? – pergunta um dos coordenadores.

Os adolescentes respondem:

“desânimo, esses bagulho acontecendo. dá uma tristeza”.

“Nós estamos na guerra e não temos armamento”.

“Ele (policial) matou meu filho com tiro estourando a cara dele e já morto recebeu mais dois tiros, porque essa crueldade”? “Esses meninos precisam estar desanimados mesmo.” – fala de uma mãe.

“Seu filho não merecia isso não”. “A gente está no mato sem cachorro”. – fala de um adolescente

“A família do amigo que estava com meu filho no dia que mataram ele disse que eu podia ir na casa deles se quisesse saber alguma coisa e o delegado mandou eu ficar quieta, sem ter contato com o outro menino. Ele agora está sendo maltratado, foi preso, está na Fundação Casa, mas deixaram entender que se ele abrir a boca está morto. No dia do velório teve rebelião na unidade que ele está, deve ter a ver com isso”. – mãe

“Vai sair e morrer é queima de arquivo”. – fala de um adolescente.

A coordenadora do Programa posicionou-se e visivelmente emocionada, expôs sua preocupação a eles. Também disse estar preocupada com a equipe pois, muitas vezes, eles (equipe técnica) são vistos como” aquele pessoal que passa a mão na cabeça dos meninos”. Concordou com a vivência do “clima de guerra” e disse que é fundamental que possam falar, conversar, sobre o que está acontecendo para que todos se protejam.

“Numa guerra tem um monte de gente que quer que vocês morram, mas nós queremos que vocês vivam e estamos lutando para isso. Guerra é guerra, quem vacila, dança. Falar da guerra, falar do que está acontecendo não nos deixa adormecer na guerra, nos fortalece. Soldado que tem sono cai, soldado que não está atento cai”.  Intervém um dos coordenadores.

O grupo encerrou as atividades. Os adolescentes comentaram que foi “da hora” e terminaram com um lanche reforçado e com o diálogo com os técnicos; alguns meninos procuraram os técnicos de referência para conversar, outros devoraram a comida e conversaram entre si.

Pensamos que iniciativas como a desta equipe rompem com o sono dos anjos e introduz no atendimento a dimensão política no trabalho técnico. Para além do atendimento padrão, produziu-se ali um antes e um depois, que, ao propiciar espaço de fala e interlocução frente às situações de violência, foi possível contornar o impronunciável da morte. A elaboração do luto, que nesse caso também é coletiva permite à vida. A negação faz com que o sujeito se identifique com o morto, como já dizia Freud (1917) em Luto e Melancolia.

Gagnebin ( 2009) em seu livro lembrar, escrever, esquecer amplia o conceito de testemunha para além daquele que presenciou algum fato.

“Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade, ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida a pesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente”. (2009; p.57)

Tal é a função que cumpre em nosso entender a atividade grupal. Possibilita sair do circuito cristalizado e fixado da identificação imaginária e doentia do inexorável destino à reinvenção do presente.

Quinze dias após essa intervenção soube-se pela equipe técnica que a relação entre a os profissionais, os adolescentes e seus familiares, havia se intensificado. Ampliaram-se as atividades de conversa sobre a violência que estava acontecendo. A violência, as estratégias de enfrentamento da mesma e futuro dos jovens não eram mais problemas externos à instituição. O fato dos adolescentes terem entendido que a equipe de trabalho queria que eles vivessem e que podia suportar a escuta de suas angústias, que aparentemente não podiam ser faladas, bem como, a descoberta de que o medo e o luto eram de cada um e de todos, inclusive da equipe, fez com que se alterassem as relações com o próprio cumprimento da medida socioeducativa em meio aberto.

Bibliografia:

ABRAMOVAY, M. & CASTRO, M. G. Jovens em situação de pobreza, vulnerabilidades sociais e violências. Cadernos de Pesquisa, n. 116, julho, 2002.

AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999

FOUCAULT, Michel. “A vida dos homens infames” In: O que é um autor? Lisboa: Vega, 2002.

FREUD, S. 1917 [1915]) Duelo y melancolía. In: Obras completas. 2ª ed. v. XIV. Argentina: Amorrortu Editores, 2007.

GAGNEBIN, J.M. Lembrar escrever, esquecer. RJ, Editora 34, 2009.

ZIZEK, S. Como ler Lacan. RJ: Zahar, 2004.[vii]


               [i] Introduzido no Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde em 2006.

               [ii] Jorge Broide

[iii] Emília Estivalet Broide e Roberta Tinoco

[iv] Um dos meninos, muito comprometido física e psiquicamente, com histórico de internação na Fundação CASA, estava uma tarde vendendo doces em sua barraca, quando um policial aproximou-se para “enquadrá-lo”. Assustado, o menino, incapaz de responder ao inquérito do policial, apanhou deste. Buscou refúgio dentro de uma farmácia e continuou apanhando, caiu,“quebrando tudo”. O policial culpou o adolescente pelo estrago, mas o dono da farmácia fez um Boletim de Ocorrência, responsabilizando o policial pelo ocorrido. Alguns dias após o incidente, este menino foi morto a tiros. O segundo caso tem versões diferentes. Segundo a mãe, seu filho estava com um amigo indo procurar serviço e, numa abordagem policial, acabou sendo assassinado pela polícia, que primeiro matou-o com um tiro no rosto, tendo  depois atirado mais duas vezes. Ele foi levado para o hospital numa segunda-feira e morreu na terça-feira. A mãe só foi descobrir onde o filho estava após percorrer vários hospitais na sexta-feira. Na versão dos policiais, estes estavam trocando tiros com dois motoqueiros que há dias rondavam por uma mesma avenida e “sem querer” um deles acertou um dos adolescentes, sendo que o outro adolescente foi reconduzido a Fundação Casa, de onde era egresso.

[v] Referindo-se aos policiais.

[vi] Um dos adolescentes assassinados.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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