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Eleição não será capaz de garantir que país volte à normalidade, diz sociólogo boliviano

Em entrevista, o ex-coordenador da Representação Presidencial para a Assembleia Constituinte aponta existência de perseguições e massacres no país
Leonardo Wexell Severo
ComunicaSul
São Paulo (SP)

Tradução:

“Está claro para nós, nesses últimos meses, que a legislação não é nenhum impedimento para os golpistas. Temos perseguições e massacres. Por isso trabalhamos para que os bolivianos estejam conscientes que não apenas votar é importante, mas também a forma como vamos defender e fazer valer esse direito”, afirmou o renomado sociólogo Juan Carlos Pinto Quintanilla, em entrevista exclusiva.

Em uma hora de diálogo, o ex-coordenador da Representação Presidencial para a Assembleia Constituinte e ex-diretor geral de Fortalecimento Cidadão da Vice-presidência do Estado Plurinacional descreve como, contando com o “monopólio dos meios de comunicação, os golpistas, financiados pelo imperialismo, buscam legitimar um poder oligárquico, neoliberal, sustentado nas baionetas”.

Preso político durante cinco anos, vítima de governos vende-pátria, o especialista em Direitos Humanos conclamou os bolivianos a estarem mobilizados para garantir a vitória, mas alertou para os riscos de retrocesso. Quintanilla frisou que por meio de ameaças ao candidato do Movimento Ao Socialismo (MAS), Luis Arce Catacora – que lidera todas as pesquisas – buscam inviabilizar as eleições e comprometer a democracia.

Além disso, destacou, “até agora o Tribunal Supremo Eleitoral não recebeu os recursos necessários para organizar o conjunto da campanha institucional”. Como se não bastassem as armações e manipulações, denunciou, há o risco do próprio uso militar, já que “não havíamos percebido que as forças armadas e a polícia eram instituições de um Estado oligárquico do passado, que nunca haviam perdido esta identidade, por mais que houvessem colocado a Whipala no uniforme ou gritassem Pátria ou morte!”.

Diante dos riscos para a democracia na Bolívia e no continente, Juan Carlos exortou a solidariedade, convocando observadores e jornalistas internacionais a darem a sua imprescindível contribuição. “Precisamos que todos os movimentos progressistas nos acompanhem, para que se respeite e que se reivindique mais uma vez a democracia”, enfatizou.

Em entrevista, o ex-coordenador da Representação Presidencial para a Assembleia Constituinte aponta existência de perseguições e massacres no país

ComunicaSul
O sociólogo Juan Carlos Pinto Quintanilla

Confira a entrevista

ComunicaSul – Na sua avaliação qual foi a principal conquista destes quase 14 anos em que o Movimento Ao Socialismo esteve à frente do governo na Bolívia?

Juan Carlos Pinto Quintanilla – Sou parte da militância que está lutando pela recuperação da democracia e espera que neste 18 de outubro ocorra algo importante, mesmo sabendo que a luta vai além do momento eleitoral que se avizinha.

Falar em termos mais amplos nos ajuda a pensar o país nesta perspectiva do colonial e do republicano, que são a continuidade de uma organização de poder que nunca deixou de ser a expressão repressiva das oligarquias. Grupos que se sustentaram mais na força armada, com sua visão racista e discriminatória, do que na capacidade de convencimento e de inclusão.

Nesta perspectiva é que podemos entender o que está se passando e o que se passou nestes quase 14 anos, quando produto da mobilização popular se encontram duas formas, duas memórias históricas: a memória longa, as nossas raízes, a nossa identidade como país, sempre negada pelo racismo imperante. A oligarquia havia excluído da própria história todos os vestígios desta identidade indígena originária, para se parecer mais ao primeiro mundo.

Esta visão que irrompe em 2005, que tem raízes em muito tempo antes, aparece de forma eleitoral, unificada, por meio de uma liderança fundamental como a de Evo Morales. Ele expressa a maioria deste país, mostra que o voto majoritário finalmente havia sofrido uma transformação essencial: finalmente começaram a desacreditar nos candidatos oligarcas, na institucionalidade das forças armadas.

