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Em possível retaliação do Marrocos por tratamento concedido a líder Saharauí, Espanha vive grave tensão migratória em Ceuta

Em menos de 24 horas, mais de oito mil migrantes africanos cruzaram a fronteira espanhola, muitos deles nadando, outros a pé e sem a mínima resistência da polícia fronteiriça marroquina
Armando G. Tejeda
La Jornada
Madri

Tradução:

A crise humanitária na praia do Tarajal, em Ceuta (Espanha), se transformou em menos de 24 horas em um conflito diplomático de alto voo, com acusações cruzadas de “chantagem” e ameaças diretas que vaticinam mais tensão. 

Em menos de 24 horas, mais de oito mil migrantes africanos cruzaram a fronteira espanhola, muitos deles nadando, outros a pé e sem a mínima resistência da polícia fronteiriça marroquina; 5.800 já foram devolvidos por meio do polêmico mecanismo das “devoluções imediatas” e, nesta semana, permaneciam retidas mais de duas mil pessoas e outras mil deambulavam pela pequena cidade autônoma de Ceuta, famintas, sedentas e com frio. As dramáticas imagens dos migrantes africanos que sonham com um futuro melhor na Europa deram a volta ao mundo. A fronteira já está controlada, tanto pelos efetivos enviados pelo exército e a Guarda Civil espanhola como pelas forças da ordem do Marrocos, que decidiram agir para impedir a chegada em massa de migrantes, diante da versão de uma suposta abertura sem limites da fronteira, assim como a ativação do férreo controle da pequena e conflitiva passagem fronteiriça. 

Em menos de 24 horas, mais de oito mil migrantes africanos cruzaram a fronteira espanhola, muitos deles nadando, outros a pé e sem a mínima resistência da polícia fronteiriça marroquina

Reprodução: Facebook
Adolescentes e crianças tentam entrar em Ceuta e são os mais atingidos pela crise migratória

Na praia do Tarajal, no ponto que divide a cidade de Ceuta do noroeste do Marrocos, os tanques e os soldados do exército espanhol continuam mobilizados, apoiados por lanchas da Guarda Civil para manter fechada completamente a passagem. 

Alijah, um adolescente marroquino de 17 anos, que até há quatro dias vivia em Tetuán — no noroeste do Marrocos — viajou a Ceuta com três amigos após escutar o rumor de que a fronteira estava aberta. 

O táxi – que lhes custou o equivalente a R$ 27 cada um – levou-os até a costa e, quando caiu a noite, decidiram seguir adiante e cruzar a nado a pequena faixa fronteiriça. 

Assim, pisaram terra espanhola e entraram na cidade autônoma, onde deambularam em busca de comida e bebida. Quando o esgotamento os obrigou a parar, dormiram em um parque até que a luz do dia os despertou e continuaram a procurar comida. 

Pensavam que estivessem diante do início de uma nova vida, ilusão que terminou horas depois, quando foram transferidos ao centro temporário de acolhida, onde serão custodiados pelo exército espanhol até serem repatriados. Eles, como outros tantos, decidiram voltar por vontade própria.  

Outros continuam empenhados em iniciar uma nova vida, longe da miséria e da pobreza de seus países e decidiram participar em um êxodo, no qual também havia muitas famílias, com crianças recém-nascidas. Vários bebês foram resgatados das ondas por agentes da Guarda Civil espanhola. 

Em meio do barulho e o som das sirenes e dos gritos de raiva, também se escutou o soluço desesperado de um homem de quase dois metros, muito magro, negro e com os braços largados como se estivesse languidescendo. Com a cabeça abaixada, tinha a boca seca e uma voluntário da Cruz Vermelha lhe deu de beber água em sua própria mão, lhe segurava a cabeça e o ajudava engolir. 

O migrante, após recuperar um pouco de vida depois do gole de água e os abraços de conforto, se pôs a chorar em seus braços. Agradecia com o olhar. Essa imagem foi captada por vários meios de comunicação e após ver sua própria imagem na cena, a voluntária explicou suas sensações: “Não creio em nenhum Deus, mas estou segura de que se vivesse as situações que têm vivido essas pessoas, eu o faria. Não sei como me sinto. Só sei que me cai a alma no chão”. 

