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Dos trabalhadores à população carcerária: no Peru, são eles quem pagam o preço da crise

O país nunca esteve preparado para um açoite assim, o que explica a improvisação e as dificuldades registradas para abordá-lo
Gustavo Espinoza M.
Diálogos do Sul
São Paulo

Tradução:

Nos marcos da sociedade capitalista, há segmentos aos quais sempre lhes toca a pior parte. São os mais pobres, os que estão na base social, sem ter a possibilidade de obter benefícios que chegam sempre à classe dominante. 

Esta espécie de guerra bacteriológica que afeta o mundo pôs em evidência as iniquidades do sistema, e mostrou o rosto real de uma estrutura baseada na exploração, na exclusão e na acumulação de riqueza nas mãos de poucos. 

No Peru, os efeitos do coronavírus têm sido catastróficos na economia, e também no aspecto social. O país nunca esteve preparado para um açoite assim, o que explica a improvisação e as dificuldades registradas para abordá-lo.

O país nunca esteve preparado para um açoite assim, o que explica a improvisação e as dificuldades registradas para abordá-lo

Reprodução: Twitter
Mais de 500 alunos de escolas militares são infectados por coronavírus no Peru.

Se quiséssemos perguntar quantos são os mais afetados na etapa atual da crise, poderíamos escrever muitas páginas e mesmo elas não seriam suficientes para refletir o drama.  Por isso é melhor falar de segmentos da sociedade cuja atividade, nas condições atuais, é indispensável; e de outros que, mesmo na passividade, sofrem de maneira constante os efeitos do cenário convulso que abala as próprias bases do país que nos abriga.

Poderíamos mencionar os que hoje estão na primeira fila da luta contra a Covid-19. Trabalham esforçadamente dia a dia, arriscam tudo – inclusive suas próprias vidas – e nem sempre recebem o tratamento que merecem. Nos referimos aos médicos, aos trabalhadores no setor da saúde – enfermeiras e pessoal dos hospitais – os seguranças, trabalhadores do serviço municipal e das Forças Armadas. Todos eles têm direito à vida, à proteção de seu futuro, à segurança de sua família e sua própria tranquilidade. Mas a vida os colocou diante de uma disjuntiva: optam por isso, ou arriscam tudo pelo bem comum. 

Em sua imensa maioria se trata de peruanos de origem humilde, procedentes de famílias modestas, homens e mulheres golpeados pelo abandono e pela miséria, que fizeram seu lugar no processo social à força de estudo, empenho e vontade de luta. Hoje desempenham o papel de heróis diante de um mal que põe em risco a muitos e cujas vidas eles devem tratar de proteger e assegurar. 

Vemos que estão trabalhando infatigavelmente em turnos infinitos, mostrando o rosto da coragem, trabalhando com abnegação e modéstia, sorrindo diante da adversidade e enfrentando a situação sem recursos e sem equipamentos urgentes para sua proteção e segurança. Em várias ocasiões, alguns deles – sobretudo trabalhadores na área hospitalar – viram-se precisados a demandar atendimento para eles mesmos, mas não pediram nada que não se possa atender. Nenhuma exigência excepcional se viu nas suas reclamações. E ao ver isto, temos que considerar uma verdade indesmentível: o Peru é dos países que menos investe nesse serviço; e está entre os que têm menos médicos, leitos hospitalares, instrumental de apoio e UTI por habitante. 

Em outro cenário, e pagando duramente os efeitos da quarentena, aparecem os imigrantes, ou seja, os peruanos aos quais esta inusual tormenta os colheu inadvertidamente fora de seu lugar habitual. Alguns optam por voltar a Lima e outros por viajar ao interior do país, mesmo que seja caminhando. Mais de 200 mil peruanos enfrentam essa odisseia. Ela gera muitíssimos outros desafios: organizar as pessoas, assegurar que não viajem contagiados, nem sejam suscetíveis de contrair o vírus; que recebam alimentos, tenham abrigo em suas horas de repouso, que sofram o menos possível os rigores do desamparo e possam ser auxiliados por veículos que possam transportá-los. São homens e mulheres, mas também crianças que sofrem os rigores de uma realidade dramática.

Os trabalhadores sem recursos constituem um terceiro segmento. Falamos dos operários da construção, que não trabalham, nem fazem parte de folhas de pagamento; dos vendedores ambulantes, dos trabalhadores independentes, dos taxistas. Hoje se sabe que 42% dos trabalhadores perderam seus ganhos. A crise os devora e carecem do seu mais elementar recurso: o trabalho. 

E há um segmento adicional que hoje está em crise: a população das prisões. São 100 mil que hoje vivem em centros de reclusão com capacidade para 35 mil. Tem-se dito, e é verdade, que 40% deles não foram processados nem receberam sentença. Alguns podem ser inocentes e outros culpados. Entre esses, há os que são responsáveis de delitos horrendos, mas também de faltas leves. E entre os sentenciados alguns receberam condenações justas e outros foram vítimas de penas excessivas que não têm relação com os delitos que lhes são imputados. Tribunais presididos por Hinostroza Pariachi e Villa Stein condenaram inocentes e libertaram culpados. Se o Poder Judicial que dispõe a liberdade de Keiko Fujimori garante realmente imparcialidade e justiça? É confiável?

É fácil dizer: “se estão presos são culpados”. Muitos peruanos de singular valor estiveram presos. Recordemos a Grau, Vallejo, Mariátegui, Arguedas. E nunca foram culpados. Não se trata de defender assassinos, violadores ou bandidos, mas há presos que deveriam estar fora; e “livres” que deveriam estar dentro. Não é verdade? Trata-se então de amparar aqueles que não têm possibilidade de se defender diante do vírus que afeta o país. Eles pagam por uma crise que “vem de longe”, mas que as autoridades atuais não sabem manejar.
O coronavirus pôs na pele dos peruanos uma mensagem inapagável: a solidariedade, como pedra de toque do futuro. Honra a ela.

*Colaborador de Diálogos do Sul de Lima, Peru.

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Gustavo Espinoza M. Jornalista e colaborador da Diálogos de Sul em Lima, Peru, é diretor da edição peruana da Resumen Latinoamericano e professor universitário de língua e literatura. Em sua trajetória de lutas, foi líder da Federação de Estudantes do Peru e da Confederação Geral do Trabalho do Peru. Escreveu “Mariátegui y nuestro tiempo” e “Memorias de un comunista peruano”, entre outras obras. Acompanhou e militou contra o golpe de Estado no Chile e a ditadura de Pinochet.

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