Começaram a acreditar neles mesmos como fundamento central, que é possível construir um país distinto desde as bases. É possível construir desde os setores populares, desde a identidade do sujeito indígena, originário e camponês uma nova realidade, uma nova forma de entender o mundo e o país.

Enfrentando ao longo de mais de 13 anos permanentes complôs e situações críticas criadas por esses grupos oligarcas, ligados ao imperialismo, financiados com seus recursos, ao longo de mais de três eleições, com a aprovação da nova Constituição, se mostrou que o sujeito histórico é capaz de criar novas realidades.

Esta é um pouco a situação que nós, bolivianos, vivemos: a nacionalização e a redistribuição dos nossos recursos em benefício do conjunto da sociedade, especialmente da maioria, os bônus que não representaram uma dádiva ou uma caridade mas mostrar às pessoas, às crianças, às mulheres e aos idosos que são parte deste país. Gente que historicamente sempre foi excluída, sempre foi tratada como ninguém, nesta perspectiva de anular a maioria para fazer-lhes sentir menos e que os poderosos são mais.

Este país se transformou, sobretudo em sua dignidade e em seu orgulho próprio. Sua gente deixou de se menosprezar e começou a se autovalorizar como maiorias indígenas originárias. Acredito que esta é a principal conquista destes anos. Nosso país mudou, demonstrando ao mundo que podemos seguir avançando nesta transformação, na autovalorização, no autorreconhecimento e na dignidade. Não sem deixar também de assumir um olhar autocrítico em relação ao caminho percorrido, porque é necessário, em um processo revolucionário, aprender a entender no que estamos falhando, como retificar vários problemas que nos afetam e, sobretudo, comprometem as mudanças.

Qual o papel do processo constituinte neste debate de ideias sobre o processo?

Ao longo da primeira etapa, até 2009, quando se aprova a Constituição, vivemos um período de permanente mobilização e de confrontação dos movimentos sociais com os inimigos oligarcas que haviam ido para as ruas, despejavam sua mensagem pelos meios de comunicação e faziam um bombardeio midiático alinhado para poder tirar o governo de Evo Morales. Naquela ocasião, os setores sociais responderam adequadamente, organicamente, demonstrando o seu potencial. 

A Constituição também foi um momento de confrontação de ideias, de visões e interpretações sobre o país. Esta Constituição,  construída ao longo de três anos em meio a conflitos, também nos mostrou que temos diferentes formas de entender a Bolívia. Algumas assentadas na pequena burguesia e nas classes médias, no olhar dos doutorzinhos que vêm desde a colônia e a República, que entendem que através das leis podem interpretar tudo e dizer aos que não conhecem, aos que não são parte do Estado, o que devem fazer.

Esta foi um pouco uma primeira confrontação que não era somente no marco de um processo constituinte, mas de país, entre quem é o poder real e os que supostamente assumem o poder das ideias para decidir quem deveria mandar, quem deveria conduzir. Esta parte foi uma discussão importante até que as pessoas, os dirigentes, os representantes começaram a assumir o valor que tem a experiência de vida, além do conhecimento acadêmico.

E essa dimensão foi parte de uma discussão que posteriormente foi transferida ao Estado, assumir que o valor da experiência é  distinto. O Estado plurinacional, que surgiu como conceito no processo constituinte, ajuda a repensar a forma e o conteúdo da cidadania: uma cidadania que não pode ser entendida apenas em um sentido liberal – de acesso a direitos -, mas com significado de  cidadania intercultural. Este conceito mais amplo entende a vida de maneira distinta, que todos necessitam das oportunidades para desenvolver sua própria forma de ser, em um Estado que busca ser inclusivo para todos que vivam neste território.