O agente da Guarda Civil, Juan Francisco salvou um recém-nascido da violência do mar e explicou com palavras secas o momento: “pegamos o bebê. Estava gelado, frio, não gesticulava… Foi um momento muito traumático”.

Das cerca de oito mil pessoas que se calcula que cruzaram a fronteira nos últimos dias já foram devolvidos ao Marrocos 5.800, informou o governo espanhol, que reconheceu que as deportações foram feitas sob o método das “devoluções imediatas”, das que foram muito críticos no passado tanto o Partido Socialista Obrero Espanhol (PSOE) como Unidas Podemos (UP), que formam a coalizão do governo atual. 

É um método expedito: os migrantes são retidos em um centro de acolhida, incluso os menores de idade, sempre custodiados por membros do exército ou da Polícia Nacional e da Guarda Civil, e sem haver nenhum tipo de procedimento judicial ou administrativo, são devolvidos ao Marrocos pela minúscula porta fronteiriça que divide os dois países e que está em uma borda de uma vala eletrificada e com arames farpados. 

Também foram vistas cenas nas quais os militares espanhóis aceleravam o passo dos migrantes expulsos golpeando-os com seus cassetetes ou com gritos e muito barulho. 

Dos que permanecem, ainda não se esclareceu qual será seu futuro, sobretudo o dos menores de idade que estão sob custódia e, segundo a legislação espanhola e internacional, não podem ser repatriados sem uma série de garantias jurídicas e da proteção do Estado receptor. 

À crise humanitária provocada pelo êxodo soma-se o enfrentamento diplomático, no qual de maneira inusual interveio a União Europeia em respaldo ao Estado espanhol e criticando a “instrumentalização” da migração por parte do regime marroquino. 

Origem

Alguns analistas atribuem este novo movimento ao auxílio médico por parte do governo espanhol a um histórico líder da Frente Polisario, Brahim Gali, que após ficar doente de Covid-19 na Argélia foi transferido a um hospital de Logroño para ser atendido, em um ato diplomático conjunto entre a Argélia e Espanha e do qual não foi informado o governo do rei Mohamd VI, do Marrocos. 

O ministro de Estado de Direitos Humanos e Relações com o Parlamento marroquino, Mustafá Ramid, afirmou que “a Espanha sabia que o preço por subestimar o Marrocos é muito alto. A recepção por parte da Espanha do líder das milícias separatistas do Polisário, sob uma identidade falsa, sem levar em consideração as relações de boa vizinhança que requerem coordenação e consulta, ou pelo menos cuidando de informar o Marrocos, é um ato irresponsável e totalmente inaceitável”. 

Trata-se de primeira declaração das autoridades marroquinas que vinculam diretamente a acolhida a Gali com a crise migratória e que as autoridades espanholas têm negado de forma categórica nas últimas semanas. 

O presidente do governo espanhol, Pedro Sánchez, advertiu, diante do Congresso dos Deputados, que “a Espanha está sofrendo um desafio de um terceiro país, que é o Marrocos”. E seu governo não descartou a mediação do rei da Espanha, Felipe VI, com seu homólogo marroquino, Mohamed VI, os quais mantêm uma boa relação. 

A diplomacia espanhola aumentou a pressão reclamando à União Europeia que se envolva, ao que se seguiu a advertência do vice-presidente da Comissão Europeia, Margaritis Schinas: 

“A Europa não se deixará intimidar por ninguém no tema da migração. Ceuta é Europa, essa fronteira é uma fronteira europeia e o que está acontecendo ali não é um problema para Madri, é um problema para todos. Temos visto já, nos últimos meses, algumas tentativas de terceiros países de instrumentalizar a migração e isso não podemos permitir. Ninguém pode intimidar ou chantagear a União Europeia.” 

Mas na Espanha existem vozes críticas, inclusive da própria coalizão do governo. A UP reiterou seu apoio aberto à autodeterminação do povo saharauí e reiterou suas acusações ao Marrocos por chantagem. De Bruxelas, o ex-presidente da Catalunha, o nacionalista Charles Puigdemont, defendeu a africanidade de Ceuta e Melilla.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Armando G. Tejeda Mestre em Jornalismo pela Jornalismo na Universidade Autónoma de Madrid, foi colaborador do jornal El País, na seção Economia e Sociedade. Atualmente é correspondente do La Jornada na Espanha e membro do conselho editorial da revista Babab.

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