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Juca Ferreira | Direita trabalha para esquecimento da riqueza cultural do Brasil

Sociólogo afirma que candidato do PT sabe que precisará destinar mais orçamento para retomar políticas culturais desenvolvidas durante seus governos
Juan Ignacio Muñoz
Página 12
Buenos Aires

Tradução:

A menos de dois meses de que quase 150 milhões de brasileiros e brasileiras vão votar para eleger presidente, vice-presidente, governadores e legisladores, conversamos com o sociólogo Juca Ferreira, que atuou como ministro da Cultura durante os governos de Lula Da Silva e Dilma Rousseff.

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Juca Ferreira fala aqui sobre a crise social, cultural e ambiental que atravessa o Brasil; a resistência a Bolsonaro que expressa o setor artístico e o povo em geral; os movimentos sociais que emergiram desde a destituição de Dilma e o desafio de retomar as políticas culturais iniciadas no governo de Lula para a construção de uma democracia plural, a partir da memória, dos saberes e da diversidade cultural do povo brasileiro

Sociólogo afirma que candidato do PT sabe que precisará destinar mais orçamento para retomar políticas culturais desenvolvidas durante seus governos

Página 12
O sociólogo e ex ministro da Cultura nos governos Lula e Dilma Roussef.

Confira a entrevista

Página 12 -“No Brasil, ser mulher negra é resistir e sobreviver todo o tempo”. A frase é de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro, feminista e afrodescendente, brutalmente assassinada em 2018. Desde a destituição de Dilma em 2016, a violência cresceu gravemente e os discursos de ódio proliferaram no Brasil. Que impacto teve isto na democracia e no tecido social? 

Juca Ferreira – Estamos vivendo uma das piores crises da história republicana brasileira. A destituição de Dilma foi uma forma contemporânea de golpe de Estado, baseada no lawfare.

Não foram os militares que interromperam o processo democrático, mas sim os juízes, os deputados e os meios de comunicação social, com muita simpatia das classes médias.

Por que interromperam a democracia que estava começando a ser construída no Brasil? Porque as elites brasileiras não aceitam nenhum mecanismo de distribuição de renda que diminua a desigualdade social do Brasil, que está entre as três maiores do mundo.

Mais de 30 milhões de pessoas estão passando fome no Brasil. A economia brasileira está caindo. O desemprego é muito elevado e o salário desvalorizou-se. Estamos vivendo um processo de retrocesso de conquistas sociais, algumas inclusive que vêm do governo de Getúlio Vargas. Bolsonaro está destruindo as estruturas institucionais, vulgarizando e degradando todo o Estado brasileiro.

A violência aumentou: assim como aconteceu com Marielle Franco, muitos líderes populares, indígenas, camponeses e de movimentos sociais estão sendo assassinados no Brasil.

A polícia aumentou notavelmente sua agressividade, especialmente nas periferias das grandes cidades brasileiras, onde cada ação acaba com pessoas assassinadas. Bolsonaro está estimulando o armamento da população e das milícias.

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Vamos ter uma eleição onde Lula representa a democracia e um projeto inclusivo e popular, e Bolsonaro representa o aprofundamento da irracionalidade, da desigualdade e da quebra de nossa soberania. Felizmente, hoje todas as pesquisas apontam que Lula ganha.

No último tempo, diferentes artistas, e o povo em geral, começaram a expressar publicamente seu descontentamento com Bolsonaro. No último disco de Caetano Veloso há uma canção que diz: “Não vou deixar que fodas com a nossa história. É muito amor, é muita luta, é muito gozo, é muita dor e muita glória. Não te vou deixar porque sei cantar”. Partilha esta fé na arte e na cultura como espaços de resistência e reconstrução?

A cultura desempenha um papel muito importante neste momento. Quase toda a área cultural está fazendo resistência a Bolsonaro e apoiando Lula. A música, o teatro, a dança, as manifestações tradicionais, e os povos indígenas estão se expressando neste sentido. Há uma impaciência do povo brasileiro com tudo o que se está vivendo.

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Bolsonaro defende abertamente a discriminação contra os negros, os homossexuais, a desigualdade e o desprezo pelas mulheres. Chegamos a um momento de ruptura. Pela primeira vez, todos compreendemos que é necessária uma afirmação de valores colectivos, de justiça social, de igualdade, de respeito pelo ser humano e pelos seus direitos. Essa disputa de valores é uma luta que se trava no campo cultural.

Qual acha que será o trabalho a realizar do Estado, em termos de políticas culturais, para acompanhar estas expressões e reafirmar estes valores? Tomando a metáfora de Gilberto Gil da gestão cultural como uma acupuntura antropológica, que pontos do corpo cultural do país haverá que estimular?

Na cultura não pode privilegiar um ponto sobre outro, temos que trabalhar o conjunto. A saúde, num conceito holístico, compreende o corpo humano como um sistema, na sua globalidade, e a cultura é semelhante.

A direita quer um país sem base cultural, sem referências, está trabalhando para um esquecimento de toda a riqueza e diversidade cultural do Brasil porque sabe que aí tem suas raízes o desejo de liberdade. A cultura brasileira nunca pôde ser domesticada, aqui o capitalismo não funcionou muito bem. Temos matrizes culturais que persistem com muita força: as dos povos originários, outras que chegaram da África, as dos portugueses.

