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Lula: Não há na história outro que tenha tirado 40 milhões da miséria sem dar um só tiro, diz Fernando Morais

Ele fez uma transformação social sem violência. Não há na história moderna alguém que tenha conseguido fazer uma Revolução sem focar na luta de classe, lembra autor
Laura Capriglione
Jornalistas Livres
São Paulo (SP)

Tradução:

Depois de escrever obras já consideradas clássicos do jornalismo na forma de livros-reportagem, como “Olga”, “Chatô” e “A Ilha”, um dos mais completos e premiados repórteres do país, Fernando Morais, 75 anos, acaba de lançar o primeiro volume da sua magistral biografia de Luiz Inácio Lula da Silva.

Trata-se de um retrato afetivo do maior líder popular do pós-ditadura, sem deixar de ser rigoroso e independente. Pois é. Fernando Morais não é (nem nunca foi) filiado ao PT, e impôs uma condição para escrever o livro: que Lula só leria a obra depois de ser publicada.

O autor de “Lula” é um ardoroso defensor de Cuba e da República Bolivariana da Venezuela, países que foram governados por revolucionários como Fidel Castro e Hugo Chávez, com quem Fernando Morais parece ter muito mais identidade política. Mas Lula, o homem que tirou 40 milhões de brasileiros da miséria, “sem prender ninguém e sem dar um tiro”, ainda o surpreende.

E ele até admite que essa via pacífica de Lula possa ter sucesso, apesar do exemplo trágico de Salvador Allende, do Chile, que também pretendeu construir uma sociedade mais justa, sem verter “sangue até as canelas”. “Vai dizer que é uma visão equivocada da história? Não sei”, admite Fernando Morais.

“Lula” está nas livrarias e à venda em versão digital. (“Lula – Vol. I”, 447 páginas, R$ 71 o livro físico; R$ 39,90 para Kindle).

Na entrevista a seguir, Fernando Morais discute as opções políticas feitas pelo PT, quando na Presidência da República. E não poupa críticas à condução do partido em temas tão fundamentais para a Democracia brasileira, como a regulação da mídia ou o relacionamento com os militares. Acreditamos que é uma boa degustação do livro.

Ele fez uma transformação social sem violência. Não há na história moderna alguém que tenha conseguido fazer uma Revolução sem focar na luta de classe, lembra autor

Jornalistas Livres
Fernando Morais, que acaba de publicar o primeiro volume da biografia de Lula

Confira a entrevista

Jornalistas Livres – Você sempre faz questão de dizer que o Lula não é radical, que não é um comunista, que não é um revolucionário. E, no entanto, você apresenta tudo isso de forma muito positiva, dizendo que foi assim que o Lula construiu a grande liderança dele. Você não acha que isso foi a força do Lula, mas ao mesmo tempo a fraqueza política do PT na hora de enfrentar o rebote da burguesia?

Fernando Morais – Um paralelo muito interessante pode ser feito com o presidente Hugo Chávez, da Venezuela, que era um revolucionário marxista. E é uma coisa curiosa o fato de ele ser marxista e cristão. (eu achava que era o único exemplar no planeta, mas descobri que, aqui entre nós, tem vários assim). Era este caráter revolucionário que basicamente distanciava o Chávez do Lula. A utopia, o horizonte que os dois queriam, era o mesmo. Só que um (Chávez) estava disposto a fazer uma Revolução se fosse preciso. E o outro (Lula) preferia de outro jeito. Chávez inspirava-se nas quatro únicas mudanças fundamentais que a sociedade moderna viu, que foram a Revolução Francesa, a Revolução Russa, a Revolução Chinesa e a Revolução Cubana. Sangue até as canelas…

Salvador Allende tentou fazer algo “democrático” entre aspas, fazer socialismo através do voto e deu no que deu. Deu numa carnificina, deu na barbaridade que foi o pinochetaço no Chile.

O Lula é fruto de uma metamorfose extremamente curiosa. Quando os milicos dão o golpe em 1964 e ele era um adolescente de 16, 17 anos, Lula achava que os milicos iam consertar o Brasil. Ele se informava por jornal e televisão e era isso que jornal e televisão diziam. Agora, ele tinha… você já começa a identificar que, no tutano dele, tinha um capeta ali, tocando fogo na cabeça dele. É que Lula, no mesmo momento em que achava que os milicos iam consertar o Brasil, esse mesmo Lula tinha dois heróis: Leonel Brizola e Miguel Arraes, inimigos jurados da Ditadura Militar.

