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O capitalismo como religião é o título de um dos mais penetrantes fragmentos póstumos de Walter Benjamin.
Giorgio Agamben*
Há sinais dos tempos (Mt.16,2-4) que, mesmo evidentes, os homens, que perscrutam os sinais nos céus, não conseguem captar. Eles cristalizam-se em eventos que anunciam e definem a época que vem, eventos que podem passar despercebidos e não alterar em nada ou quase nada a realidade a que se juntam e que, no entanto, precisamente por isso valem como sinais, como indicadores históricos, semeia ton kairon.
Um destes eventos ocorreu em 15 de agosto de 1971, quando o governo norte-americano, sob a presidência de Richard Nixon, declarou que a convertibilidade do dólar em ouro estava suspensa. Embora tal declaração marcasse de fato o fim de um sistema que havia vinculado por longo tempo o valor da moeda a uma base em ouro, a notícia, comunicada no coração das férias estivas, suscitou menos discussões do que legitimamente se poderia ter esperado. Mesmo assim, a partir daquele momento, a inscrição, que ainda se lê em muitas cédulas (por exemplo, sobre a libra esterlina e sobre a rúpia, mas não sobre o euro), “prometo pagar ao portador a soma de…”, assinada pelo presidente do Banco Central, havia perdido definitivamente o seu sentido.
Esta frase significava agora que, em troca daquela cédula, o banco central ofereceria a quem o pedisse (admitindo que alguém fosse tão tolo para o pedir) não uma certa quantidade de ouro (por um dólar, trinta e cinco avos de uma onça), mas sim uma cédula exatamente igual. O dinheiro esvaziou-se de qualquer valor que não fosse o puramente autorreferencial. Deixa-nos ainda mais estupefatos a facilidade com que foi aceito o gesto do soberano norte-americano, que equivalia a anular o patrimônio em ouro dos possuidores de dinheiro. E se, conforme foi sugerido, o exercício da soberania monetária por parte de um Estado consiste na sua capacidade de induzir os atores do mercado a empregarem os seus débitos como moeda, agora também o débito tinha perdido toda referência real, tornando-se puramente de papel.
Desmaterialização da moeda
O processo de desmaterialização da moeda começou muitos séculos antes, quando as exigências do mercado levaram a vincular à moeda metálica, necessariamente escassa e um estorvo, letras de câmbio, cédulas, juros, goldschmith’s notes, etc. Todas estas moedas de papel, na realidade, são títulos de crédito e, por isso, são chamadas de moedas fiduciárias. A moeda metálica, por sua vez, valia – ou deveria valer – pelo seu conteúdo de metal precioso (aliás, como se sabe, inseguro: o caso limite é o das moedas de prata cunhadas por Frederico II, que logo depois de ser usada deixava aparecer o vermelho do cobre). Contudo, Schumpeter (que vivia, sim, numa época em que a moeda de papel já havia superado a moeda metálica) pôde afirmar, e com razão, que, em última análise, todo o dinheiro é apenas crédito. Depois de 15 de agosto de 1971, deveríamos acrescentar que o dinheiro é um crédito que se funda unicamente em si mesmo e que não corresponde se não a si mesmo.
Benjamin e o capitalismo como religião
O capitalismo como religião é o título de um dos mais penetrantes fragmentos póstumos de Benjamin. Já foi observado mais vezes que o socialismo era algo como uma religião (entre outros autores, para Schmitt, “o socialismo pretende dar vida a uma nova religião que, para os homens dos séculos XIX e XX, teve o mesmo significado que o cristianismo para os homens de dois mil anos atrás”). Segundo Benjamin, o capitalismo não representa apenas, como acontece em Weber, uma secularização da fé protestante, mas é ele próprio em fenômeno religioso, que se desenvolve de modo parasitário a partir do cristianismo. Como tal, como religião da modernidade, ele é definido por três características:
1.- É uma religião cultual, talvez a mais extrema e absoluta que jamais tenha existido. Nela tudo só tem significado se for referido ao cumprimento de um culto, e não a um dogma ou a uma ideia.
2.- Este culto é permanente, é “a celebração de um culto sans trêve et sans merci”. Não é possível, aqui, distinguir entre dias de festa e dias de trabalho, mas há um único e ininterrupto dia de festa-trabalho, no qual o trabalho coincide com a celebração do culto.
