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Cannabrava | Ou o Brasil acaba com governo ou governo acaba com Brasil

"Qualquer plano para o Brasil tem que começar com a recuperação da independência e soberania. Fora isso, é engano". Puro blá-blá-blá ou messianismo
Paulo Cannabrava Filho
Diálogos do Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

A Estratégia de  Desenvolvimento para o Brasil de 2020 a 2031 é uma obra de ficção para enganar trouxas. Alguns objetivos seriam possíveis se isto aqui, este nosso querido Brasil, fosse um estado independente. Na condição de colônia, tudo favorece o capital financeiro e a metrópole colonial, no caso, os Estados Unidos.

Na economia, como solução para o desenvolvimento, o plano aponta para mais dez anos de pibinho, o mesmo que a recessão da última década. 

Não se pode olhar o plano divorciado das práticas do governo, as medidas que, com antecipação e muita pressa, vêm sendo tomadas. Com esses dados nas mãos, o plano realmente torna-se risível. 

A primeira coisa que salta à vista no documento é a linguagem. Nada a ver com os documentos até agora expedidos pelo governo. A segunda é a absoluta incoerência. Fala de um país maravilhoso, apontando metas absolutamente incompatíveis com a prática governamental.

Comecemos com alguns desses pontos da prática governamental a serem considerados.

  1. No Senado tramita um projeto de independência do Banco Central;
  2. Outro projeto pretende dar à Petrobras o status de embaixada, para que fique livre da legislação brasileira. O Supremo (STF) já concordou que ela pode se desfazer de todos os seus ativos, ninguém tem nada com isso.
  3. Decreto assinado por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes autoriza a equipe econômica a preparar um modelo de privatizações para unidades básicas de saúde. A norma foi publicada nesta terça-feira (27) no Diário Oficial da União.
  4. No dia seguinte, o cara que ocupa a presidência anulou o Decreto. Meu amigo doutor Zelik trajver, que cuida da saúde indígena no Mato Grosso Sul, me alertou. Não se iluda…. não mudaram a intenção.
  5. Senado aprovou em junho de 2020 Lei 4.162 o novo marco regulatório do saneamento básico com objetivo de expandir o fornecimento de água
  6. Com anterioridade, o governo Temer aplainou o caminho, com a reforma da Previdência e a liquidação da CLT, ou seja, dos direitos trabalhistas.
  7. A Reforma Administrativa aponta para o Estado Mínimo e o caos na administração pública.
  8. O Itamarati firmou um acordo comercial com os Estados Unidos prenúncio da firma de um acordo de livre comércio, como aquele que foi firmado entre os EUA e Chile.
  9. Alcântara virou uma base estadunidense vedada à brasileiros. O Acordo de Cooperação Militar abarca as áreas de inteligência e livre trânsito para os militares ianques.
  10. O Estado Maior das Forças Armadas designou um general que é vice comandante do Comando Sul dos Estados Unidos em Miami e querem que o Brasil participe da OTAN. Já é aliado preferencial.

Finalmente temos um Plano, dirão muitos 

Mas não é um plano stricto sensu. De modo geral, são lineamentos, objetivos a serem alcançados por uma estratégia de desenvolvimento que não existe. Nesse ponto, até se parece com o Plano aprovado e divulgado recentemente pelo PT, que comentamos aqui.

Aonde a coisa pega é na parte substancial, que é a gestão econômica para superação da crise fiscal e retomada do desenvolvimento. É um plano, mas diz logo de início que o ministro da Economia pode editar normas complementares. Ou seja, continuam os super poderes nas mãos do super ministro a serviço do capital financeiro.

A manutenção do equilíbrio monetário é necessária, enfatizam. 

Mas como equilibrar eles não dizem, apenas falam vagamente em reforma fiscal. 

Na pior das hipóteses, projetam para o decênio um PIB de 1,6%, média anual, com taxa de investimento de 17,5%, sendo 1,8% para infraestrutura. Para a melhor hipóteses, com taxa de investimento de 19,5%, o PIB poderia chegar a média anual de 2,9%. 

Dez anos de recessão anunciada, acompanhada de desnacionalização e desestatização. Será que o país aguenta? 

Gente, o país tem condições de fazer o PIB industrial a taxas constantes de 14% ao ano, independente do PIB agropecuário-minerador-de-exportação. Não é sonho nem utopia, é realidade que já vivemos nos anos 1950 e 1960.

Não explica em que estão fundadas essas projeções. Mas indica que como a dívida cresceu muito e poderá continuar crescendo, haverá maior esforço para conter os gastos. 

É a prática que já estão executando. Não gastam. Segundo o IPEA, o PIB este ano será negativo em cerca de 6%. Foi de 1,1% em 2019, o mesmo que em 2018, 1,3% em 2017, mas foi 3,6% e 3,5% negativos em 2015 e 2016. De 2016 em diante não deu nem para recuperar. Já devia ter servido de lição para não insistirem nas mesmas fórmulas ditadas pelo FMI, que são as do Consenso de Washington.

Fechamos em 2019 com um PIB de R$ 7,3 trilhões, o tamanho da dívida pública neste final de 2020. Com as projeções do Plano em 2021, a dívida será maior que o PIB. O problema maior é o custo dessa dívida e a incapacidade do governo de gerar confiança para os investidores comprarem títulos da dívida.

"Qualquer plano para o Brasil tem que começar com a recuperação da independência e soberania. Fora isso, é engano".  Puro blá-blá-blá ou messianismo

Ilustração: Henfil
Gente, o país tem condições de fazer o PIB industrial a taxas constantes de 14% ao ano

O eixo

  • reordenar a economia por meio de desestatizações e desinvestimentos de empresas estatais para focalizar a participação do Estado em atividades essenciais e na promoção da eficiência alocativa (sic). 