Isso já mostra que ele era um cara diferenciado. No sindicato dos Metalúrgicos, ainda noviço na vida sindical, ele lidava com o trabalho, com a exploração do trabalho. E isso era no cotidiano, com os peões de fábrica. Não foi nos livros que ele aprendeu. Foi ali, vendo patrão chupando, furando seu olho e chupando o caldo dele. Foi ali que ele foi se formando, ele foi vivendo uma metamorfose…

Já tendo se tornado um sindicalista, ele estava no Japão, num congresso mundial de trabalhadores e alguém ligou para ele, do Brasil, e disse o seguinte:

“Seu irmão, Frei Chico (que era do partidão, e que, algumas vezes, tentou cooptar o Lula, sempre sem sucesso) está no Doi-Codi sendo torturado”.

Lula largou tudo, pegou o primeiro avião que apareceu, fez uma escala nos Estado Unidos, veio para o Brasil e foi bater no QG do Segundo Exército. O Lula é um sujeito valente. Em vez de ele bater de porta em porta, delegacia de bairro em delegacia de bairro, ele foi bater na sede do QG do Segundo Exército.

“Quero saber do meu irmão!”

Na hora, ele descobriu que o irmão estava sentado na “Cadeira do Dragão”. As pessoas talvez não saibam o que é isso. É uma cadeira, toda de metal. Você se senta nela. Daí, todo o seu corpo e a cadeira são molhados. Você é colocado nu ou nua nessa cadeira (faziam isso com homem e com mulher). E então ligavam a “Maricota”, uma máquina a manivela, geradora de choques elétricos. Quanto mais rapidamente a manivela era girada pelo torturador, maior a intensidade do choque.

E o sujeito baba, vomita, faz xixi, faz cocô, aguentando o cacete, aguentando o cacete, aguentando o cacete. Quando o Lula descobriu isso, foi mais um passo na metamorfose dele. Mas aí entra a diferença: ele tem fé em transformação profunda da sociedade sem que você tenha que matar o seu vizinho bolsonarista, sem que você tenha que disparar um só tiro.

E você não pode dizer que ele não tenha motivos pra acreditar nisso.

Porque ao mesmo tempo em que ele não é um revolucionário, ele fez uma revolução no Brasil.

Ele tirou quarenta milhões de pessoas da miséria. Sem dar um tiro. Não há um só exemplo na história mundial de alguém ter tirado 40 milhões de pessoas da tragédia da fome e do desemprego sem botar uma pessoa na cadeia, sem dar um tiro. Um só.

Então, isto reforça a convicção dele, com a qual eu não estou de acordo, isso reforça a convicção dele de que é possível fazer uma transformação social sem violência…

Eu não acredito. Não acredito, não. E não que eu queira a violência… Ao contrário: não sou capaz de matar um mosquito… Mas não há precedente, e a história é uma grande conselheira, não há na História da Humanidade, não há na História da Era Moderna, alguém que tenha conseguido fazer uma Revolução (uma transformação profunda na sociedade) sem focar em um negócio que, no Brasil, está sendo deixado de lado: a luta de classe.

Então, eu acho que o Lula tem razão pra acreditar que seja possível fazer uma transformação social sem violência. Mas uma transformação profunda, isso não se faz sem Revolução.

No dia da despedida dele, antes de ele ser preso pela Polícia Federal, vocês estavam lá, vocês devem se lembrar que, no palanque, ele disse o seguinte:

“Se eu quisesse fazer uma Revolução, eu tinha feito uma Revolução em 1980. Eu tinha feito a Revolução e não um partido político!”

Então, ele mesmo assume… “Eu não quis fazer uma Revolução. Se eu quisesse fazer uma revolução, eu não teria criado um partido. Teria feito uma Revolução.”

Vai dizer que é uma visão equivocada da história? Não sei.

Você tem insistido que o Lula é hoje em dia um militante anti-imperialista. Queria te ouvir um pouquinho sobre isso.

A perseguição contra Julien Assange, Edward Snowden e Chelsea Manning, que revelaram o intrincado esquema de espionagem e o intervencionismo das agências de segurança dos EUA em assuntos internos de vários países, entre os quais o Brasil, deixou claro, translúcido, transparente para o Lula o tamanho da mão do império. Na hora em que o Lula descobre que é o governo de Barack Obama que está grampeando a Dilma, que está grampeando a Petrobras, que está abrindo as portas para o Michel Temer, o “postiço”, para roubar o pré-sal, fica claro para Lula que se trata de um bando de ladrões e piratas, de abutres que têm um único interesse nas relações com o Brasil: comer nossa riqueza. Então isso é todo um processo. Agora, você vai me perguntar: Por que o Lula não diz isso?

