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Em plena era tecnológica, estamos vivendo em tempos de uma precipitada barbarização

A esperança era a de ver um mundo onde a comunicação horizontal substituiria o sistema vertical de informação que Gutenberg fez possível
Roberto Sávio
Diálogos do Sul Global
Roma

Tradução:

Quando tudo está dito e feito, parece que Thomas Hobbes, aquele filósofo inglês do século XVII que teve uma terrível visão do homem, não estava totalmente equivocado. Pois bem, olhemos a frivolidade e a seriedade do mundo em que vivemos. Em apenas uma semana tivemos quatro notícias que não ocorreriam em um mundo normal. 

Uma beleza pornô inglesa com 86.000 seguidores nas redes sociais colocou à venda frascos com a água com a qual se banha a 33 euros por frasco e já vendeu vários milhares deles. 

Depois, uma enquete no Brasil revelou que sete por cento dos cidadãos acredita que a terra é plana e em 40 das escolas estadunidenses ensinam que o mundo foi criado em uma semana, segundo a Bíblia, motivo pelo qual não pode haver civilizações antigas. Uma conferência sobre o mesmo tema reuniu em junho, na Sicília, pessoas de todo o mundo. 

Outra, esta vez de membros do partido britânico, os tories que elegeram Boris Johnson como primeiro ministro (não é precisamente um triunfo da razão) estão tão a favor de um Brexit “duro” que não lhes importa que isto signifique a saída da Escócia e o fim do Reino Unido da Grã Bretanha.

A esperança era a de ver um mundo onde a comunicação horizontal substituiria o sistema vertical de informação que Gutenberg fez possível

Reprodução via Facebook
Com a Internet, em troca, as pessoas já podem falar diretamente em e a todo o mundo

Finalmente, para ganhar as eleições, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, fez do racismo uma de suas bandeiras e, em um país de imigrantes, isso lhe deu um aumento de cinco pontos nas pesquisas de opinião. 

Há tantos signos de “barbarização” que encheriam um livro… e mais de um!

Eurípides escreveu: “A quem os deuses querem destruir, primeiro o enlouquecem”.

Não é costume, mas temos que olhar a realidade e observar que, no período de maior desenvolvimento científico e tecnológico da história, estamos vivendo em tempos de uma precipitada barbarização.

A desigualdade social converteu-se na base da nova economia. As pessoas já reduziram suas expectativas e estão preparadas para trabalhar em tempo parcial em um ‘emprego’ precário, e aos jovens (segundo a Organização Internacional do Trabalho) só lhes resta a expectativa de receber uma aposentadoria de 600 euros por mês. 

Isto foi aceito pelo sistema político. Temos um estudo da Espanha segundo o qual, no atual mercado imobiliário, quase 87% das pessoas necessitam 90% de seu salário só para alugar uma moradia. 

Hoje em dia, para muitos, um salário significa sobrevivência, e não uma vida digna. A nova economia desenvolveu a chamada “economia do carrossel”: você trabalha para distribuir alimentos, mas o fará como um coo-empreendedor, sem nenhum dos direitos de um empregado, e por um pagamento que nunca lhe permitirá casar-se. 

E as crianças já se acostumaram a ver fenômenos como a pobreza ou a guerra como algo natural. 

Por outro lado, a política já não se baseia em ideias, mas em como poder explorar com êxito as entranhas das pessoas, ondeando cartazes contra os imigrantes (agora que estamos presenciando uma rápida quada da taxa de natalidade) e dividindo ao países entre “nós” que representamos as pessoas, e “vocês” inimigos do país. Os Estados Unidos são o melhor exemplo, onde os republicanos consideram os democratas como inimigos dos Estados Unidos. 

Isto nos leva a uma pergunta central: por acaso não foram eleitos democraticamente tanto Trump como o italiano Matteo Salvini, o brasileiro Jair Bolsonaro e companhia? São o sintoma ou a causa da “populocracia” que substitui a democracia? 

Evidentemente não é possível oferecer aqui um estudo sociológico ou histórico, assim que ficamos em um jogo de palavras: passamos da era Gutenberg a uma nova: a era Zuckerberg.

Aqueles que celebraram com entusiasmo a chegada da Internet também o fizeram porque democratizaria a comunicação e, portanto, geraria uma maior participação. A esperança era a de ver um mundo onde a comunicação horizontal substituiria o sistema vertical de informação que Gutenberg fez possível.

A informação era, de fato, um instrumento para os estados e as empresas, que a utilizavam para chegar aos cidadãos, que não podiam recorrer à retroalimentação. 

Com a Internet, em troca, as pessoas já podem falar diretamente em e a todo o mundo e a propaganda que acompanhou sua chegada não foi considerada relevante. 

A campanha dizia: saber já não é importante, o importante é saber onde encontrar… Bem, temos todas as estatísticas sobre como a Internet afetou o nível geral de cultura e de diálogo. 

