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Ceci Juruá: Brasil vive novo período econômico de ideologias internacionais?

Através da análise da economista Ceci Juruá, entenda porque Dany Dufour é leitura indispensável não só para economistas, mas também para brasileiros devotados à construção de uma sociedade democrática e justa em nova era
Ceci Juruá

Tradução:

Comecei a ler a obra de Dany Robert Dufour há cerca de dez anos, devo confessar que suas reflexões me impactaram profundamente. Na minha leitura, Dufour nos convidava a refletir sobre uma nova situação psíquica dos seres humanos nesses tempos dominados pelo pós-modernismo.  Se é verdade, como pensou Karl Marx, que a ideologia de cada indivíduo vincula-se às condições materiais de vida, a mudança em curso nas relações sociais de produção, desde as décadas de 1970 e 1980, acabaria por levar ao aparecimento de novas subjetividades. Ou, nas palavras de Dufour: 

Há uma mudança radical no jogo das trocas, que traz consigo uma verdadeira mutação antropológica. (…) Esse novo estado do capitalismo é o melhor produtor do sujeito esquizóide, esse da pós-modernidade.

Através da análise da economista Ceci Juruá, entenda porque Dany Dufour é leitura indispensável não só para economistas, mas também para brasileiros devotados à construção de uma sociedade democrática e justa em nova era

Wikimedia Commons / mod.JBPn
A obra de Dufour foi valiosa para os economistas, permitindo ampliar possibilidades de interpretação da vida social e pessoal

No Brasil, sentíamos que estava ocorrendo algo diferente na sociedade e no interior de cada indivíduo. Por um lado era visível a substituição do sentimento de solidariedade humana e familiar pelo egoísmo individualista. Que cada um trate de sua vida e ocupe-se da sua felicidade, era e é o pensamento dominante sobretudo nas grandes cidades brasileiras. Algo distinto de meu tempo de criança, quando cada pessoa era portadora de deveres e obrigações, e ser feliz era um estado de espírito de ocorrência eventual. Momento raro e desejável, ser feliz era quase uma graça dos céus!

Expressão que se tornou frequente entre os jovens nos primeiros anos do século XXI, apontava o novo “imperialismo da economia”.  Tudo – estudos, prazeres, afetos – era visto como passível de submissão a testes de custo-benefício. Ora, ora! Escutar o elogio da regra de análise “custo-benefício” na boca de pessoas que desconhecem o conceito e nem sabem calcular custos,  me causava surpresa e inquietação.  Boquiaberta, às vezes, ao verificar que raros  indivíduos sabiam fazer a diferença e/ou analogia entre benefícios e lucros…

Percebíamos então, que ideologias produzidas fora, muito longe do Brasil, e muito perto de Chicago, intrometiam-se no nosso cotidiano, em nossos espíritos, em nossas manifestações de vida social. Sentíamos também por aqui um certo culto à liberação anárquica que ameaçava destruir, sem culpa, nem remorso, o que pudesse parecer entrave à liberdade de opção dos indivíduos. Egoísmo e o primado da liberdade individual eram motivações poderosas induzindo à crítica da ação do Estado nas funções essenciais de regulação social e de defesa dos direitos humanos. Não só no Brasil, mas também no conjunto de países institucionalmente frágeis, dependentes e/ou submissos.

Perante tais inquietações intelectuais, Dufour nos oferecia alternativas de compreensão. Dizia ele que, em um mundo onde tudo tende a se tornar mercadoria, do ponto de vista dos poderosos: 

…é preciso não apenas menos Estado, mas menos de tudo o que poderia entravar a circulação de mercadorias. (A Arte de reduzir cabeças, p.197.  Editora Campo Matêmico. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005)

A arte de reduzir cabeças

Ao tomar conhecimento de A arte de reduzir cabeças, fiquei seduzida pelos novos horizontes colocados nessa obra, verdadeiro desafio para economistas que cultivam apego, respeito, à filosofia e à história como cenários indispensáveis à compreensão da vida econômica. Tratava-se, contudo, de um livro de leitura difícil para os não psicólogos, nem psicanalistas. Confesso que só comecei a entender melhor as ideias ali apresentadas após a segunda leitura.

