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Dos Faraós à Idade Média, história mostra que aborto é tão antigo quanto humanidade

O sílfio, uma erva na Antiguidade clássica, teve um uso tão disseminado que se tornou o motor da economia de uma importante cidade grega
Carlos Russo Jr
Espaço Literário Marcel Proust
Florianóolis (SC)

Tradução:

São absolutamente repetitivas e nauseantes as tentativas de controlar os úteros ao longo da história. Entretanto, estas nunca conseguiram evitar o fato de que mulheres fazem, sempre fizeram e continuarão a fazer abortos em todos os tipos de sociedade, quaisquer que sejam as leis restritivas ou as crenças imperantes.

O aborto e a própria contracepção sempre estiveram presentes em todos os tempos. E seguirão entre nós, para desespero tanto dos conservadores de boa têmpera, como também para proveito dos espertalhões “vendilhões do Templo”, e de todos os hipócritas ditos “pró-vida”.

Na verdade o que muda na pós-modernidade em que vivemos é a segurança médica e jurídica de quem pratica o aborto, especialmente no caso de mulheres pobres e das mais vulneráveis.

O sílfio, uma erva na Antiguidade clássica, teve um uso tão disseminado que se tornou o motor da economia de uma importante cidade grega

Wikipedia

Arte do século XIII apresenta um herborista preparando uma mistura contendo poejo para uma mulher

Pois se leis em determinados países do mundo contemporâneo restringem o aborto seguro às elites, na Antiguidade e até mesmo na Idade Média, não era bem assim.

O historiador americano John Riddle no seu livro “Eve’s Herbs: A History of Contraception and Abortion in the West”, reporta-nos aspectos interessantíssimos da prática abortiva no Ocidente.

Ervas e métodos contraceptivos eram conhecidos e difundidos desde o Egito dos Faraós à Grécia antiga, em Roma e na Europa até mesmo na Idade Média!

Alguns não eram lá tão eficazes, enquanto outros funcionavam e eram receitados após observação, experimentação e acúmulo de conhecimento! Os conhecimentos, em geral, formavam tradições essencialmente orais, mas também ocorreram exceções, em textos escritos e que chegaram até nós.


O “Tesouro do Homem Pobre”

Pedro Hispano, pensador medieval nos deixou obras de lógica e farmacologia; escreveu um manual de medicina popular chamado “O Tesouro do Homem Pobre”.

Pedro era também um homem da Igreja. Foi deão, diácono, cardeal e, Papa: O Papa João XXI. Com apenas oito meses de pontificado, em 1276, foi encontrado morto!

Pedro Hispano foi ÚNICO em muitos aspectos: único Papa português, o único papa médico e o único papa a escrever um capítulo em seu Manual sobre métodos contraceptivos! Ele jamais estimulou a prática, muito pelo contrário, mas lá nos seus escritos estavam métodos contraceptivos.


O controle de natalidade na Antiguidade

Textos médicos egípcios há cinco mil anos já listavam abortivos. Na Grécia, Aristóteles defendia o aborto para casais “férteis além do limite”.

Aristófanes, o criador da comédia antiga grega, citou em algumas de suas comédias o poejo, planta medicinal de diversos usos, entre eles a interrupção da gravidez.

Em Roma, o conservador Plínio, o Velho, em “A História Natural”, elencou diversas plantas abortivas, o poejo dentre elas. E frise-se que ele condenava a prática, mas dizia “ser um direito da mulher”.


O sílfio, a rainha das plantas abortivas

O sílfio, uma erva na Antiguidade clássica, teve um uso tão disseminado que se tornou o motor da economia de uma importante cidade grega.

As propriedades da planta foram descobertas pelos colonos gregos, que fundaram, no século VII a.C., a cidade de Cirene, nas costas da Líbia dos dias de hoje.