Eu me lembro do doutor Tancredo Neves. Eu conhecia o Tancredo desde quando era ainda menino. Na campanha do Tancredo para presidente da república, ele resolveu encerrar a campanha com um comício gigante na praia de Boa Viagem, em Recife, onde só iam ter a palavra brasileiros que nunca tinham votado pra presidente. Personalidades, artistas, políticos e eu, por nunca ter votado para presidente, foram chamados a falar. Mega palanque para quinhentas pessoas. Eu chamei Tancredo num canto e falei: “Doutor Tancredo, o senhor já falou de reforma agrária, o senhor já falou disso, o senhor já falou de salário mínimo, o senhor já falou de melhorar condições de vida dos trabalhadores, o senhor já falou de soberania nacional. Mas o senhor nunca falou diretamente de relações com Cuba. Por quê?” Tancredo já sabia da minha posição a respeito de Cuba, meu livro “A Ilha” já tinha sido publicado. E ele, como se estivesse cochichando no meu ouvido, falou assim: “Se eu falar, eu não faço. Para fazer, eu não posso falar agora.” E tanto isso era verdade que Tancredo nem chega a assumir a presidência da república, porque morre antes, vem o José Sarney e qual foi o primeiro ato do Sarney na área de política externa? Reatar relações com Cuba. Isso, certamente, não foi iniciativa do Sarney, e sim parte do pacote que ele recebeu de Tancredo. Então, eu acho que o Lula não manifesta de uma maneira mais expressa essa convicção anti-imperialista que ele tem para poder governar, para poder lutar contra o imperialismo.

Como é que você explica a leniência do PT em relação à questão da regulação da mídia?

É preciso esclarecer a população sobre o que é regulação da mídia. Em qualquer lugar do planeta, a imprensa está a serviço da ideologia de quem paga as contas no final do mês. Ninguém tem ilusão com relação a isso. E você não pode ser objeto de censura. É diferente a regulação de rádio e televisão, que são propriedade pública. O senhor Roberto Marinho, seus filhos, seus netos são concessionários de algo e não podem usar isso em seu único e exclusivo interesse. A lei não permite.

Alguém aí certamente vai dizer é o cubano aqui que está fazendo um proselitismo político. Na-na-nina. Vai aos Estados Unidos e pede a concessão de um canal de televisão. A partir do momento que você recebe essa concessão, você não pode ser dono de jornal. Se você é dono de jornal, você não pode ser dono de rádio. O jornal “O Globo” era um jornaleco de merda, provincial e provinciano no Rio de Janeiro até que a TV Globo o transformou numa potência. E como? Fazendo o quê? Fazendo anúncio! De graça! Toda noite, no meio do Jornal Nacional, falando pra cem milhões de pessoas, era anunciado: “Amanhã, ‘O Globo’ vai trazer tal notícia, assim e assim!” Isto não pode acontecer! Outra coisa! Quem tem mandato público, quem tem mandato de deputado, quem tem mandato de senador, quem tem mandato de vereador não pode ser concessionário. Vai no congresso, pega todos os canais, pega todas as reprodutoras da Globo, da Band, do Bispo, do Silvio Santos, de quem quer que seja… São todos senadores, são deputados federais. E está claro na Constituição que isso é proibido! Então, regular a mídia é o contrário do que a escória de direita, do que a elite espalha pra envenenar o projeto do Lula. Regular a mídia não é censura, não. É o oposto da censura. É não permitir a manipulação, não permitir a hegemonia, a propriedade única.

O Lula só se deu conta do tamanho da sacanagem que estava sendo feita com os brasileiros quando ele chamou o Franklin Martins e o Otoni Fernandes para dirigirem a área de comunicação do governo e encaminharem o projeto de regulação da mídia. Isso era pra ter tido prosseguimento no governo Dilma Rousseff e não foi. Aliás, tem gente carregando essa cruz nas costas… o Paulo Bernardo do Paraná, por exemplo. Muita gente diz que o projeto de regulação da mídia parou quando Paulo Bernardo assumiu o Ministério das Comunicações, no governo Dilma. E essas pessoas estão enganadas. Leia o volume dois do meu livro sobre o Lula (ainda por ser lançado) e você vai ficar sabendo quem foi que disse pra ele o seguinte: “Senta em cima do projeto do Franklin Martins e não se fala mais nisso.”