A capacidade de atenção das pessoas tem diminuído dramaticamente. A maioria dos usuários da Internet não se fixam em um tema mais do que 15 segundos. Nos últimos anos, o volume dos livros tem se reduzido em 29 páginas em média. E hoje em dia, os artigos de mais de 650 palavras já não são aceitos pelos serviços dos colunistas. 

A última reunião de editores de agências de notícias internacionais decidiu baixar o nível de comunicação das notícias das pessoas de 22 anos para as de 17 anos. 

Na Europa, a porcentagem de pessoas que compram pelo menos um livro ao ano agora é de 22% (Nos Estados Unidos é só de 10,5%). E segundo um estudo recente na Itália, só 40% da população é capaz de ler e entender um livro. E 13% das bibliotecas do país fecharam nos últimos 10 anos. 

Uma transmissão muito popular na Espanha foi a de «59 segundos», que viu várias pessoas debatendo em torno de uma mesa; aos 59 segundos desapareceram seus microfones. Hoje, o sonho de um entrevistador de televisão é que a pessoa entrevistada dê uma resposta mais breve do que a pergunta. 

E os jornais já são para pessoas de mais de quarenta anos. E há uma queixa unânime sobre o nível dos estudantes que ingressam à universidade; nem todos estão livres de erros de ortografia e sintaxe. E a lista poderia continuar praticamente até o infinito. 

O problema da barbarização adquire maior relevância para a participação política. 

As gerações Gutenberg estavam acostumadas ao diálogo e à discussão. Hoje em dia, 83% dos usuários de Internet (com 80% menores de 21 anos), só o fazem no mundo virtual em que foram forjados. As pessoas do Grupo A se reúnem com as pessoas do Grupo A. E se encontram alguém do grupo B, se insultam. 

Os políticos puderam se adaptar rapidamente ao sistema. O melhor exemplo é Trump. Todos os jornais dos Estados Unidos têm em total uma circulação de 60 milhões de exemplares (dos quais aqueles de qualidade circulam entre 10 milhões de conservadores e outro tanto entre os progressistas).

Trump tem 60 milhões de seguidores que tomam seus tuítes como informação. Não compram jornais e se assistem televisão, são espectadores da Fox, que é o amplificador da voz de Trump. Não é de estranhar, pois, que mais de 80% dos eleitores de Trump vão votar por ele novamente. 

E os meios, que perderam a capacidade de oferecer análise e cobrir processos, e não apenas eventos, já tomam o caminho fácil: seguir os famosos e fazê-los ainda mais famosos. 

O jornalismo analítico está desaparecendo. Nos Estados Unidos ainda existe graças a subvenções e, em todos os países europeus, sobram poucos diários de qualidade, enquanto a maior circulação a têm os periódicos que poupam aos seus leitores o esforço de pensar. The Daily Mirror na Grã-Bretanha e Bild na Alemanha são os melhores exemplos. 

Internet fez de todos um comunicador. Isto é uma conquista fantástica. Mas nessa crescente barbarização, as pessoas utilizam a Internet também para transmitir informação falsa, histórias baseadas na fantasia, sem nenhum dos controles de qualidade que costumava ter o mundo dos meios de comunicação. E a classe política cavalga por este caminho, em lugar de ensinar civismo e visão. 

A inteligência artificial entrou com força na rede, criando muitas contas falsas que interferem no processo eleitoral, como foi demonstrado nas últimas eleições nos Estados Unidos, 

Devemos agregar a isto que os algoritmos utilizados pelo proprietários da Internet pretendem captar a atenção dos usuários para mantê-los o maior tempo possível. Este mês, o diário espanhol El País publicou um extenso estudo intitulado “A toxicidade do Youtube”, no qual mostra como seus algoritmos levam o espectador a elementos que são de fantasia, mas de grande atração. 

Isso se deve ao fato de que os proprietários enriqueceram fabulosamente ao transformar os cidadãos em consumidores. Eles descobrem nossa identidade e a vendem às empresas para sua comercialização, e para as eleições. 

Esses proprietários têm uma riqueza sem precedentes, nunca alcançada no mundo real; e não apenas no mundo da produção, mas também no universo das finanças, que se converteram num cassino sem controle. 

O universo total da produção de bens e serviços, feito pelo homem se aproxima a um trilhão de dólares por dia; no mesmo dia, os fluxos financeiros alcançam os 40 trilhões de dólares. 

O divórcio do fundados da Amazon, Jeff Bezos, proporcionou a sua esposa 38 bilhões de dólares. Isto equivale à renda média anual de 20.000 dólares correspondente a 19 milhões de pessoas. Não é de estranhar, pois, que só 80 indivíduos possuem agora a mesma riqueza que 2,3 bilhões de pessoas (em 2008 eram 1.200 indivíduos).