3.- O culto capitalista não está destinado a trazer redenção ou a expiação de uma culpa, mas destinado à própria culpa. “O capitalismo é talvez o único caso de culpa não expiante, mas culpabilizante. Uma monstruosa consciência culpada que não conhece redenção transforma-se em culto, não para expiar nisso a sua culpa, mas para a tornar universal… e para, no final, capturar o próprio Deus na culpa… Deus não morreu, mas foi incorporado no destino do homem”.
Precisamente porque tende com todas as suas forças não à redenção, mas à culpa, não à esperança, mas ao desespero, o capitalismo como religião não tem em vista a transformação do mundo, mas a sua destruição. E o seu domínio é, em nosso tempo, tão total que até os três grandes profetas da modernidade (Nietzsche, Marx e Freud) conspiram, segundo Benjamin, com ele, são solidários, de algum modo, com a religião do desespero. “Esta passagem do planeta homem pela casa do desespero na absoluta solidão do seu percurso é o ethos que define Nietzsche. Este homem é o Sobre-homem, ou seja, o primeiro homem que começa conscientemente a realizar a religião capitalista”. Mas também a teoria freudiana pertence ao sacerdócio do culto capitalista: “o que foi removido, a representação pecaminosa… é o capital, sobre o qual o inferno do inconsciente paga os juros”. E, em Marx, o capitalismo, com os juros simples e compostos, que são função da culpa… transforma-se imediatamente em socialismo”.
Em que crê o capitalismo?
Tentemos tomar a sério e a desenvolver a hipótese de Benjamin. Se o capitalismo é uma religião, como podemos defini-lo em termos de fé? Em que crê o capitalismo? E o que implica, com respeito à fé, a decisão de Nixon? David Flüsser, grande estudioso de ciência das religiões – existe também uma disciplina com este estranho nome – estava trabalhando sobre a palavra pistis, que é o termo grego que Jesus e os apóstolos usavam como “fé”. Naquele dia achava-se por acaso numa praça de Atenas e a uma certa altura, erguendo os olhos, viu escrito em caracteres cubitais diante de si Trapeza tes pisteos. Estupefato pela coincidência, olhou melhor e após alguns segundos se deu conta de se encontrar simplesmente na frente de um banco: trapeza tes pisteos significa em grego “banco de crédito”. Eis o sentido da palavra pistis – fé – é simplesmente o crédito de que gozamos junto a Deus e de que a palavra de Deus goza junto de nós, a partir do momento em que cremos nela. Por isso Paulo pode afirmar, em famosa definição, que a “fé é substância de coisas esperadas” (1): ela é aquilo que dá crédito e realidade àquilo que ainda não existe, mas em que cremos e temos confiança, em que colocamos em jogo o nosso crédito e a nossa palavra. Creditum é o particípio passado do verbo latino credere: e aquilo em que cremos, em que colocamos a nossa fé, quando estabelecemos uma relação fiduciária com alguém tomando-o sob a nossa proteção ou emprestando-lhe dinheiro, confiando-nos à sua proteção ou tomando de empréstimo dele algum dinheiro. Na pistis paulina volta a viver a antiquíssima instituição indo-europeia que Benveniste reconstruiu, a “fidelidade pessoal”: “Aquele que detém a fides posta nele por um homem mantém tal homem em seu poder… Na sua forma primitiva, esta relação implica uma reciprocidade: por a própria fides em alguém proporcionava, em troca, a sua garantia e a sua ajuda”.
Capitalismo: religião fundada sobre a fé
Se isso for verdadeiro, então a hipótese de Benjamin de que há uma estreita relação entre capitalismo e religião acaba recebendo uma nova confirmação: o capitalismo é uma religião inteiramente fundada sobre a fé, é uma religião cujos adeptos vivem sola fide (unicamente da fé). E se, segundo Benjamin, o capitalismo é uma religião na qual o culto se emancipou de todo objeto e a culpa se emancipou de todo pecado, e, portanto, de toda possível redenção. Então, do ponto de vista da fé, o capitalismo não tem nenhum objeto: crê no puro fato de crer, no puro crédito (believes on the pure belief), ou seja, no dinheiro. O capitalismo é, pois, uma religião em que a fé – o crédito – ocupa o lugar de Deus; dito de outra maneira, pelo fato de o dinheiro ser a forma pura do crédito, é uma religião em que Deus é o dinheiro.
Isso significa que o banco, que nada mais é do que uma máquina para fabricar e gerir crédito (Braudel, p. 368), tomou o lugar da Igreja e, ao governar o crédito, manipula e gere a fé – a escassa e incerta confiança – que o nosso tempo ainda conserva em si mesmo.