Esta contradição de visões se manteve ao longo de todo este processo, nos 14 anos. Com a aprovação da Constituição o Estado assumiu que deveria ser um Estado eficiente, priorizou o tema do desenvolvimento e da economia, gerou importantes sinais de redistribuição para as pessoas, que em consequência tiveram maior possibilidade de mudar de vida, de subir seu nível de vida e de sentir-se parte – entre aspas – da “classe média popular ascendente”. 

Desta forma, avançaram as condições econômicas de muitas pessoas, mas não a dimensão ideológica, o tema cultural fundamental da transformação na revolução. Quem tinha a atribuição de modificar o Estado eram os técnicos, os estudiosos, a classe média, os que haviam obtido algum nível de conhecimento, assim como alguns setores populares. Porém,  permanecia a contradição fundamental – própria de qualquer Estado liberal – que era justamente quem mandava e quem obedecia, quem votava e quem era eleito. 

De alguma forma a inclusão indígena originária camponesa ficou permeada no Estado. O Estado voltou a ser um ente mais condutor, às vezes repressor, e o sujeito histórico se converteu em algo como um beneficiário. Portanto este sujeito que havia gerado a transformação social deixou de se mover e começou a aplaudir, e isso foi o que ocorreu frente ao golpe de Estado que tivemos em novembro do ano passado.

Um Estado que aparentemente tinha o controle sobre tudo e organizações sociais que estavam esperando que o Estado resolvesse tudo. Dirigentes que se faziam de engrenagem e que adornaram a capacidade mobilizadora dos povos indígenas originários camponeses. Por isso o golpe de Estado foi aparentemente tão fácil na Bolívia, quando precisávamos ter a maioria do povo ao nosso lado e haver um avanço histórico neste país. 

A opinião pública mundial perguntava: então por que caíram?

Pelas duas razões fundamentais: a primeira é que a oposição neoconservadora, evangélica, ligada a interesses imperiais e também ligada à própria situação que vivia o Brasil com Bolsonaro, tinha uma relação e planos alternativos para tentar o golpe de Estado.

Em segundo lugar, usaram a figura da fraude, preparada com muitos meses de antecipação; com a mobilização dos setores médios — chamados “pititas” na Bolívia – contra as instituições, bloqueando cidades, até a compra dos altos mandos policiais e militares, o que finalmente propiciou o golpe de Estado.

Todas estas condições foram criadas por eles. O que nós não vimos é que Evo Morales, como liderança, havia ficado com o espaço estatal, tinha uma relação importante com as pessoas, porém a relação política havia se transformado.

Havíamos assumido que o único caminho e o único plano era a vitória eleitoral, não havíamos percebido a presença do inimigo, não havíamos percebido – dentro desta visão ingênua – que as forças armadas e a polícia eram instituições de um Estado oligárquico do passado, que nunca haviam perdido esta identidade, por mais que houvessem colocado a Whipala no uniforme ou gritassem ‘Pátria ou morte’!

O alto comando das forças armadas e da polícia não acreditava no processo de mudanças. As bases, os soldados se sentiam identificados, porém eram parte de uma estrutura de mando. E foi isso o que ocorreu. O desenlace do golpe foi nesta proporção. Justamente foi tão surpreendente esta situação que as organizações sociais não atinaram e não conseguiram responder em um primeiro momento, somente depois, quando se mobilizaram e foram massacradas.

Antes, Evo Morales e o entorno governamental tiveram que escapar, se proteger e asilar. Diante da falta de direção, surgiu o problema de que todos deviam renunciar, inclusive o órgão legislativo em que até agora o MAS tem os dois terços. Era incompreensível que tendo tanto poder pudéssemos abrir mão desta representação.

O caos foi apropriado por estes setores opositores, permitindo que esta senhora Áñez tomasse o poder com um conjunto de representantes políticos e eclesiásticos das igrejas católicas e evangélicas que apoiaram o golpe. Ou seja, todo um conjunto de forças regressivas do passado se somou para gerar essa condição que estamos vivendo, e que já assassinou mais de 35 pessoas na repressão e matou milhares pela pandemia.

