Impressionante o estado a que chegou o Brasil a poucos dias da eleição presidencial. Nunca testemunhamos nada igual em nossa história. A seguir farei um breve balanço do quadro atual, suas possíveis causas e as perspectivas que se apresentam.
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Começarei a partir do impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 31 de agosto de 2016. Numa sequência vertiginosa de fatos reais e fabricados, desde a eleição de Dilma, em novembro de 2014, o somatório de graves problemas fiscais, pressões inflacionárias localizadas e a ausência de definições estratégicas ou programa de governo por parte do comando da campanha vitoriosa alimentou uma insidiosa e bem sucedida trama desestabilizadora: uma suposta crise econômica “incontrolável”, pautas-bomba no Congresso, uma cruzada moralista avassaladora na mídia e no judiciário voltada contra os principais quadros dirigentes do Partido dos Trabalhadores (PT) e seu líder máximo, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, criaram o clima necessário para o desfecho, isto é, o afastamento da chefe do executivo.
Consumado com êxito esse primeiro “lance” do jogo, passa-se sem demora aos seguintes. Judicialização sumária de todos os envolvidos (do PT), a fúria de delações premiadas sancionando a criminalização daqueles, o “empacotamento” das grandes empresas de engenharia de obras públicas nacionais como cúmplices do condomínio de poder (leia-se, dos 13 anos de PT), agregando-se a elas as maiores estatais — à testa, a Petrobrás —, e a finalização em prazo recorde do primeiro processo movido contra o presidente Lula, com sua condenação e encarceramento. Isto apenas para rememorar alguns dos fatos mais importantes, meticulosamente conduzidos dentro da mais estrita “ordem” institucional e da formalidade processual.
Em paralelo, o “novo” governo, composto pelo vice-presidente da chapa eleita em novembro de 2014 e muitos dos ministros que faziam parte do governo deposto ou de administrações anteriores de Dilma e Lula, tomava posse e imediatamente acionava uma agenda de “reformas” privatizantes, de fixação do teto de gastos públicos, da reforma trabalhista e da desnacionalização de nosso patrimônio natural, sobretudo, do aparato construído em torno das reservas de petróleo de profundidades submarinas (o pré-sal). Faltou somente a reforma da previdência, adiada para ser conduzida no próximo mandato presidencial.
Por sua vez, a gestão da política econômica do governo Temer foi delegada a uma equipe de notáveis do mercado financeiro e economistas do mainstream conservador, saudada pelos formadores de opinião como um verdadeiro “dreamteam”.
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Nelson Jr./ ASICS/ TSE
Não há espaço aqui, nem é nosso propósito, detalhar os acontecimentos vividos, as medidas adotadas, agregar elementos de análise e muitas outras peças do jogo, que dariam mais nitidez, nuances e coerência ao conjunto da obra. Basta apontar que, do ponto de vista dos “artífices” do processo, ele foi coroado de êxito, no sentido de que todos as ações conduzidas pelos golpistas — sem nenhuma exceção — tiveram seu desfecho (bingo!) conforme programado.
Contudo, observemos quais os resultados reais dessa ofensiva avassaladora e qual seu legado político, em termos de como ela se traduz no presente embate eleitoral.
Nesses quesitos, que são o que verdadeiramente importam, pois dizem respeito a vida da população brasileira e ao futuro do país, o balanço é, no mínimo, desapontador. Revela quão irresponsáveis têm sido nossas classes dirigentes. O absurdo da situação produzida.
Começando pelo fim, “faltou apenas combinar com a população”, como se diz. Um governo desacreditado, ilegítimo, com os piores índices de avaliação da história da república. Corrupção generalizada, e inapetência dos mesmos órgãos moralizadores que dizimaram os dirigentes do PT em puni-la exemplarmente. Desmoralização em massa da classe política e das instituições representativas da ordem democrática constitucional. Sem colocar nada no lugar.