Essa palavra não existe no dicionário. Existe locativo e seu feminino locativa que se refere a locação (aluguel) de um imóvel. 

Aponta como objetivo a indicação do crédito para média, pequena e micro empresa; explorar as potencialidades dos estados, dos distintos biomas, desenvolver o potencial turístico, construir um sistema de CT&I mais aberto e internacionalizado. 

O foco

Privilegiar o agronegócio 

  • Fortalecer a estratégia de atração de investimentos diretos estrangeiros, com foco na eficiência produtiva e na inserção internacional; remover obstáculos à internacionalização de empresas brasileiras e reduzir barreiras tarifárias e não tarifárias.

Está aí a justificativa para um acordo de livre mercado com os EUA e para transformar a Petrobras em uma embaixada estrangeira. 

  • Também aponta para diversificar parcerias com países africanos, asiáticos e do Oriente Médio.

Puro blá-blá-blá, pois o foco da política externa está no alinhamento com Israel, no Oriente Médio, o que limita barbaramente a intenção de diversificar, e no alinhamento aos Estados Unidos, o que coloca o Brasil perigosamente no eixo da nova guerra fria travada pelos EUA contra a China.

Comecemos pelas incoerências do plano

Tem muito palavreado bonito “para inglês ver”. Repito: é aí que mora o perigo. A mídia hegemônica vai aplaudir e apoiar sem reservas, assim como os deputados e senadores sem pátria.

Em matéria de Soberania e Defesa Nacional, a palavra soberania duas únicas vezes no extenso documento.

desenvolver capacidade nacional de defesa, observando o disposto na Política Nacional de Defesa; fortalecer base industrial de defesa.

Como? Se as forças armadas constituem parte do comando Sul dos EUA, que plano de defesa nacional é esse? Já vimos que pela primeira vez o plano está considerando países vizinhos como inimigos para eventuais conflitos?

Diz a Constituição de 1988 

Art. 196 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Vamos ver o que diz o plano.

  • aprimorar a gestão do Sistema Único de Saúde – SUS, avançando na articulação entre os setores público e privado (complementar e suplementar), aperfeiçoando os mecanismos de regulação e aumentando a eficiência e a equidade do gasto com adequação do financiamento às necessidades da população;

Já há um decreto para privatizar as unidades de saúde. sendo assim, este aprimora, avançando na articulação público e privado, diz tudo.

Quanto ao meio ambiente, nenhuma palavra sobre proteção contra os predadores:

  • promover a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais, com foco na qualidade ambiental, com um dos aspectos fundamentais da qualidade de vida das pessoas, conciliando a preservação do meio ambiente com o desenvolvimento econômico e social.

Avalie você. Como garantir isso com um Estado Mínimo e uma economia fundada no agro-negócio e exploração mineral para exportação? Como vai proteger se existe um decreto que permite a exploração comercial dos mangues, para dar um só exemplo?

Soa bonito, vai impressionar muita gente, e aí mora o perigo.

  • Ampliar o acesso à moradia digna para famílias de baixa renda, buscando respeitar os vínculos familiares e comunitários, e melhorar as condições de habitabilidade dos assentamentos precários.

Como? Quem vai fazer isso?  Como objetivo está correto, mas não há como fazer sendo o Estado governado pelo capital financeiro. 

Nós já havíamos alertado que está no plano deles transformar os recursos hídricos em commodities. Isso mesmo, a água em mercadoria, produto para ser comercializado por grandes empresas. Água inclusive dos aquíferos, para dar mais lucro para a Coca Cola, a Nestlé, a Ambev que são os maiores consumidores. Justo a água, recurso fundamental para a existência da própria vida no planeta. O plano aponta:

  • Promover a conservação e o uso sustentável dos recursos naturais, com foco na qualidade ambiental, como um dos aspectos fundamentais da qualidade de vida das pessoas, conciliando a preservação do meio ambiente com o desenvolvimento econômico e social.

Isso no Plano. Na realidade, empresas como Coca-Cola, Nestlé e Suez já conseguiram aprovar no senado a entrega da água pra elas.

Finalmente, anunciam combate ao crime organizado.

Como? Se é o próprio crime organizado que se apoderou do poder?

Vejam o seguinte: Tem muita coisa que parece correto, pois, seria correto se o conceito estratégico fosse não o de dependência e sim o de independência e soberania nacional. Assim, aquilo que parece correto é de fato uma merda, porque se trata de fortalecer a dependência, porque se trata de uma colônia que vai fortalecer e enriquecer a metrópole. 

Precisamos recuperar nossa independência e soberania nacional

Qualquer plano para o Brasil tem que começar com a recuperação da independência e soberania. Fora isso, é engano.

Encerro com a exortação aprovada ontem no encerramento da reunião de cúpula da Cepal na Costa Rica.

Reafirmamos nosso firme compromisso de acabar com a pobreza em todas suas formas e dimensões e à fome em todo o mundo, seguir promovendo o crescimento econômico inclusivo, protegendo o meio ambiente e promovendo a inclusão social, combater as desigualdades dentro dos países e entre eles, assim como respeitar e promover todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais para todos, incluindo o direito ao desenvolvimento, assegurar a igualdade de gênero e de empoderamento de todas as mulheres e as meninas ao longo de sua vida, promover sociedades pacíficas, justas e inclusivas nas quais ninguém fique atrás e, ao mesmo tempo, preservar o planeta para as gerações futuras.

Paulo Cannabrava Filho é jornalista, escritor e editor da Diálogos do Sul.


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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul.
Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1967. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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