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Duas filhas da ditadura

Fernanda Pompeu

Tradução:

Fernanda Pompeu*  

Histórias de pessoas de carne e osso – e também de personagens de papel – que viveram na roda viva da ditadura militar. Novos episódios toda quinta-feira.

Carlos Marighella aos 34 anos
Carlos Marighella
aos 34 anos

Já se vão quase trinta anos que minha amiga, num gesto tresloucado e para sempre inexplicável, atirou contra a própria cabeça interrompendo uma mente brilhante. Pois, com 20 anos, ela era rápida, criativa, ousada e, supreendentemente para sua idade, muito culta. Por que se matou? Essa resposta só terei se um dia encontrá-la quando eu me mudar para as nuvens. Mas a história que vou contar começa numa festa. Já embriagadas, ela me sussurrou – em tom de confidência – que seu pai foi um dos caras que mataram Carlos Marighella (1911-1969). O assassinado, todos sabemos, foi tachado pela ditadura como seu inimigo número 1.
Fiquei surpresa com a revelação. Por delicadeza, não fiz nenhum comentário. Mas ela estava com vontade de desabafar. Contou que seu pai era da equipe de Sérgio Paranhos Fleury, uma espécie de delegado pit bull dos milicos (sem querer ofender os cachorros dessa raça). Ela era uma menininha de pré-primário quando da emboscada a Marighella. Ouviu a história em casa e se encheu de orgulho: Papai havia matado o monstro vermelho!
Toda orgulhosa – afinal toda criança reverencia um papai que mata monstros – espalhou para os coleguinhas o feito. Isso foi lá atrás. À medida que ela foi crescendo e sabendo das coisas, a admiração pelo pai virou constrangimento. Tanto que ela só me revelou a história depois de altos graus etílicos. A festa acabou, cada uma foi para sua casa, e nunca mais retomamos esse assunto.
Mas, por certo, pensei bastante sobre a situação. Minha amiga fazia letras na USP, em meados dos anos 1980, quando 95% dos alunos eram de esquerda, com a sociedade sedenta pelas liberdades democráticas e por novas possibilidades. Daí compreendi que o pai delegado, matador do Marighella, era uma mancha na alva toalha dos cafés da manhã dela.
Em novembro de 2013, perdi meu pai. Lá no velório, um amigo dele pediu licença para discursar. Ele exaltou o quanto o falecido foi um companheiro comprometido com as lutas da esquerda, um militante incansável. Senti um orgulho! Por momentos, estiou a chuva dentro de mim. No dia seguinte, recordei da minha amiga de quase trinta anos atrás. Pensei que nem sempre é vantajoso ter um papai matador de monstros.
*Fernanda Pompeu é escritora e colaboradora de Diálogos do Sul. ilustração Fernando Carvall


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Fernanda Pompeu

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