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El Mercurio, a mídia e o bicho-papão do chavismo

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

Gustavo Gonzáles Rodríguez*

Gustavo Gonzalez Rodriguez Gustavo Gonzalez Rodriguez

El Mercurio parece convencido da inevitabilidade do triunfo de Michelle Bachelet nas próximas eleições presidenciais e se mostra empenhado em por o carro adiante dos bois, ou, o que vem a ser a mesma coisa, exercer sua influência para desqualificar propostas programáticas da Nova Maioria(1) que poderiam mudar o status quo e corrigir ostensivos déficits políticos, sociais e econômicos de nossa democracia.

As páginas editoriais do decano da imprensa nacional mostram nos últimos meses um compêndio de alarmes a propósito do “desnecessário afã refundacional” que implica uma Assembleia Constituinte e da emergência de um “sentimento antiempresarial e estatista” que põe em perigo “o crescimento obtido graças à economia de mercado”, para mencionar os dois tópicos principais da preocupação mercurial, que coincide obviamente com o discurso da Aliança por Chile (2).

Nos últimos dias El Mercurio acrescentou um novo tema que, para dizer a verdade, foi posto de lado na vitalícia transição chilena pelos quatro governos concertacionistas e a administração de Piñera: o da indústria da mídia. Na quinta-feira, 30 de julho, o matutino dedicou seu principal editorial, com o título “Risco para os meios de comunicação”, às colocações que a esse respeito contém o documento “Compromissos para o Chile que queremos”, elaborado pela Comissão de Programa dos partidos da Nova Maioria.

Deve-se comemorar que, enfim, as coletividades da chamada centro-esquerda abordem este assunto vital, e, embora coubesse agradecer ao “diário de Agustín” (3) por contribuir a seu modo para tornar visível um problema que vem afetando profundamente a qualidade da democracia, não cabe senão impugnar a forma como o faz, com um discurso fundamentalista que desconhece os dados da realidade, caindo levianamente na desqualificação, recorrendo a dois termos que a linguagem direitista utiliza marotamente como estigmas: chavismo e kirchnerismo.

Em uma espécie de sobremesa do prato forte editorial, na segunda-feira, 5 de agosto, também na página 3 do decano, foi incluída uma coluna de opinião da jornalista Tamara Avetikian (“Hegemonia da mídia não!”), acerca do enfrentamento na Venezuela entre o governo de Nicolás Maduro e o diário El Nacional. A colunista encerra seu texto dizendo que ficara alarmada com as propostas programáticas sobre os meios de comunicação recebidas por Michelle Bachelet, que poderiam reproduzir no Chile a situação venezuelana.

Nos “Compromissos para o Chile que queremos” pleiteia-se “o direito a uma informação plural, verdadeira e transparente, o que nos leva a lutar para estabelecer as condições para democratizar o atual sistema de meios de comunicação, que permitiu concentrar em poucas pessoas ou empresas, nacionais ou estrangeiras, o controle dos meios de comunicação de massa”.

“Também é necessário incentivar nos meios de comunicação tradicionais um autêntico pluralismo tanto nos conteúdos como na propriedade”, acrescenta o documento das comissões programáticas dos partidos da Nova Maioria.

Na visão mercurial o diagnóstico sobre a concentração da propriedade dos meios e as aspirações ao pluralismo seriam consignas chavistas ou kirchneristas, que ameaçariam o sistema de meios de comunicação no Chile, que por oposição a esses obscuros desígnios não teria características monopólicas nem oligopólicas e seria a garantia de uma informação verdadeira, plural e transparente.

Foi este mesmo sistema de meios de comunicação que se encarregou de construir visões destorcidas, estereótipos, demonizações e estigmas sobre as experiências políticas da Venezuela e da Argentina, assim como do Equador e da Bolívia (seguidores do “modelo chavista” no discurso editorialista de El Mercurio). Assim, vem a ser quase um passe de mágica dar por encerrado o debate acerca da paisagem da mídia chilena com o simples expediente de qualificar de chavistas aqueles que querem sua democratização.

Para que a operação seja completa, os meios de comunicação tradicionais (imprensa escrita, rádio e televisão) ignoraram, ou censuraram, os numerosos informes e estudos que documentam a concentração da propriedade dos meios de comunicação no Chile, elaborados por pesquisadores acima de qualquer suspeita de chavismo. “Os magnatas da imprensa”, da Prêmio Nacional de Jornalismo María Olivia Mönckeberg (Random House Mondadori, 2009), foi mencionado por El Mercurio, contra sua vontade, só nas listas dos mais vendidos das livrarias.

A lista de exemplos similares é muito extensa. Basta citar dois casos recentes. A imprensa tradicional silenciou as “Propostas do Colégio de Jornalistas do Chile sobre Políticas Públicas para a Comunicação Social”, dirigidas a candidatas e candidatos presidenciais e parlamentares, apresentadas em 11 de julho. Segundo os cânones mercuriais, este documento estaria também contaminado com o vírus do chavismo, apesar de ter sido aprovado por unanimidade no Conselho Nacional desta ordem, onde estão representadas diversas correntes ideológicas e políticas, algumas francamente identificadas com a oposição venezuelana. (Nota: o texto pode ser lido em www.colegiodeperiodistas.cl/images/documentos/propuestapolitica.pdf).

Entre outros pontos, o Colégio de Jornalistas faz eco às colocações das relatorias para a Liberdade de Expressão das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos, no sentido de que o pluralismo nas comunicações é garantido com a convivência em pé de igualdade de três tipos de meios de comunicação: comerciais, comunitários e públicos (não governamentais).