Crédito: ser imaterial
O que significou, para esta religião, a decisão de suspender a convertibilidade em ouro? Certamente constituiu uma espécie de elucidação do próprio conteúdo comparável à destruição mosaica do bezerro de ouro ou à fixação de um dogma conciliar – em todo caso, trata-se de uma passagem decisiva para a purificação e a cristalização da própria fé. Esta – na forma do dinheiro e do crédito – emancipa-se agora frente a toda referência externa, cancela o seu nexo idolátrico com o ouro e se afirma na sua absolutidade. O crédito é um ser puramente imaterial, a mais perfeita paródia da pistis, que nada mais é do que “substância das coisas esperadas”. A fé – assim dizia a célebre definição da Carta aos Hebreus – é substância – ousia, termo técnico por excelência da ontologia grega – das coisas esperadas. O que Paulo quer dizer é que aquele que tem fé, que pôs a sua pistis em Cristo, toma a palavra de Cristo como se fosse a coisa, o ser, a substância. Mas é precisamente este “como se” que a paródia da religião capitalista cancela. O dinheiro, a nova pistis, é, agora imediatamente e sem resíduos, substância. O caráter destrutivo da religião capitalista, de que falava Benjamin, aparece aqui na sua plena evidência. A “coisa esperada” não existe mais, e foi aniquilada e deve sê-lo, pois o dinheiro é a essência última da coisa, a sua ousia no sentido técnico. E dessa maneira elimina-se o último obstáculo para a criação de um mercado da moeda, para a transformação integral do dinheiro em mercadoria.
A sociedade condenada a viver de crédito
Uma sociedade cuja religião é o crédito, que crê apenas no crédito, está condenada a viver de crédito. Robert Kurz ilustrou a transformação do capitalismo do século XIX, ainda fundamentado na solvência e na desconfiança com relação ao crédito, no capitalismo financeiro contemporâneo. “Para o capital privado do século XIX, com os seus proprietários pessoais e com os relativos clãs familiares, valiam ainda os princípios da respeitabilidade e da solvência, à luz dos quais o recurso cada vez maior ao crédito aparecia quase como algo obsceno, como o início do fim. A literatura popular da época está cheia de histórias em que grandes estirpes caem em ruína por causa da sua dependência do crédito: em algumas passagens dos Buddenbrook, Thomas Mann fez disso até mesmo um tema que mereceu um Prêmio Nobel. O capital produtivo de juros era naturalmente, desde o início, indispensável para o sistema que se estava formando, mas ainda não tinha importância decisiva na reprodução capitalista no seu conjunto. Os negócios do capital “fictício” eram considerados típicos de um ambiente de trapaceiros e de pessoas desonestas, à margem do capitalismo propriamente dito… Além disso, Henry Ford rejeitou por muito tempo o recurso ao crédito bancário, obstinando-se em querer financiar os seus investimentos unicamente com o próprio capital” (R. Kurz, La fine della politica e l’apoteosi del denaro, Roma, 1997, p. 76-77; Die Himmelfahrt des Geldes, em “Krisis”, 16, 17, 1995).
A hipoteca antecipada do trabalho
No decurso do século XIX, esta concepção patriarcal dissolveu-se completamente, e o capital das empresas hoje recorre em medida crescente ao capital monetário, tomado de empréstimo junto ao sistema bancário. Isso significa que as empresas, para poderem continuar a produzir, devem por assim dizer hipotecar antecipadamente quantidades cada vez maiores do trabalho e da produção futura. O capital produtor de mercadorias alimenta-se ficticiamente do próprio futuro. A religião capitalista, em coerência com a tese de Benjamin, vive de um contínuo endividamento que não pode nem deve ser extinto. Mas não são apenas as empresas que vivem, neste sentido, sola fide, a crédito (ou a débito). Também os indivíduos e as famílias, que recorrem a isso de modo crescente, estão da mesma forma religiosamente envolvidos neste contínuo e generalizado ato de fé sobre o futuro. E o Banco é o sumo sacerdote que ministra aos fiéis o único sacramento da religião capitalista: o crédito-débito.
(*) Filosofo italiano. Doutorado na Universidade de Roma com uma tese sobre o pensamento político de Simone Weil. Foi aluno de Martin Heidegger entre 1966 y 1968. É professor de Filosofia na Universidade de Verona, Itália, no Collège International de Philosophie de Paris e na Universidade de Macerata na Itália; ensina também Iconografía no Instituto Universitário de Venecia. Em “Bitácora” de Uruguay.
Tradução de Selvino J. Assmann, professor da UFSC