O sílfio era considerado uma dádiva da natureza! Caule e raiz eram comestíveis, das flores extraía-se perfume, a seiva, tempero e xarope para tosse. Pastores que alimentavam ovelhas com essa planta obtinham uma carne mais macia.

A erva ainda aliviava hemorroidas e possuía propriedades afrodisíacas!

Mas, segundo Riddle, o maior chamariz da planta eram suas virtudes de controle reprodutivo. Que coisa que cheira os dias de hoje: o sílfio parece ter sido extinto graças à ganância humana.

Cirene era uma próspera cidade, com comércio firme e forte com todas as importantes pólis gregas. Aqueles que colhiam e vendiam sílfio enriqueceram e comandaram Cirene.

Segundo os registros de Teofrasto, discípulo de Aristóteles, Arkesilas, o rei, supervisionava pessoalmente a pesagem e o transporte de sílfio. Essa imagem está registrada em um vaso grego do século 6º a.C.

Além disso, moedas de Cirene espalmavam o sílfio, verdadeira galinha dos ovos de ouro. Umas delas mostram uma mulher sentada, com um sílfio aos seus pés. Ela toca a planta com uma mão e com a outra aponta suas partes íntimas. Uma maneira clara e direta para indicar seu uso.

Sorano, que defendia o aborto em caso de perigo à saúde da mãe, dizia que o sílfio era um método mais eficaz do que o uso de pessários, tipo de aparelhos elásticos para conter os órgãos pélvicos. O médico de Éfeso, no século II d.C., receitava pequena quantidade, uma colher de chá de suco de sílfio com água, uma vez ao mês, após a menstruação ou na ausência desta. “Previne uma concepção e destrói uma existente”, afirmou.

O poeta Catulo, no século I a.C., se referia a ela como uma régua definidora do amor livre. Enquanto houvesse sílfio na costa de Cirene, o sexo sem preocupações estava garantido…

Mas a festa acabou!

Cerca de 40 anos depois, estava difícil encontrar a planta. Os gregos tentaram domesticá-la e cultivá-la em outros lugares, mas fracassaram.

Só existia sílfio em Cirene, e na forma selvagem. Os colonos deviam colher na época certa e esperar a natureza agir. Mas a ansiedade e a demanda andavam de mãos dadas rumo ao precipício: o agro de Cirene era tão agressivo quanto o nosso na Amazônia e no Pantanal, a planta rareou e virou artigo de luxo.

Plínio, o Velho, chegou a afirmar que o sílfio estava valendo mais do que seu peso em prata! 

Aqueles poucos quilômetros de encostas secas de montanhas voltadas para o mar não deram conta do desejo das pessoas, e o que eles produziam de sílfio, ficou cada vez mais inacessível.

Ao fim da Antiguidade Clássica, por volta do século 5º d.C., o sílfio já era considerado extinto. Estudos mais recentes indicam que o aumento da desertificação no norte da África pode ter sido a principal causa, e não somente a colheita excessiva.

Quanto a Cirene, ela teve alguns séculos sob domínio romano. Mas no século V, já estava em ruínas.

Cirene e o sílfio morreram juntos!

Alguns historiadores acreditam que a planta ainda possa existir no Mediterrâneo. Se estiverem corretos, significa que o sílfio sempre esteve entre nós, esse tempo todo. Assim como o aborto.

Em nosso texto, tentamos falar em aborto de uma maneira leve, no entanto, nem sempre esta é uma tarefa fácil, pois o tema além de ser delicado envolve questões morais, científicas, éticas, religiosas e filosóficas. E a prática, tão antiga quanto a humanidade, também pode representar diversos riscos à saúde das mulheres.

Diariamente, cerca de 830 mulheres são vítimas de complicações durante e após o período gestacional, sendo o aborto um dos principais catalisadores das mortes maternas em todo o mundo.

Aliás, somente na América Latina e no Caribe acontecem 4 milhões de aborto por ano! Pese a todos os esforços da sociedade machista em controlar os úteros femininos!

Carlos Russo Jr. | Proust


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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