No plano econômico, recessão, desemprego, contínua frustração dos resultados pretendidos. Ciência e tecnologia nacionais à míngua. Serviços públicos sucateados. Indústria em declínio (persistindo numa trajetória que já dura mais de duas décadas). Pior: sem perspectiva de uma sólida recuperação (continuada no tempo) no horizonte próximo, pois nossas elites são muito hábeis em construir cenários capazes de lhes dar retorno imediato. Já quanto ao longo prazo…, isto é, projeto de país, inserção competitiva no mundo, prioridades estratégicas, planos de desenvolvimento nacional e sua sustentação política e financeira, incorporação de “excluídos”, formação de suas lideranças…, as elites brasileiras são de uma indigência histórica assustadora. Abissal. Uma outra face do “espírito nacional”: cinismo, canalhice, demagogia, aversão ao povo.
Resultado: o processo eleitoral apresenta um quadro de candidaturas conservadoras esfaceladas — o conhecido “centrão” —, a pulverização do partido avalista do golpe, expressão maior da elite paulista supostamente moderna — o PSDB —, a ausência completa de renovação de lideranças políticas — este um quadro geral, abrangendo todo o espectro político-partidário, que pode ser explicado, no passado recente, pela implacável campanha de demonização da política, que vitimou a tudo e a todos, e, no plano mais geral, pela crise da democracia representativa no mundo inteiro e do protagonismo global das finanças e do tecnicismo “apolítico” (mas, por isso mesmo, mais descaradamente classista e discriminatório).
Fruto de tudo isso, e em face da ausência de lideranças novas e propostas consequentes no campo conservador, a extrema direita saiu definitivamente do armário. E constitui, como alguns analistas apontam, uma força relevante no embate político atual no Brasil (e em muitas partes do globo também…). Em nosso país, ela é representada pela candidatura de Jair Bolsonaro (PSL), francamente reacionária e abertamente hostil ao processo democrático. Além de, no plano econômico e estratégico, não fornecer nenhuma saída consequente aos impasses do crescimento econômico nacional. Ao contrário, como salientam muitas apreciações de veículos de imprensa insuspeitos de abraçar posições de esquerda (como The Economist ou New York Times, entre outros), representa um verdadeiro desastre, podendo afastar o Brasil dos trilhos democráticos e isolá-lo internacionalmente.
Do lado progressista, o jogo golpista conseguiu a proeza de fortalecer o líder das preferências eleitorais até sua abdicação em favor de Fernando Haddad (PT), Lula, preso, mas ainda assim o principal protagonista, “na sombra”, das eleições presidenciais. Em vez de derrotá-lo no debate político e no certame eleitoral, para os quais a direita não teve coragem e competência. Assim, a elite jogou o país numa encalacrada, pois o PT, se vencer as eleições, terá sua governabilidade, no mínimo, comprometida pela hegemonia de uma institucionalidade francamente hostil ao alargamento do campo democrático-popular. Por outro lado, as forças dominantes na economia e na finança, ditas “modernas”, tendo que aturar, seja um governo conduzido sob a égide de Lula (será solto em breve?), e se verem de novo premidas ante a urgência de reformas de conflitivo teor, ou então terem que assumir decididamente uma opção retrógrada, que ao fim e ao cabo pode se voltar contra seus próprios interesses (o governo Bolsonaro), ao aprofundar ainda mais a divisão do país.
Por fim, não é momento aqui de proceder a uma crítica da atuação pregressa ou das propostas do PT para um possível futuro governo. Já o fizemos parcialmente em outros momentos aqui mesmo em Diálogos do Sul (e você pode ler aqui, aqui e aqui) e teremos que necessariamente fazê-lo em algum momento, com firmeza e responsabilidade. Mesmo sem ter ainda clareza de quem, no campo progressista (que conta ainda com Ciro Gomes (PDT)), chegará ao segundo turno e se vencerá as eleições (oxalá!), um futuro imediato conturbado se desenha, para o qual vai se exigir discernimento, lucidez e capacidade de articulação estratégica das forças democráticas do país. Produtos escassos no mercado. Tempos difíceis pela frente…