Este governo assumiu na prática que a desatenção sanitária não é acidental, faz parte de uma estratégia política para gerar o medo nas pessoas a respeito da sua saída às ruas, à sua mobilização, às suas demandas, etc..

E em todos que lutam contra esta situação, o movimento golpista põe a marca do MAS. O masismo foi convertido numa palavra má, significa os que reclamam, todos os que dizem algo contra o governo.

Retornamos a uma figura tradicional do golpismo do passado, com novas características pseudo-democráticas: mantém o órgão legislativo. Uma Assembleia em que o MAS tem maioria – mas que não atinava a dar nenhuma resposta – e que hoje tenta ser o contrapeso aos decretos autoritários com que o golpismo pretende legitimar a repressão, a perseguição e a corrupção que agora existe de forma generalizada. E a possibilidade de obtenção de empréstimos milionários em nome da saúde e da economia do país, quando todos sabemos que são recursos que servem somente para a campanha da presidenta interina ou para a corrupção generalizada dos ministros e dos grupos de poder. 

Enquanto isso avançaram na questão de liberar o tema das terras no Oriente [dar aval a grandes latifúndios], em tentar liberar os transgênicos, e em todas as pautas que desesperadamente querem aprovar antes do processo eleitoral. 

Buscam sobretudo legitimar um poder oligárquico, neoliberal, que foi freado no passado e que hoje, sustentado nas baionetas, pretendem generalizar a nível deste novo Estado que denominamos de anômico, pelo  esvaziamento das responsabilidades fundamentais e cumprimento de direitos, baseado basicamente na repressão. Esta é a condição que estamos vivendo agora.

O que esperar do próximo 18 de outubro? Tocaste a questão da política além do voto e das limitações dos governos progressistas em nosso continente. A partir dessa perspectiva, acreditas que diante de uma vitória eleitoral do MAS se teria aprendido com os erros? O que deverá ser priorizado?

O que vamos viver é a continuação de tudo o que estava comentando. Temos uma direita neoconservadora, evangélica, que quer se sustentar no governo a qualquer custo. Já nos impuseram este ano três suspensões de datas eleitorais. Não é a pandemia, é o medo, é a manipulação política que se faz dessa condição de pandemia para assustar as pessoas, persegui-las e encarcerá-las. É isso o que estamos vivendo. 

O próximo 18 de outubro é a última data de advertência. Temos tido, depois da suspensão da data anterior, uma mobilização nacional que mostrou ao governo a força das maiorias, que estão fortalecidas, com muita raiva diante da condição que hoje estamos vivendo. 

Houve mais de 200 pontos de bloqueios de estradas, que paralisaram todo o país. Isso fez com que o Exército preparasse o seu mapeamento e apresentasse à presidenta interina, para lhe dizer que não poderiam ‘desbloquear’ todas essas vias sem um ‘alto custo social’, e que não estavam dispostos a assumir esta operação. Então, a partir daí começaram a abrandar algumas posições desse governo, sinalizaram que começariam a respeitar o fato de que os setores populares não estavam vencidos e que agora voltavam novamente às ruas.

Por isso a saída eleitoral é e não é uma saída para eles. É uma saída para quem, comodamente, desde um centro de silêncio, foi ocupando alguns espaços, como é o caso da Comunidade Cidadã (CC) de Carlos Meza, que ao longo dos últimos meses guardou silêncio, simplesmente aguardando a acusação dos golpistas em relação ao MAS, para se apresentar como uma alternativa razoável descolada do masismo.

Apostaram que o MAS cairia em uma situação de perseguição permanente. Ou seja, eles tentaram somar rancores acumulados para gerar uma proposta eleitoral que buscasse um suposto equilíbrio. Esta tem sido sua aposta até agora.

Mas também há uma extrema direita com muito pouca chance eleitoral, e que está hoje no governo. Justamente diante da carência de possibilidades e tendo que se somar possivelmente a essa proposta de centro da Comunidade Cidadã, quer também ter como alternativa a continuação do próprio golpismo. 