Precisamos trabalhar com essa memória e diversidade cultural, desde os grupos contemporâneos de cultura até as manifestações tradicionais, para capacitar a sociedade e fortalecer os vínculos e sentimentos de pertença. É igualmente necessário criar condições favoráveis ao desenvolvimento das artes, criar um ambiente de liberdade de expressão absoluta e estimular a criação.

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Para isso, vamos ter que investir em formação. Na arte do Brasil acontece o mesmo que no futebol: é um extrativismo permanente do talento e da capacidade do povo brasileiro. Por conseguinte, é importante criar sistemas de formação e circuitos onde todos tenham possibilidade de ascender e desenvolver as suas capacidades.

Lula sabe que precisará destinar mais orçamento para retomar com força as políticas culturais que vinhamos desenvolvendo durante seus governos e abordar novos temas, como o acesso à internet e a cultura digital. A Internet é também uma ferramenta cultural e comunicacional muito poderosa.

O Brasil está muito longe de ser um país no qual os povos originários e afrodescendentes tenham voz própria no sistema político, assim como está acontecendo em países como a Bolívia ou a Colômbia?

As comunidades indígenas do Brasil estão muito ativas, querem ter uma bancada que os represente na próxima Legislatura do Congresso. Ante tantas bancadas negativas -a bancada da bala (dos armamentistas), a do agronegócio, a da motoserra- os indígenas estão avançando na idéia de ter a bancada do cozer, integrada por parlamentares indígenas.

É uma ideia muito importante para a construção da pluralidade cultural e étnica. E não querem falar somente de seus interesses, eles dizem que querem defender as selvas, o ar, os rios, os animais e propor outras maneiras de viver.

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Há enormes diferenças nas estruturas sociais de países como a Bolívia e o Brasil, em relação aos povos originários. No Brasil, o extermínio dos povos originários foi gigantesco. Darcy Ribeiro dizia que existem alguns tipos de sociedades que surgiram da colonização da América, fruto de uma amálgama de matrizes culturais: esse é o caso do Brasil. Aqui a complexidade social é muito grande.

A isto se soma que, desde a destituição de Dilma, surgiram muitos movimentos: sociais, identitários, emancipatórios, de setores indígenas, LGBTIQ+, de mulheres e de populações negras. A esquerda tradicional está um pouco desconcertada porque há um deslizamento, uma multiplicidade, e parece que cada grupo aborda unicamente suas demandas e programas particulares, mas não é assim.

Suas lutas ampliam e fortalecem a democracia brasileira. Lula está falando da necessidade de compreender que o Brasil mudou muito com a emergência dessas demandas e que é necessário estruturar uma democracia que contenha esta complexidade, para ter um país plural.

“A sociedade brasileira é uma sociedade constituída sobre a idéia da extração infinita dos recursos (…) A questão ambiental é uma questão de sensibilidade, de visão do mundo e de comportamento humano. Portanto, é uma questão do mundo da cultura”. Num livro que reúne artigos e discursos seus, editado na Argentina pela RGC, encontrei este fragmento e me chamou a atenção que, 15 anos atrás, já estivesse falando da questão ambiental em relação à cultura. Considera que existe um ponto de equilíbrio possível entre desenvolvimento económico, inclusão e protecção ambiental?

A problemática ambiental é outra questão que surgiu no Brasil. Não há possibilidade de manter o modelo predatório que vivemos desde a colonização. Estão destruindo a Amazônia e essa destruição está mudando o clima de todo o território brasileiro e dos países vizinhos.

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Há uma redução significativa de espécies animais e vegetais. O Brasil tem entre 15% e 17% da água potável do planeta. Essa reserva está a ser reduzida pela poluição, pela destruição dos rios e das florestas. Já existem regiões no Brasil que têm desertos, fruto da produção de soja e do agronegócio. Este modelo está nos saindo muito caro.

A infestação com câncer, no Brasil, está alcançando muitas pessoas, em setores pobres e nas classes médias, porque não tem a ver apenas com o estilo de vida: o ar, a água, os alimentos, tudo está contaminado.

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O agronegócio conseguiu aprovar, durante o período de Temer e Bolsonaro, mais de 200 novos venenos a serem utilizados na agricultura brasileira, alguns proibidos no mundo inteiro. Não é possível manter essa usura institucional e corporativa. É necessário reverter este modelo.

Claro que envolve aspectos técnicos, científicos, mas há uma necessidade de tomar consciência deste problema e que o desenvolvimento beneficie a todos os seres humanos, garantindo a preservação ambiental, e isso é também uma questão cultural.

Espero que Lula consiga introduzir a questão ambiental como um paradigma central de governo, tão importante como a redução da desigualdade e da pobreza, como o respeito pela diversidade cultural.

O futuro tem que ter memória, tem que incorporar o conhecimento do meio ambiente que têm os povos originários e suas maneiras de relacionar-se com o planeta.

Conceber o equilíbrio ambiental e a sustentabilidade como paradigmas centrais nos ajuda a aprofundar a crítica, a tomar consciência da gravidade da destruição, e a não aceitar o lucro e a acumulação como razão social, como único modo de vida. Esse é o futuro para o qual queremos caminhar. 

Juan Ignacio Muñoz | Pagina 12 | Buenos Aires | Argentina

Tradução | João Baptista Pimentel Neto


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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