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ToggleEm memória a uma tragédia ocorrida em Shaperville, na África do Sul, em 1960, a ONU decretou o 21 de março como dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial. E hoje nos lembramos mais uma vez dessa data, sendo convocadas a renovar nosso pacto de compromisso com a luta pela reparação do povo negro. Mas, como eliminar a discriminação racial se os beneficiários do sistema de exclusão a ele não se opuserem, juntando-se aos oprimidos, com o fim de demovê-lo? Como eliminar a discriminação sem que se busque reparar o mal que foi perpetrado ao conjunto dos povos africanos e a seus descendentes ao redor do mundo? Não se pode queimar etapas, antes da superação da discriminação racial vem a reparação do povo negro.
A agenda da reparação, que havia perdido forças no final do século passado, posto que relegada como utópica, vem se fortalecendo novamente no Brasil, Estados Unidos, América Latina, assim como na Europa. Compreende-se que a ideia de reparação inclui um conjunto de medidas que derivem de um fator central: o reconhecimento moral e político acerca do crime de escravidão por parte do Estado e da sociedade.
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Reconhecimento que dará lugar à reparação moral e ao ressarcimento material das vítimas e seus descendentes, como também à valorização do direito à memória e à verdade, elementos essenciais para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática e igualitária.
Diante do imperativo da reparação, que se impõe ao Estado e sociedade brasileira, surge a seguinte questão: a atualmente tão propalada reforma do sistema tributário nacional pode dar ocasião para que se implementem medidas reparatórias em favor da população negra?
Acreditamos que sim, pois defendemos que a lógica subjacente ao conjunto de decisões políticas, que alterarão o sistema tributário nacional, deve ser que os grupos mais favorecidos pelo arranjo político-jurídico e econômico do país, sejam também os principais responsáveis pelo pagamento de tributos. Não é isso o que ocorre no Brasil atualmente. No país, os mais pobres, as classes médias e os funcionários públicos são os principais pagadores de tributos, ficando os mais ricos proporcionalmente desonerados.
Nesse contexto, a população negra – sobrerrepresentada na pobreza – sofre com uma pesada carga tributária. Arca, dessa forma, com suas obrigações econômicas na manutenção do Estado brasileiro, sem conseguir, no entanto, gozar de seus direitos. Compreendemos que um Estado que historicamente explorou, perseguiu e abandonou o povo negro, não deve impor a essa parcela da população tratamento tributário semelhante àquele imposto aos que sempre se beneficiaram da ação estatal. Nossa posição se apoia, portanto, em três pilares argumentativos.
Foto: Marcello Casal jr/Agência Brasil
No Brasil, a população negra acumulou desvantagens em diversas dimensões da existência humana, como também na patrimonial
Justiça econômica
O primeiro compreende que, em um estado democrático de direito, o sistema tributário deve buscar a justiça econômica, devendo a imposição fiscal obedecer ao princípio da capacidade contributiva. Neste sentido, cada pessoa deve pagar de acordo, não apenas com seu rendimento, como comumente se afirma e prática, mas também com suas posses, ou seja, em conformidade com os bens que acumulou em família ou individualmente.
Dessa forma, o sistema tributário deve obedecer tanto ao princípio da equidade vertical – que estabelece que todas as pessoas que auferem os mesmos rendimentos devem pagar uma percentagem idêntica de tributos –, como também ao da equidade horizontal – que implica que aqueles que estão em diferentes circunstâncias sociais e econômicas, mesmo se auferirem a mesma renda, devem pagar tributos de modo diverso, de acordo com sua situação material.
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No Brasil, a população negra acumulou desvantagens em diversas dimensões da existência humana, como também na patrimonial. De outro lado, as parcelas brancas da população foram direta ou indiretamente incentivadas pelo Estado na acumulação de vantagens sociais e econômicas. Por essa razão, compreendemos que a população negra deve, além de ter acesso a políticas sociais afirmativas, ser submetida a um regime tributário específico, que seja diferente daquele ao qual é submetida a população branca.
Populações desumanizadas
O segundo argumento, compreende que as populações negra e indígena foram desumanizadas e ativamente perseguidas, primeiro pelos colonizadores europeus e depois pelo Estado brasileiro, sendo os povos originários largamente explorados, expropriados e exterminados. Do mesmo modo, a população negra foi sequestrada, expropriada, explorada e escravizada. Em seguida, no pós-abolição, foi abandonada e duramente perseguida pelo Estado brasileiro. Abandonada porque, no período que se seguiu à abolição, a ela foi negado, entre outras coisas, o acesso à escola, ao trabalho assalariado, à propriedade privada e ao cultivo de suas práticas culturais. Foi duramente perseguida, porque se tornou, desde o final do século XIX, com a Lei da Vadiagem, o público preferencial para o encarceramento e para a violência policial.
No início do século XX, milhares de pessoas negras foram arrancadas de suas residências, nos cortiços das principais cidades do país, como, por exemplo, se deu no caso da operação “Bota abaixo”, no Rio de Janeiro, no ano de 1903. Expulsas de suas casas, foram levadas a se abrigar em barracos construídos com suas próprias mãos nos morros da cidade e nas regiões periféricas. São ainda abandonadas e perseguidas hoje, o que fica evidente quando observamos as prisões, favelas e comunidades pobres em todo o Brasil, verificando que nesses territórios o Estado apenas se faz representar por meio de seu braço armado, que não cansa de atentar contra a vida das pessoas negras empobrecidas que ali habitam.
Desamparo Estatal
O terceiro argumento sugere que, embora também haja pessoas brancas em situação de total desamparo estatal, essa condição não se deve a sua origem étnico-racial, nem à perseguição ativa do Estado contra elas, mas a fatores outros, que se apresentam como faceta do próprio sistema econômico vigente. Esse sistema excludente que nos últimos 50 anos se estrutura a partir de uma lógica financista, em modelo que apresenta caráter inteiramente antissocial, como já denunciava Keynes.
Diante disso, as sociedades ocidentais contemporâneas convivem com uma crescente massa de pessoas consideradas “inúteis” ou inadequadas para o sistema, e testemunham o acirramento das desigualdades sociais.
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Esse problema, no entanto, não se confunde com as questões raciais apresentadas no segundo argumento, mas as agravam. Porém, no que tange às políticas de reparação por meio do sistema tributário, o conjunto das populações historicamente excluídas, em situação de total desamparo, devem também dela se beneficiar.
Eliane Barbosa da Conceição | Colaboradora da Diálogos do Sul
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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