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Ricardo Stuckert / PR

Nova Indústria Brasil: por que reconstrução proposta por Lula incomoda as elites?

Burguesia, que descobriu formas cômodas de conservar riqueza material e poder, vê projeto como desnecessário – e até mesmo indesejável
Antonio Martins
Outras Palavras
São Paulo (SP)

Tradução:

“Subdesenvolvimento não se improvisa – é obra de séculos”, escreveu certa vez Nelson Rodrigues. Entre 1930 e 1980, o crescimento contínuo e acelerado da indústria brasileira tornou-a a mais diversa e avançada entre os países do Sul Global. Fazia inveja aos chineses, que vieram conhecê-la de perto. Mas este breve lapso, em meio à maldição colonial do país, foi desde então meticulosamente sepultado.

O Brasil sofreu “a desindustrialização prematura mais brutal do capitalismo”, nas palavras do economista Paulo Morceiro, especialista no tema. Entre 1984 e 2022, a participação da indústria no PIB despencou de 27,3% para 12,9% – abaixo do que fora em 1947. E a produção industrial brasileira reduziu-se a apenas 1,32% da mundial – atrás de países como Índia, México, Rússia e Indonésia. Ainda assim, na última terça-feira (22/1), quando o governo federal apresentou, depois de muito tempo, uma nova proposta de política industrial, a elite econômica do país reagiu com frieza. O real e a Bolsa caíram. Nos jornais e TVs, afirmou-se que os recursos necessários para recuperar a indústria “geram uma incerteza muito grande no curto prazo”. O ministro da Fazenda faltou ao ato de lançamento da nova política.

O plano – denominado Nova Indústria Brasil e disponível na íntegra aqui – tem virtudes, limites e sobretudo incertezas. Elas serão resolvidas pela força política que cada setor social souber exercer, nos próximos meses. O economista Marco Antonio Rocha, professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Núcleo de Economia Industrial e Tecnologia da mesma universidade, construiu uma síntese que talvez possa ser apresentada em quatro pontos:

1. Ideia central supera antigos problemas

A proposta tem concepção avançada. Está em sintonia com mudanças na concepção de política industrial que estavam latentes desde a crise financeira de 2008 e se consolidaram no pós-pandemia. Já não se trata de lançar programas pontuais, como o apoio a setores industriais específicos (ou, no Brasil, a aposta nos “campeões nacionais”). Aposta-se numa visão sistêmica segundo a qual a emergência de uma indústria forte depende de um feixe de ações: desenvolvimento de Ciência e Tecnologia, apoio de bancos públicos, formação e infraestrutura, entre outras. Já não se acredita numa globalização sem barreiras. Busca-se a construção de cadeias produtivas resilientes, capazes de persistir mesmo diante de choques externos relevantes.

O Brasil sofreu “a desindustrialização prematura mais brutal do capitalismo”

Na formulação da nova política, participou a economista Mariana Mazzucato (leia seu artigo a respeito). Conhecida por suas opiniões contra-hegemônicas, ela destaca com insistência o papel central do Estado na indução e no direcionamento das políticas econômicas. Zomba dos que creem na “mão invisível dos mercados”. Construiu um projeto baseado em sua conhecida opção por “missões” – ou seja, objetivos que as sociedades devem dar a si mesmas, e nos quais a indústria tem papel relevante. No caso brasileiro, são seis: a) cadeias agroindustriais sustentáveis; b) Complexo Econômico e Industrial da Saúde; c) Infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis; d) transformação digital da indústria; e) bioeconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas; e f) soberania e defesa nacionais.

Mazzucato trabalhou em bases férteis, ressalva Marco Antonio. O pensamento econômico brasileiro – em especial em universidades como a Unicamp e a UFRJ – é profundo, profícuo e atualizado, em relação ao debate e formulação de políticas industriais.

2. O “arcabouço fiscal” pode bloquear o dinheiro

É precisamente por seu caráter sistêmico e abrangente que as políticas industriais contemporâneas, como a anunciada pelo governo, requerem muitos recursos, frisa Marco Antonio. Mariana Mazzucato parece lhe dar razão. No texto em que descreve o desafio brasileiro, ela lembra que as estratégias semelhantes, desencadeadas recentemente pelos EUA e União Europeia, envolverão, cada uma, recursos de aproximadamente 2 trilhões de dólares.

Marco Antonio Rocha, da Unicamp: o plano é bom, só lhe falta dinheiro…
Os investimentos são muito vultosos – e amadurecem a médio e longo prazos, precisamente por envolverem feixes de políticas. Incluem do desenvolvimento científico e tecnológico à infraestrutura (ferrovias, estradas, portos, aeroportos, metrôs, por exemplo); das compras governamentais (dirigidas a favorecer as indústrias nascentes ou renascentes) à formação profissionalO Brasil tem condições de realizá-los?