Ou seja, querem seguir flertando com a possibilidade da suspensão das eleições, de intervenção nas próprias eleições, ou o desconhecimento dos próprios resultados eleitorais possivelmente favoráveis ao Movimento Ao Socialismo – para não falarmos de um suposto ‘complô narcoterrorista’ do MAS. 

Um discurso que vêm manipulando há alguns meses, e com muitos elementos que têm a ver com tráfico de armas, etc.. Uma teoria da conspiração para condimentar este argumento e poder suspender, sob o mando das Forças Armadas, a possibilidade das eleições para o ano que vem, tendo tempo suficiente para remover a pessoa jurídica do MAS e reorganizar toda a geografia eleitoral do país. Querem retirar a maioria que o MAS tem a nível rural, oferecendo-lhe algum poder em nível urbano, e, nessa perspectiva, redesenhar o sistema político em seu conjunto. Essa é a estratégia da direita neoconservadora.

Mas há uma grande mobilização popular, e vemos a capacidade e a possibilidade de que a raiva e o descontentamento podem gerar uma situação ingovernável. Esta é a situação que estamos vivendo, as condições com as quais se aproxima o 18 de outubro. Vai ser um momento de recuperação do direito ao voto da maioria. 

Tentaram nos retirar o direito ao voto, de mais de 50% da população, através da figura inventada de fraude eleitoral e que hoje estão voltando a usar para desconhecer a intenção de voto da maioria. Diante disso, vamos trabalhando para que as pessoas estejam conscientes de que não apenas votar é importante, mas também a forma como vamos defender e fazer valer esse direito ao voto.

Se o voto vai dar poder e representação e como, para além das eleições, vamos sustentar a resistência do que venha e a sustentabilidade de um governo que vá buscar transformar este contexto golpista e de anomia em que estamos. Além de tudo, a miséria econômica, em um primeiro momento, nos custará recuperar as condições mínimas de sobrevivência para poder recuperar rotas revolucionárias.

Caminhos que permitam um olhar autocrítico não apenas ao que fizeram os outros, mas ao que fizemos nós, e o que nos faltou fazer como meta política revolucionária.

Na última quarta-feira, no Equador, o partido de Rafael Correa foi suspenso para as eleições de 2021. No mesmo dia a pesquisa que se fez na Bolívia teve Arce ganhando o voto rural e urbano, conseguindo uma porcentagem suficiente para vencer já no primeiro turno. Observando a América Latina, vemos uma tentativa de cerceamento da democracia por parte das direitas antinacionais, neoliberais e de ultradireita. Isso pode ser também um sinal para a Bolívia no mês das eleições? Qual artifício pode ser utilizado pelo governo interino para modificar esta situação que mostram as pesquisas em favor do MAS?

O que se vive na Bolívia é uma situação de política como guerra e de guerra como política. É essa situação que estamos vivendo. Frente aos números, que nos favorecem amplamente em uma perspectiva de podermos ganhar eleitoralmente, inclusive, já no primeiro turno.

Mas essas estatísticas muitas vezes não refletem todo o apoio acumulado ao longo de todos esses meses, e de gente que inclusive não estava convencida de dar apoio ao MAS e que hoje se somou, incluindo alguns setores de classe média que viram que nesses meses o país foi praticamente destruído.

Além disso, é importante dizer que as formas que se obtém informação para essas pesquisas é basicamente telefônica, não tanto presencial, o que nos dá uma indicação de quem a pesquisa alcança. O fato é que os setores populares mais afastados, rurais, indígenas e camponeses têm, nestas eleições, a bandeira da recuperação da democracia através do MAS. 

Esses números foram vistos por esses setores neoconservadores, que sabem que uma disputa eleitoral não irá lhes favorecer. Diante dessa leitura, estes senhores e, é claro, as águias norte-americanas que os estão sobrevoando, certamente estão tramando outro tipo de estratégias sobre o contexto boliviano que está em marcha.