Como teste pessoal, eu me propus a elaboração de um artigo sobre aquele livro, com o qual eu acabava de travar conhecimento e pelo qual senti, de pronto, grande respeito e afinidade ideológica. Escrevi então o artigo Capitalismo e constituição do sujeito, em desafio à minha própria insegurança. Consegui estabelecer algumas pontes metodológicas que me foram de grande auxílio. Em primeiro lugar com um clássico do marxismo inglês, Maurice Godelier. Em seguida recorri a Erich Fromm, um dos pioneiros na análise da transformação de indivíduos, ou subjetividades, ao longo do processo de formação do capitalismo. Fromm foi um dos primeiro autores onde encontrei pistas para entender o longo percurso necessário à captura do universo individual e do conjunto de valores humanos pelo “Mercado”.

Com tais pontes metodológicas e conceituais, e mediante consulta à Ideologia alemã, de Marx-Engels, foi possível enfrentar os desafios colocados às tentativas de compreensão da dita “Ciência Econômica” na pós-modernidade, e seu cartão de visita com uma pretensa nova racionalidade. Iniciar, assim, a dissecação do mito “Homo Oeconomicus”, um ser egoísta e racional que direciona satisfação e prazeres conforme pulsões e no objetivo exclusivo de maximizar as diferentes modalidades de consumo.  Para tanto, é necessário posicionar o indivíduo em permanente atenção ao sistema de preços do mercado, sistema dinâmico e flexível sempre que perfeitamente competitivo. Tantos mitos. Tantas ficções!

Por tudo que acabo de esboçar, posso afirmar que a obra de Dufour foi valiosa para os economistas que com ela travaram conhecimento, permitindo ampliar possibilidades de interpretação da vida social e pessoal, até a fronteira dos desejos humanos, individuais, egoístas ou não.  Foi uma oportunidade que favoreceu a compreensão das reais necessidades individuais e sociais, tão mal interpretadas nas muitas “teorias da escassez”. Refiro-me à compreensão intelectual.  

Ao terminar aquele primeiro artigo, publicado em 2009 na revista Oikos (UFRJ), com o título “Capitalismo e constituição do sujeito”, manifestei minha crença que o capitalismo, no modelo que emergiu nos anos 1980, em plena pós-modernidade, apresentava, entre outras vantagens competitivas (no campo da ideologia e sob o ponto-de-vista dos dominadores), a possibilidade de desmonte das instituições e de troca dos padrões individuais de simbolização.  

Foi este, em parte, o terremoto que nos atingiu e nos derrotou em maio de 2016: a dissolução das instituições básicas do modelo vigente desde 1930, desenvolvimentista e industrializante, no padrão europeu da social democracia.

A leitura do conjunto da obra de Dany Robert Dufour é indispensável para todo economista e para brasileiros devotados à construção de uma sociedade democrática e justa, solidária, empenhada na paz mundial. Entre os livros já traduzidos para o português eu destaco A Cidade Perversa. Obra prima, na qual foram dissecados os princípios e procedimentos, os fundamentos, para emergência de uma nova ordem mundial tendo como centro cultural a América do Norte.  Entenderemos melhor este retorno ao capitalismo liberal se houver clareza filosófica sobre os traços culturais básicos que predominam nos Estados Unidos da América do Norte.  Entendi que esta é uma questão central abordada em A Cidade Perversa.

Recentemente Dufour publicou outros dois livros na França. O belíssimo L'individu qui vient, cuja leitura nos incita a repensar nossa história e formular uma nova narrativa, mais real, mais fiel aos sonhos e às aspirações históricas dos brasileiros. Eu diria simplesmente, após a leitura de Dufour, que a melhor sociedade é aquela que se configura de acordo com a cultura e os símbolos da Pátria, isto é, a terra onde nascemos e nos educamos. A terra e a sociedade que queremos legar à nossos filhos.

O último livro de Dufour tem por título La Fable des Abeilles, uma fábula política escrita por Bernard de Mandeville na virada do século XVII para o XVIII, e simplificada na frase “os vícios privados fazem as virtudes públicas”.  Entendi que, na visão de Dufour, Adam Smith “bebeu nas águas” que afloraram filosoficamente da fábula de Mandeville. Por isto, e por tantas outras comprovações históricas, somos levados a pensar e a defender o ponto-de-vista que o neoliberalismo é profundamente desumano, selvagem, base cultural da barbárie que se desvela perante nossos olhos.  

*Colaboradora de Diálogos do Sul


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Ceci Juruá

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