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Duas mulheres disputam as eleições no Peru

Paulo Cannabrava Filho

Tradução:

Paulo Cannabrava Filho*
Foto: Glória Fluguel

Duas mulheres decidem as eleições e o destino do Peru. Uma poderá levá-lo literalmente ao inferno; outra poderá abrir caminhos de construção. As eleições do dia 10 de abril estão sendo disputadas por muitos candidatos de vários partidos, mas somente duas mulheres têm chance de ir para o segundo turno: Verónika Mendoza e Keyko Fujimori, uma antípoda da outra.

Verónika Mendoza representa hoje para os peruanos a esperança. Cusquenha, tem o quéchua como idioma materno, é formada em psicologia e ciências sociais na França. Iniciou sua carreira política em Cusco e em 2010 foi eleita parlamentar pelo Ganha Peru de Cusco. Fez uma trajetória política e cultural que lhe deu mérito para poder ser candidata pela Ação Popular e a Frente Ampla.
Keyko Fujimori, filha de Alberto Fujimori, representa a memória e a ressurreição do pior que já viveu o Peru em sua história: a longa ditadura da dupla Alberto Fujimori / Vlademiro Montesinos (1990-2000): um decênio de desgoverno que deixou o Estado nas mãos do narcotráfico, institucionalizou a corrupção, promoveu a desindustrialização e a entrega das riquezas às transnacionais, e implantou o regime de terror que deixou um saldo de mais de 70 mil mortos, segundo a Comissão da Verdade.
Fujimori e Montesinos acumularam uma fortuna incalculável. Ambos estão presos, é verdade, mas sorrateiramente se mantêm na política. Keyko se lança na política com a mesma tática de seu pai. O corpo a corpo com a população e a distribuição de dinheiro e outros bens. Sua intenção é libertar seu pai. Têm todo o dinheiro do mundo e, é claro, o apoio dos grandes meios de comunicação.
Depois de uma curta transição, com Valentin Paniagua (2000-2001) foi eleito Alejandro Toledo que em 2006 foi substituído por Alan García, reeleito apesar de haver quase destruído o país quando governou de 1985 a 1990. Alan, em 2006 assinou o tratado de livre comércio com Estados Unidos, uma neocolonização do país. Em 2011 assumiu Ollanta Humala, eleito com o apoio da esquerda e o voto de esperança das massas populares de livrar-se do caos deixado por Alan.
Não demorou muito para a esquerda ser alijada do governo e perceber que havia sido enganada. Se algo mudou em matéria de política e economia e de entrega do país com a mudança de governo foi para pior: assinou o tratado da Aliança do Pacífico – proposto pelos Estados Unidos – juntamente com Chile, Colômbia, México, Costa Rica e Panamá, além de ratificar o tratado de livre comercio com EUA.
Com tudo isso, o mais grave foi a assinatura, em 2012, do tratado de cooperação política, militar e de inteligência com Estados Unidos, que foi aprovado inclusive pelo Congresso, e ter permitido o desembarque de tropas estrangeiras em território peruano. Em fevereiro de 2015 iniciou-se o desembarque de 3.200 militares com o pretexto de treinamento de peruanos e combate ao narcotráfico e terrorismo. O número de desembarcados (ou invasores?) pode chegar a dez ou doze mil.
Para a grande imprensa, tanto de lá como de cá, a economia do Peru vai bem, com melhores indicadores de crescimento que seus vizinhos. Segundo o Banco Mundial começou 2016 com crescimento de 3.3%, baixo em relação a uma média de mais de 8% entre 2005 e 2010, os mais  altos da região. Isso foi possível enquanto os preços das commodities (minerais principalmente) estiveram muito altos. E agora que estão em baixa, o que vai acontecer?
Não obstante, a qualidade de vida dos peruanos não corresponde a esse crescimento do produto interno bruto. A taxa de desemprego tem se mantido entre 6% e 10%, mas isso só registra a força de trabalho que está ativa no mercado. Não conta os que estão na informalidade nem o que acontece em áreas não urbanas do altiplano e da selva. Segundo dados oficiais 74.3% dos empregos no Peru são informais (La República, 5/6/2014).