Nesse quadro vão seguir insistindo no tema, mas o tempo quiçá não os alcançará. Por isso estamos atentos às estratégias de impacto que possam utilizar para 18 de outubro. Nesse sentido, não se descarta uma rodada de perseguição legal, inclusive do próprio candidato Luis Arce. Não se descarta o fato de que até agora o Tribunal Supremo Eleitoral não tenha recebido os recursos necessários para organizar o conjunto da campanha institucional. 

Sobre o que estás dizendo, há um fator que nos parece importante: a lei promulgada pela Assembleia Legislativa coloca o 18 de outubro como data inalterável e sanções inapeláveis para quem não cumpra essa data. Crês que isso possa constituir um limite para que o governo interino tente uma artimanha?

Tem estado claro para nós nesses últimos meses que a legislação não é nenhum impedimento para os golpistas. Temos as perseguições e os massacres. Situações como a nomeação dos novos comandantes das Forças Armadas e policiais feitas por decreto, porque o órgão legislativo não dava solução a essa situação, também foi parte de decisões tomadas pelo executivo para além do que dizem as leis.

Nessa perspectiva, estou falando de que, em uma situação extrema e desesperada, eles simplesmente poderiam atropelar a legislação assumindo que tudo, tanto o legislativo quanto o judiciário, estaria nas mãos do MAS e que eles seriam os grandes recuperadores da democracia. Foi o que mencionou o ministro Arturo Murillo quando afirmou que o MAS pretendia ganhar as eleições de 18 de outubro mas que “estaremos nós depois para enfrentar as hordas masistas e defender a democracia com as forças armadas e a polícia”. Isso é uma clara ameaça por parte desse governo, apontando que a força é mais importante que a legislação. 

Claro que é um papel importante o que fez o órgão legislativo que você mencionou para conseguir alguns equilíbrios. Mas nos fatos, esse equilíbrio é muito frágil diante dos objetivos políticos que têm as oligarquias e o imperialismo sobre o nosso país. Assim como ocorre no Brasil, ou como o caso do Equador, as leis vão se forjando conforme a pressão e a manipulação que se pode ter, mas não pode desfazer a possibilidade do uso da força por parte das oligarquias, é um recurso que eles sempre terão guardado.

Não basta assumirmos formalmente que temos leis quando o contexto em que estamos inseridos é um contexto de golpe de Estado, que temos como experiência em toda a América Latina. Sabemos que o que se impõe é a força, antes da legislação. Depois, talvez, buscam legalizar. 

E por isso lhes digo que o que nos resta daqui em diante é a organização que estamos armando para em primeira instância travar a grande batalha do processo eleitoral: garantir o controle social, que os mesários cumpram seu papel ao longo de todas as mesas do país, ter os observadores em todos os espaços, somando forças diante à possibilidade de manipulação, incluindo a informática, que pode acontecer pelo próprio TSE. Sabemos que no Tribunal tem gente que foi e tem uma perspectiva adequada da institucionalidade, mas que também há nomeados do próprio governo golpista. 

Também há assessores técnicos do sistema informático  convocados nesse momento pelo TSE e pelo governo golpista para este apoio ao pleito. Ou seja, eles têm todas as condições para gerar uma fraude, ou uma outra situação de continuidade golpista. Diante dessas possibilidades temos que estar preparados. E além de nos preparar e lidar com a raiva e o desespero que brota do cotidiano, precisamos também somar consciência e certeza de que as mudanças que vamos viver eleitoralmente são a aposta que temos que defender.

E o que comentas do papel dos meios de comunicação nesse contexto? 

Desde as primeiras horas do processo de golpe, tivemos o dedo da mídia. Hoje vemos um monopólio do governo interino nas linhas editoriais de todos os meios de comunicação, televisão e rádio, que fazem propaganda aberta para os golpistas e agora pela candidatura da presidenta interina Jeanine Áñéz [horas depois de realizada a entrevista, Áñéz retirou sua candidatura]. 