Quem?

E eu lá vou dar spoiler? E digo que não foi só a Dilma, não. E você sabe quem é que teve audiência no Palácio do Planalto no mesmo dia desse despacho? João Roberto Marinho. Eu vou dar nome e sobrenome, apelido, endereço e horário de quando isso aconteceu. O Paulo Bernardo está carregando essa cruz. Não foi ele. Ele foi proibido de tocar para frente a regulação da mídia. A minha esperança é que o Lula se eleja presidente.

Primeiro, para esvurmar Bolsonaro e essa matilha que ele trouxe para o governo. Segundo, pra conseguir a regulação dos meios de comunicação. Acho que, cada dia mais, Lula tem clareza disso. E ele passou a ter clareza disso quando descobriu que a conspiração que derrubou a Dilma, que arrebentou o país, que o levou para a cadeia e que elegeu a escória que está em Brasília não teria acontecido só com o Ministério Público, só com a Polícia Federal e só com o Judiciário. Se não tivesse por trás a Globo, a TV Globo, a revista Veja, a Folha, o Estadão, não teria acontecido.

Sem essa cachorrada da grande mídia não teria havido golpe de estado contra a Dilma, o Lula não teria ido para a cadeia, e ele teria vencido as eleições em 2018. Lula sabe disso. Ele não precisa ler meu livro para saber disso. Então, eu tenho esperança. Acho que o Lula eleito presidente a gente vai avançar muito. A Globo e a família Marinho são inimigos do Brasil e dos brasileiros e assim devem ser tratados. E não é nada pessoal contra eles. Eles são símbolo de uma tragédia que esse país está vivendo.

Mas a Globo, agora, está em oposição a Bolsonaro…

A Globo sabe que errou a mão. Ela queria o Paulo Guedes, não queria o Bolsonaro. Ela não queria um miliciano, um facínora. Ela queria um cara que vendesse o Brasil. E, de uma hora para outra, para vender o Brasil você depende do genocida.

Então, eles estão arrependidos? Estão procurando a Terceira Via. Não tem terceira via. No final, vai Lula e alguém representando a direita. E pode não ser o Bolsonaro. Bolsonaro quer ser reeleito para ter imunidade, para não sair do Palácio do Planalto algemado, num camburão. Eu acho que o Moro evapora até o final do ano. O Moro não aguenta um peteleco. A história do Moro… O que ele fez até hoje e que é público já é suficientemente grave. E deve vir mais, porque eu suponho que a família Bolsonaro deve saber coisas do Moro que nós não sabemos e que vai usar se necessário for.

O Lula ganha no primeiro turno. Seja quem for o adversário. O Lula, para ganhar em primeiro turno, só tem que jogar parado. Deixa os outros falarem besteira. Deixa os outros se enforcarem nas suas próprias tripas.

Lula se converteu em um fenômeno que, no Brasil, só tem um parecido, e a história vai ser vai dizer qual dos dois teve estatura maior: ele ou Getúlio Vargas. Eu acho que o Lula já está adquirindo uma dimensão igual ou superior à de Getúlio, até pelas características pessoais. Getúlio era um tipo embutido, um tipo pra dentro. O Lula é o mais brasileiro dos brasileiros. Lula começa a conversar com você e já está te pegando, beijando. Eu levei (o diretor de cinema americano) Spike Lee para filmar o Lula e, cinco minutos depois, estavam os dois falando de futebol abraçados. Isso aí é inimaginável no Getúlio Vargas. Getúlio não era um homem de pular do palanque e se jogar nos braços do povo. Não, não era. Ele tirava o chapéu coco e acenava para o povo, guardando distância. Mas Getúlio é o presidente que peitou a elite brasileira e que declarou “daqui desse palácio eu só saio morto”. E saiu num caixão! Chico Buarque tem uma música muito bonita, chamada “Doutor Getúlio” que é uma pena que não faça tanto sucesso, cantada pela pela Simone… A certa a altura, a letra diz o seguinte: “Foi chefe mais amado da Nação”. Por aí se imagina o que é Lula superar esse Getúlio, “o pai dos mais humildes brasileiros”, como diz a letra de Chico.

Laura Capriglione, jornalistas livres


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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