Foram necessários 341 dias de sistemático levantamento social para que o governo do Chile dialogasse com a Mesa de Unidade Social, um conjunto de 200 organizações civis cujos dirigentes foram recebidos ontem no Palácio de La Moneda, sede do governo, pelo ministro do Interior, Gonzalo Blumel. A reunião se prolongou por duas horas e meia e, além de dizer coisas na cara do chefe político, nada mais se obteve.
Simultaneamente, em uma academia de polícia, o presidente Sebastián Piñera se despachava à vontade com sua oratória intimidante e belicosa na cerimônia de graduação de 250 novatos da Polícia de Investigações (PDI), aos quais expôs sua teoria do inimigo interno que usa para explicar a crise política e social que tem destruído sua presidência, chegando a dizer que é uma guerra.
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“Estamos enfrentando um inimigo poderoso, implacável. Que não respeita nada nem ninguém, que não respeita a vida dos seres humanos, que não respeita nossos heróis(…) que não respeita nossas infraestruturas mais básicas como o Metrô ou os nossos hospitais. Um inimigo que age com um planejamento profissional e uma maldade sem limite”, escutaram os detetives.
“Estamos vivendo tempos muito difíceis. (…) Por essa razão quero que tenhamos consciência. Aqui não há que dar espaço nem à tibieza, nem à ambiguidade. Nem muito menos à debilidade”, afirmou.
“A legislação que temos hoje para combater os encapuzados, os vândalos, os que fazem barricadas e obstaculizam o livre trânsito não é suficiente”, mas são necessárias “leis mais severas para enfrentar com maior eficácia este implacável inimigo”, assegurou.
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Os senhores saem, disse aos detetives, “a combater essa violência criminosa que conhecemos nos últimos dias. Essa delinquência sem limite em que também estão envolvidos o narcotráfico, movimentos anárquicos e muitos outros. E sempre, e em todo momento, têm que fazê-lo no marco da lei, dentro do marco do respeito aos direitos humanos de todas as pessoas”.
Depois disto, com que espírito sairão estes policiais à rua?
Mas essa é a linguagem empregada por Piñera desde o dia primeiro para se referir à explosão social e por cujo desastroso manejo passará à história com dezenas de mortos e centenas de feridos, com flagrantes violações e abusos aos direitos humanos, constatados pela Anistia Internacional e pela HRW.
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O presidente não destinou uma só palavra para lamentar a sorte de Gustavo Gatica e de Fabíola Campillay, às duas pessoas que ficaram cegas em mãos da polícia. Gustavo, de 21 anos e estudante de psicologia, participava pacificamente em uma manifestação em 8 de novembro quando um tiro de escopeta com chumbo atingiu seus olhos. E Fabíola, de 36, recebeu no rosto uma bomba de gás lacrimogêneo disparada diretamente por um carabineiro, na noite de quarta-feira 27, enquanto esperava transporte para ir ao seu trabalho noturno em uma fábrica.
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Com os dirigentes sociais
Um dos dirigentes que compareceu à La Moneda, o presidente do Colégio de Professores, Mario Aguilar, afirmou que expuseram “com clareza e transparência quais são nossos demandas” e que se tratou de “uma reunião dura, áspera, no sentido de como apresentamos as coisas”.
O dirigente qualificou como “absolutamente insuficiente” o acordo para gerar uma nova constituição ao que chegaram há duas semanas dirigentes do oficialismo e da oposição, demandando que as organizações sociais possam ser parte desse acordo, mas só se forem consideradas suas petições.
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“Queremos uma nova Constituição mas sem letras miúdas e armadilhas. Temos sido muito claros em que não estamos disponíveis para uma negociação pelas costas das pessoas. Valoramos que tenha havido este primeiro diálogo, mas não há disponibilidade nossa para coisas escondidas, têm que responder à cidadania”.
A presidenta da Central Unitária de Trabalhadores (CUT), Bárbara Figueroa, reconheceu que o ministro Blumel lhes solicitou o início de um processo de diálogo, ao qual lhe responderam que “só poderíamos iniciar um diálogo quando aqui houver sinais claros e contundentes, como por exemplo deter a tramitação dos projetos que as pessoas não querem, como o da renda mínima”.
Ela demandou que “o governo comece a se responsabilizar por uma agenda social mais ambiciosa e oxalá em um tempo mais curto, e que não tenha que esperar por mais 40 dias de mobilização para dar respostas”.
*Aldo Anfossi, especial para La Jornada desde Santiago do Chile.
**La Jornada, especial para Diálogos do Sul — Direitos reservados.
***Tradução: Beatriz Cannabrava
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