A mídia atua sobretudo dando voz a acusações de pessoas de diversas índoles a respeito do “masismo”. Não acusam somente  aqueles que formaram os governos, mas a todo boliviano que  protesta. Toda forma de organização é ‘masista’ para eles, na medida em que reclama seus direitos,  ou supostamente vão buscar confrontação com o golpismo vigente. 

Além disso, temos um bombardeio de bots digitais nas redes sociais, ou seja, buscam bombardear as pessoas também nesses espaços, não só com propaganda, mas também com antipropaganda em relação a todo o processo anterior vivido na Bolívia.  

São poucos os espaços de redes que foram criados de maneira alternativa. Em alguns espaços, inclusive rurais, começaram a ser usadas de forma sistemática os celulares, as mensagens instantâneas, buscando ter sua própria rede de informação. Algumas rádios, como Kawsachun Coca 99.1, de Chapare [região boliviana que chegou a expulsar representantes do governo Áñéz do seu território], mantêm redes nacionais e internacionais de comunicação que permitem lançar vozes alternativas. Mas em geral, estamos falando que os meios de comunicação e os jornalistas que estão nesses meios se venderam ou estão assustados diante da arremetida governamental que ocupou todos os espaços de propaganda, de comunicação e de notícias.

Fizemos nos últimos tempos uma série de entrevistas com figuras relacionadas ao MAS e foi comum para todos a percepção de que o interesse gringo no lítio tenha sido um dos principais fatores do golpe. Pensando nas questões que envolvem a economia e os setores estratégicos do país, o que comentas sobre esses interesses a respeito da mineração, do agronegócio, entre outros, e como se relacionam com o quadro que estamos desenhando nesta entrevista?

Está claro que os interesses imperiais e geopolíticos estão dirigindo esta conjuntura. Não apenas sobre o que acontece aqui, senão a nível mundial. Vemos o tema do petróleo, por exemplo, na Venezuela e nos países árabes. Estamos falando do lítio, que foi assumido como uma política nacional, o fato de poder industrializá-lo com nossos próprios recursos associados com tecnologia de fora neste caso, em um primeiro momento, com o apoio de uma indústria alemã. Os golpistas truncaram essa possibilidade, buscam desesperadamente comercializá-lo com uma empresa norte-americana em particular. Isto não se comenta em voz alta, mas é parte dos propósitos políticos que temos vivido. 

Junto disso, é claro, os interesses dos lacaios locais e principalmente da oligarquia do oriente, que têm buscado estender a fronteira agrícola. Legalizaram o tema dos transgênicos e hoje mesmo [17 de setembro] – diante de uma situação como a que vivemos no ano passado de um incêndio de dimensões gigantes que foram parte da estratégia golpista para acusar o então governo e Evo Morales de atentado ecológico – houve um incêndio de proporções parecidas, sem nenhum tipo de atenção, o que nos demonstra que há uma manipulação de muitos fatores para potencializar essa ambição. 

Além disso, não é apenas o ‘gerar incêndios’, senão justamente avançar a fronteira agrícola em relação a muitos espaços que permitiriam uma maior plantação de soja e algodão, que são os produtos industriais desse setor. Então, são interesses concatenados, tanto os imperiais quanto os dos setores oligárquicos que estão indo nesse sentido. Já foram feitas algumas ações em relação às empresas do ramo telefônico, e se buscou assumir que as estatais são deficitárias. 

O mesmo discurso que há 20 anos o neoliberalismo esgrimiu para privatizar o conjunto das estatais existentes. Mas o tempo passa para eles e hoje estão assumindo ambiguamente que precisam fazer essa campanha, ainda que não acreditem nela, nem nas próprias eleições. 

É interessante observar que o MAS está gerando novas lideranças no meio dessa crise política. Isso se reflete nas listas de deputados e senadores onde se vê muitas mulheres e jovens, assumindo um programa de governo que recupera essa experiência dos quase 14 anos de mudanças. Pediria um exercício de imaginação de como seria um governo de Arce e Choquehuanca, dois dos ministros mais destacados dos tempos de Evo. Como ficaria a questão da formação de novas lideranças e a configuração do MAS e dos setores populares a partir disso?