Outro drama para os trabalhadores é que com a desnacionalização da produção e a financeirização da economia, se impôs a precarização do trabalho formal. Seguem ao pé da letra as regras do Consenso de Washington. O resultado se vê em todos os setores ligados ao social. Reduziram-se as vagas e a qualidade do ensino, bem como a atenção à saúde. Em matéria de habitação e saneamento, melhor nem falar.
A vitória de Keyko Fujimori levará ao aprofundamento de tudo isso, pois esse é o conteúdo de seu discurso e isso fatalmente aguçará as tensões sociais. Amplos setores da sociedade, principalmente da esquerda e da juventude emergente não aceitam as propostas da ultradireita e há núcleos dispostos a se insurgir, a lutar contra a destruição do país.
Já a proposta de Verónika Mendoza e da Frente Ampla é totalmente o contrário de tudo isso e emerge de amplas discussões nas bases sociais dos partidos que integram a Frente e assinala como eixo principal, a recuperação da soberania e da dignidade nacional.
Em autobiografia na web Verónika Mendoza diz que “Desde esse momento eu me apropriei da história política de meus pais: meu pai, Marcelino Mendoza foi militante da Esquerda Unida e fundador do SUTEP (Sindicato Unitário de Trabalhadores na Educação do Peru); minha mãe, Gabrielle Frisch, foi militante del Partido socialista unificado francês e partícipe da revolução cultural, social e política de Maio de 1968.
A Plataforma Programática para um governo da Frente Ampla funda-se em sete pontos básicos, apresentados em linguagem simples e direta e se forem executados significará realmente uma revolução no Peru com repercussão em toda a América Latina. Verónika expõe com coragem detalhadamente esses pontos que são consensuais da Frente Ampla em sua campanha, seus discursos, as apresentações em televisão e, basicamente, em contato com as comunidades.
Mesmo vitoriosa, não vai ser fácil a gestão para a Frente Ampla. Como diz Verónika, a dificuldade é “pôr fim a 25 anos sem pensar nas pessoas”. Pior que isso, porque além de não se preocupar com o povo, trataram de alienar as pessoas, seja através da mídia ou ações enganosas como a de dar um dinheirinho aos pobres.
Cabe alertar aqui que a atomização da esquerda é talvez a maior fraqueza das esquerdas latino-americanas e, como consequência, a grande fortaleza para a direita. Há que assinalar também a pouca duração das frentes de esquerda. Há mais de 25 organizações que se apresentam como partidos de esquerda. Caso percam as eleições se dispersam e caso ganhem brigam entre si pelo poder. Em ambos os casos se apartam das bases, dos movimentos sociais, contribuindo para uma maior fraqueza das forças progressistas.
A direita, sob o mandato dos meios hegemônicos se une em torno ao pensamento único, o pensamento imposto pelo Império, o que leva à submissão neocolonial, à servidão intelectual.
A formação de frentes políticas de esquerda já se tornou rotina, para não dizer necessidade, nas eleições peruanas. A Esquerda Unida dos anos 1990 não conseguiu deter a Apra. Hector Bejar, em recente artigo publicado no Reflexión, recorda a formação da Frente Ampla contra Fujimori em 1995, a Frente Ampla Cívico Nacional em 1996, com Gustavo Mohme e a resistência contra o fujimorismo; e a Marcha dos 4 Suyos em 2000 que culminou com a queda do regime. Sob os governos de Paniagua e de Toledo formou-se a Coordenadora Nacional de Esquerda e Forças Progressistas em 2001, a Frente Ampla de Esquerda em 2003 e a Frente pela Vida e Soberania em 2009. O 1º Encontro pela Refundação da República transcorreu em 2010.
Nas eleições de 2006, a Coordenadora Nacional de Esquerda e os Partidos Progressistas formaram a Frente Ampla de Esquerda e apresentaram candidato próprio, Alberto Moreno, da Pátria Roja, que disputou com Ollanta Humala, do Partido Nacionalista. O candidato da FAI não atingiu nem um por cento dos votos. Parte da esquerda apoiou Humala que a traiu, evidentemente.
A Frente Ampla de Esquerda era integrada pelo Partido Comunista Peruano (PCP), Partido Comunista do Peru– Pátria Vermelha, Partido Socialista Revolucionário (PSR), Frente Popular, Frente Democrática Popular (FDP), Movimento Povo Unido, Movimento Nova Esquerda (MNI), Frente Operária Camponesa Estudantil Popular (FOCAEP), Partido Nacionalista das Comunidades Andinas, e um Comitê Malpica.