Segundo caso: quando em janeiro-fevereiro de 2014 o Conselho de Direitos Humanos da ONU reunir-se para seu exame periódico universal sobre a situação nos países membros da organização mundial, contará, quando analisar a situação da liberdade de imprensa, com a contribuição de Repórteres sem Fronteiras (RSF), ONG internacional com caráter consultivo nessa instância.

O que diz RSF sobre a liberdade de imprensa no Chile? Vale a pena ler o primeiro parágrafo do relatório:

“O Chile ocupa o 60º lugar, entre 179 países, na Classificação Mundial da Liberdade de Imprensa 2013 de Repórteres sem Fronteiras. Este país se caracteriza por uma concentração excessiva dos meios de comunicação, de onde sua flagrante falta de pluralismo. Cerca de 95% das publicações da imprensa escrita se encontram em mãos de dois grupos de comunicação privados: El Mercurio e Copesa, únicos beneficiários do sistema de subvenção do Estado instaurado sob a ditadura –em função da qual recebem cerca de 5 milhões de dólares por ano–, em detrimento dos meios de comunicação independentes. Da mesma forma, cerca de 60% das estações de rádio pertencem ao grupo de imprensa espanhol Prisa. Assim, os meios de comunicação independentes –como as rádios comunitárias– debatem-se para sobreviver e assegurar sua subsistência econômica, posto que o país ainda não conta com leis que garantam um equilíbrio entre os diferentes tipos de meios de comunicação no espaço de difusão”.

Dificilmente RSF pode ser acusada de organização chavista. Pelo contrário, setores de esquerda favoráveis aos governos de Cuba e da Venezuela, acusam-na de ser una entidade “biombo” da CIA estadunidense e de receber financiamento do Departamento de Estado estadunidense. O ranking da liberdade de imprensa em 179 países, onde o Chile aparece em 60º lugar, relega a Venezuela ao posto 117 e Cuba ao 171. Os Estados Unidos ocupam a posição número 32, embora RSF tenha feito uma campanha em defesa do soldado Bradley Manning, condenado a 35 anos de prisão por uma corte marcial estadunidense, acusado de espionagem pelas informações que vazou para WikiLeaks.

O importante é que o diagnóstico sobre a falta de pluralismo no sistema midiático chileno é compartilhado pelos mais variados setores e só um olhar tendencioso, como o que transparece nos editoriais de El Mercurio, pode negar os perigos reais que representa a concentração da propriedade dos meios de comunicação tradicionais.

A imprensa e a televisão chilenas estão impregnadas de anseios censores, que chegam até a um canal supostamente público como TVN, dirigido já não com critérios apenas comerciais, mas com a lógica empresarial que permeia todo o atual governo. A vergonhosa censura à exibição de “O diário de Agustín”, o fim solapado do programa “A nova beleza de pensar” e o patético episódio dos “problemas técnicos” que derivaram em mutilações do documentário “Nostalgia da luz”, são atos que atentam contra a liberdade de expressão.

Não é uma simples anedota a censura que o Canal 13, do grupo Luksic, com uma direção encabeçada pelo militante do PPD e ex ministro da Fazenda Nicolás Eyzaguirre, exerceu sobre um programa de investigação jornalística que denuncia más práticas de empresas elaboradoras de alimentos de consumo de massa. O que este fato explicitou foi a contradição implícita entre a liberdade de informação e a apropriação dos meios de comunicação por grandes grupos econômicos.

Quando El Mercurio investe contra o rascunho programático da Nova Maioria, lança advertências, implícitas chantagens em termos de suas pautas de cobertura da campanha eleitoral e, sem dúvida, busca também que no heterogêneo comando de Michelle Bachelet se imponham figuras moderadas e, obviamente “antichavistas”. Entre elas, René Cortázar, outro ex ministro e membro da direção do Canal 13, que segundo o ex senador Ricardo Hormazábal não está ali representando a Democracia Cristã e sim o grupo Luksic.

Juan Somavía, até há pouco diretor geral da Organização Internacional do Trabalho, integrante também do comando bacheletista, teve a honra, nos anos 1980, de acompanhar Gabriel García Márquez como membro da comissão redatora do Relatório McBride, documento solitário da Unesco que pôs no debate internacional o tema da democratização das comunicações. Trata-se de um assunto pendente no Chile, que deve ser debatido frente a frente com o país, nesta hora de promessas de mudanças, à margem dos interessados “alarmes” de El Mercurio.

(1) Nova Maioria, o conglomerado político que apoia a candidatura presidencial de Michelle Bachelet, integrado pelos partidos da Concertação Democrática -Democracia Cristã, Socialista, Radical Socialdemocrata e Partido pela Democracia (PPD)-, mais o Partido Comunista, o Movimento Amplo Social e a Esquerda Cidadã.

(2) Coalisão política da direita chilena.

(3) El Mercurio, principal jornal chileno, desde 1875 propriedade da família Edwards. Agustín Edwards Eastman (85 anos), presidente da empresa desde 1956, conspirou junto com Henry Kissinger contra o governo da Unidade Popular e recebeu financiamento da CIA, segundo consta do censurado documentário “O diário de Agustín”.

*Jornalista, ex acadêmico do Instituto da Comunicação e Imagem, Universidade do Chile. Diretor da Escola de Jornalismo dessa universidade, de 2003 até 2007. Entre 1978 e 2006, desempenhou funções de editor e correspondente da IPS, em Quito, Roma, São José da Costa Rica e Santiago do Chile.Tradução: Ana Corbisier


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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