Acredito que vamos transitar a um momento diferente em nossa história, com muitos dos componentes do passado, mas que também tem outros novos. A liderança de Evo Morales segue vigente em muitos setores da população, ou seja, ao longo de muito tempo, se gerou um tipo de evismo que ficou maior que o masismo. Significa que a adesão ao líder foi mais importante para gerar as vitórias eleitorais e seu apoio. 

Aqui há o tema de reorganizar o masismo em um sentido da construção de uma liderança coletiva. Ou seja, promover novas lideranças, mas que precisam transitar na direção de um processo de repolitização. Porque no passado também, como parte da autocrítica, acreditávamos que bastava que estivessem nas ruas, bastava que fossem indígenas ou originários, para reivindicar em si mesmos o Estado Plurinacional e sua essência revolucionária, e não foi assim. Muitos setores que conseguiram uma melhor condição de vida se mantiveram neutros, ou se colocaram demasiadamente críticos às suas próprias expectativas individuais, antes que coletivas. Então há e deve haver um processo autocrítico, que já estamos fazendo em meio a todas essas situações de autoritarismo, de ditadura e de eleições tão próximas. 

Há renovação, há muita raiva e também muitas expectativas. Não vamos voltar à situação como a dos últimos 14 anos, estamos em um momento em que o país está em uma grave situação de crise econômica, além de uma crise de credibilidade em todos os órgãos do setor público, ou seja, temos que nos reconstituir novamente a nível estatal, mas também a nível orgânico, das organizações sociais, para recuperar a credibilidade das lideranças, das mobilizações, e, por fim, recuperar as ruas. 

Esse foi um ponto forte que o MAS teve no passado. Antes das vitórias eleitorais, tivemos as vitórias nas ruas, o espaço que deve ser prioritário de mobilização das pessoas. Junto disso, temos que ver que o orgânico tem que também se reconstituir e repolitizar, necessitamos de novos dirigentes. 

É preciso assumir que o horizonte político das organizações foi o socialismo comunitário, o que acabou deixado de lado pela institucionalidade, que priorizou a ‘modernidade’. E hoje, com esses diversos olhares, uns mais radicais, outros mais institucionais, estamos juntos para lutar por uma primeira grande batalha que serão as eleições do mês que vem.

Depois, e paralelamente, temos que lutar para repolitizar, discutir os temas centrais e dar espaço a autocrítica que vai ser importante para gerar essa liderança coletiva que nos será necessária. Todos esses elementos precisam aparecer juntos nesse momento, começando pelo processo eleitoral que estamos ganhando. Sabemos que essa vitória não deve nos surpreender, mas nos preparar para a administração dos conflitos e das crises, que deveremos superar e seguir adiante.

Gostaríamos que deixasse palavra sobre a importância que terão os observadores internacionais, do acompanhamento da imprensa internacional e movimentos sociais, para que a democracia seja respeitada.

Em meio às condições que nos tocam com a pandemia, temos que dizer mais uma vez que esse não deve ser um argumento para atropelar as urnas. A responsabilidade não é somente da Bolívia nesse caso. Aqui os movimentos sociais estão pondo o corpo, o peito e o voto. A nível mundial, precisamos que todos os movimentos progressistas nos acompanhem, para que se respeite e que se reivindique mais uma vez a democracia. 

Os olhares dos que estejam presentes nos ajudarão muito a ratificar que essa maioria tem vontade de seguir no caminho de transformação e revolução na Bolívia, diante do golpismo que temos vivido nos últimos tempos. Contar com a presença de todas essas forças progressistas nos dará força, segurança e solidariedade para seguir o caminho da democracia.

Leonardo Wexell Severo, Mariano Vpásquez e Raphael Sanz | Especial para ComunicaSul


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Leonardo Wexell Severo

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