Segundo os historiadores, a cobiça e o medo são grandes motores de mudança na história. Isso também foi certo da era de Gutenberg. Mas agora ativou-se uma combinação de ambos em um curto espaço de tempo. 

Depois da queda do Muro de Berlim (1989), a doutrina da globalização liberal chegou com tal força que Margaret Thatcher (que junto com Ronald Reagan introduziu a nova visão dos benefícios individuais e a eliminação do bem-estar social) falou do Não Há Alternativa (TINA, em inglês, por There Is No Alternative).

Todo o sistema político, socialdemocratas incluídos, aceitou manejar um sistema de valores baseado na cobiça e na competição sem restrições no nível individual, estatal e internacional.

Foram precisos 20 anos, desde a queda do muro de Berlim até a crise financeira de 2008, para compreender que os pobres se tornaram mais pobres e os ricos mais ricos, e que os estados perderam grande parte da sua soberania diante da corporações multinacionais e do mundo das finanças. 

Vale a pena assinalar que, na crise de 2009, para salvar um sistema financeiro corrupto e ineficiente, o mundo gastou 12 trilhões de dólares (4 trilhões só nos Estados Unidos). Desde esse resgate, os bancos pagaram a impressionante soma de 800 bilhões de dólares em multas por atividades ilícitas. 

A crise financeira de 2009 provocou uma onda de medo. Não esqueçamos que até 2009, não houve partidos soberanistas, populistas e xenófobos em nenhuma parte, exceto a então Frente Nacional de Le Pen na França. 

E velhas armadilhas como “em nome da nação” e “a defesa da religião” não tardaram em ser ressuscitadas por políticos capazes de mantar a onda do medo. Encontrou-se um novo bode expiatório, os imigrantes, e os populocratas já estão socavando a democracia em toda parte. 

A populocracia é a nova onda. O ex-primeiro ministro italiano, Silvio Berlusconi, introduziu uma nova linguagem política e televisiva. Salvini, Trump e outras a atualizaram. Twitter, Facebook e Instagram são a nova mídia e agora o meio é a mensagem. A velha elite não encontrou uma nova linguagem para se comunicar com as massas.

A era de Marc Zuckerberg, o fundador do Facebook, é uma era de cobiça e medo. 

Ela tenta agora criar uma moeda global, Libra, para ser utilizada por seus 2,3 bilhões de usuários. Até agora, os Estados eram as únicas entidades capazes de emitir dinheiro, um símbolo da nação. A moeda de Zuckerberg está baseada totalmente na Internet e não terá controle nem regulações. No caso de falhar, teremos uma crise mundial sem precedentes. Na era de Gutenberg isto não era possível.

Mas, quem fez que Jeff Bezos possa dar 38 bilhões de dólares a uma ex-esposa? Quem elegeu Trump e Salvini e companhia? Aqueles que falam em nome da nação e das pessoas e convertem os que não estão de acordo com eles em inimigos da nação e das pessoas, criam uma polarização sem precedentes, acompanhada por uma orgia de revoltas contra a ciência e o conhecimento, apoiaram a elite, e são, portanto, inimigos das pessoas comuns. 

Nunca se havia visto uma campanha para reduzir a instrução, a pesquisa, a medicina pública e eliminar os pilares da cultura clássica, como o grego e o latim. Bolsonaro no Brasil anunciou que quer eliminar filosofia e sociologia. 

Este processo de barbarização não deve ocultar um velho provérbio: cada povo tem o governo que merece. Chama-se democracia. No entanto, a elite tradicional não tem código de comunicação com a nova era. Há uma brecha crescente entre a elite e os cidadãos. E a resposta poderia ser encontrada na mobilização cidadã. 

Uma jovem sueca, Greta Thunberg, tem feito mais com sua obstinação por criar consciência sobre o perigo iminente da mudança climática, que todo o sistema político, incluso Trump (embora por motivos eleitorais) declarou que a mudança climática é importante. 

Hoje em dia, muitos “pontos de luz” estão aparecendo no mundo. As eleições em Istambul são um bom exemplo, igual que as mobilizações em Hong Kong, Sudão e Nicarágua, entre muitas.

Esperemos chegar a um ponto em que as pessoas tomem as rédeas do processo e despertem o mundo do curso precipitado da barbarização. 

Inclusive Thomas Hobbes chegou à conclusão de que a humanidade sempre, mais cedo ou mais tarde, encontrará o caminho correto e se outorgará um bom governo. Ele pensou que uma elite sempre seria capaz de dirigir as massas. 

Bem, as elites são agora os e as Greta Thunbergs deste mundo.

Jornalista ítalo-argentino, Roberto Savio foi cofundador e diretor geral da Inter Press Service (IPS), da qual agora é presidente emérito. Nos últimos anos também fundou Other News, um serviço que proporciona “informação que os mercados eliminam”. 

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Roberto Sávio

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