Em março de 2016, enquanto preparavam mobilizações em protesto pelos 25 anos do golpe perpetrado por Fujimori/Montesinos, somente alguns desses partidos tinham se comprometido com a Frente Ampla: Partido Comunista, Partido Comunista do Peru, Partido Socialista, Cidadãos pelo Mudança, Força Social e também organizações e movimento como Terra e Liberdade.
Embora o tempo seja curto, os que apoiam a Verónika vêem que a sua candidatura está crescendo, e crêem que será ela que disputará o segundo turno com Keyko Fujimori. Em fins de fevereiro, Keyko aparecia com 35% nas pesquisas e em segundo lugar o candidato do PPK, Jimmy Ojeda com 15% e a Frente Ampla com 5%. Já em fins de março, Keyko girava em torno de 30%. Verónika com 15% y Ojeda com 12%, depois de ter sido flagrado pela mídia presenteando com eletrodomésticos os eleitores.
Para El Comercio, o decano da imprensa conservadora peruana e que controla a maioria dos meios eletrônicos as propostas de Verónika são “inquietantes”, e deixa claro que encabeçará renhida oposição e fará tudo o que puder para evitar que a esquerda ganhe, e se ganhar que realize seu programa.
E que bom seria se a Frente Ampla chegasse com Verónika Mendoza ao poder e ela mantivesse sua palavra. Teremos, realmente, um Novo Peru.
Ela permeia todo o seu discurso com a questão de que é preciso recuperar a soberania nacional. Quando era parlamentar tentou questionar o TPP – Acordo de Associação Transpacífico. Em seus discursos afirma que denunciará tanto o TPP como o acordo de Livre Comércio com Estados Unidos por considerar que violam a soberania e impedem o desenvolvimento.
Anuncia que imporá soberania sobre os recursos nacionais, petróleo e gás, e fortalecerá a Petroperu; e que porá fim à descontrolada atuação das empresas transnacionais de mineração, reivindicação das comunidades afetadas que reclamam da contaminação e desaparecimento da água e da paisagem ancestral. Cobrará os impostos devidos pela grandes empresas, algo em torno de três bilhões não cobrados.
Privilegiará o desenvolvimento regional com base na vocação de cada ecossistema da megadiversidade peruana, incentivando a pequena e micro empresa, responsável por 60 por cento do emprego, através de créditos acessíveis para o que anuncia que criará um banco de fomento.
Os camponeses, diz Verónika, produzem 70% dos produtos agrícolas consumidos no país e não estão integrados à economia formal, quando poderíamos exportar comida para todo o mundo, mundo que já respeita a gastronomia peruana.
Insiste nas questões de inclusão e igualdade social, para homens e mulheres, com plenos direitos garantidos pelo Estado, para o qual é necessário que se restabeleça a segurança jurídica.
Promete um salário mínimo de mil soles (era 250), afirma que a educação e a saúde não podem ser objeto de lucro para grandes empresas e anuncia educação e saúde pública de qualidade para todos.
Quer um Estado livre de corrupção e a serviço das pessoas. Isso requer que tudo seja visível para o público, transparente. Para isso há que combater energicamente as máfias incrustadas em todos os setores, dar melhores condições para que a polícia possa dar combate ao narcotráfico.
E como se isso já não fosse suficiente, afirma que vai procurar cada um dos 15 mil desaparecidos pela violência dos anos do terror fujimorista para entregá-los às suas famílias e garante que não haverá impunidade.
Como se vê, tem razão o velho El Comercio em tachar de “inquietantes” os planos de Verónika Mendoza e da Frente Ampla. Os países vizinhos com governos progressistas que se vêem ameaçados pelo avanço dos agentes do Império não podem economizar esforços para o avanço e consolidação da Frente Ampla peruana. Não se pode levar a cabo um projeto de integração latino-americana sem a participação do Peru.  A proposta da Frente Ampla resgata o Peru para a Nossa América.
*Paulo Canabrava Filho é jornalista editor de Diálogos do Sul.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1957. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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