Só nos 12 meses encerrados em dezembro, o Tesouro pagou aos credores da dívida pública R$ 660 bilhões em juros. Mas no primeiro semestre de 2023, sob liderança do ministério da Fazenda, o governo se autoimpôs o “Novo Arcabouço Fiscal”, que limita todos os outros tipos de gasto. Por isso, os recursos do Orçamento dedicados ao Nova Indústria Brasil são, até agora, muito limitados. O governo fala em R$ 300 bilhões, ao longo de quatro anos. Marco Antonio Rocha compara: é mais ou menos o mesmo que havia entre 2012 e 2013, com Dilma – e à época, a indústria brasileira continuou definhando…

3. Setores atrasados têm peso demais nas decisões

O pesquisador da Unicamp acrescenta um problema. Ao menos formalmente, a condução do Nova Indústria Brasil foi delegada a um órgão minado por interesses paroquiais e ideias antigas: o Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI). Criado em 2004 e reanimado em 2023, após oito anos inativo, tem composição mais favorável à defesa de pequenos interesses que à gestação de planos ousados. Dele participam o BNDES, 20 ministérios e 21 “representantes da sociedade civil” – dos quais 18 entidades empresariais setoriais a três centrais sindicais. É mais um resultado da composição heterogênea do governo, associada à ausência de um projeto claro por parte da esquerda.

As associações empresariais, em especial, acostumaram-se a assistir impávidas à desindustrialização do Brasil, enquanto seus membros sobreviviam de pequenas benesses do Estado. Subsídios e isenções fiscais mantiveram por décadas as empresas à tona – mas sem elã, sem ambição de saltos tecnológicos e, acima de tudo, sem compromisso com o país. Seu ramerrão recorrente, considera Marco Antonio, é o chamado “custo Brasil”. “Querem menos direitos trabalhistas, menos impostos, menos país”.

“Farinha pouca, meu pirão primeiro”, lembra o pesquisador. “Diante de um programa com recursos limitados, a tendência é que estas entidades tentem abocanhar o dinheiro sem promover reindustrialização alguma”.

4. A incógnita é o papel do BNDES

Os recursos do Orçamento estão bloqueados pelo “arcabouço fiscal”; mas o BNDES, que tem fontes próprias e papel central no novo projeto, poderá impulsionar o Nova Indústria? Em março do ano passado, quando o governo ainda engatinhava, o presidente do Banco, Aloizio Mercadante, promoveu seminário que suscitou ideias para uma política econômica totalmente distinta do ramerrão atual. Terá, agora, vontade e espaço político para adotá-las?

Marco Antonio Rocha lembra de um obstáculo. Ao tramitar no Congresso, o “arcabouço” tornou-se ainda mais draconiano. Um dispositivo incluiu, entre as despesas limitadas pelo novo limite de gastos, os possíveis aportes do Tesouro em bancos públicos.

Mas os bancos – tanto públicos, quanto privados – têm instrumentos para criar dinheiro, ao oferecer créditos muitas vezes superiores a seus ativos. O BNDES estaria disposto a cumprir este papel? O também economista Elias Jabbour, que hoje assessora Dilma Rousseff no Banco dos Brics, em Xangai, parece cultivar esta esperança. Ele tem lembrado que quase todas as políticas industriais relevantes são financiadas por bancos públicos, não por recursos orçamentários. Por que o Brasil, que necessita tão desesperadamente reindustrializar-se, não poderia também lançar mão deste recurso?

* * *

E eis que regressamos a Nelson Rodrigues. Ao longo das últimas quatro décadas, a desindustrialização não foi um acidente – mas uma regressão incessantemente produzida e reafirmada. Em torno dela cresceram interesses poderosos, que sustentam uma incessante máquina de propaganda, capaz de produzir narrativas rebuscadas.

O colapso da indústria brasileira é composto de três choques, seguidos de uma queda lenta, porém constante. Os três grandes descensos resultaram da crise financeira e cambial de 1981-83, ainda sob a ditadura; da abertura indiscriminada das fronteiras, com Collor de Mello (em 1990); e da hipervalorização do real, acrescida de nova rodada de abertura, com Fernando Henrique Cardoso (a partir de 1994). O declínio subsequente foi interrompido, em parte, por um soluço positivo, porém fugaz, no início dos anos 2000.

Mas nestes mais de 40 anos, enquanto o país empobrecia e regredia, a política econômica foi capaz de assegurar à antiga burguesia industrial e seus associados formas cômodas de conservar riqueza material e poder. A transição se deu por meio de instrumentos de rentismo – ou seja, captura da riqueza social por meios parasitários, fora da esfera da produção. A taxa de juros mais alta do mundo.

A privatização e as concessões de serviços públicos. A mercantilização da vida. Um sistema de tributos que poupa as elites e obriga as maiorias a sustentar o peso da máquina estatal. A extração das riquezas agrícolas e minerais, quase isenta de impostos. A possibilidade de explorar quase sem limites o trabalho precarizado, num país em que as profissões mais numerosas voltaram a ser as de natureza servil.

Este conjunto de mecanismos torna a reconstrução da indústria desnecessária – e mesmo indesejável – para os rentistas. Daí os editoriais mal-humorados, a queda da Bolsa e do real, a possível explicação para a ausência do ministro da Fazenda no ato de lançamento da nova política.

Há quem tenha medo do Nova Indústria. Haverá, para as maiorias, motivos para acreditar no projeto? A resposta, como se viu, está por construir.


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Antonio Martins

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