Esse papo precisa começar relembrando alguns pontos importantes. O primeiro e mais importante deles é que a maioria das mulheres no Brasil foi socializada a partir de pressupostos misóginos, ou seja, de inferiorização e menosprezo por tudo que diz respeito à mulher. Como consequência, nós, mulheres, somos acostumadas com uma lógica que nos coloca sempre em disputa e/ou comparação umas com as outras. Outro ponto importante é que é muito recente a presença de mulheres de forma expressiva em posições de referência, seja público ou privadamente. Ainda hoje sofremos com a baixa representatividade de gênero — e também no interior dessa representatividade, tendo em vista que há uma importante diversidade no espectro “feminino”, com mulheres cis, trans, heterossexuais, lésbicas, bissexuais, mães, não-mães, etc.
Isso tudo faz com que, por mais que reivindiquemos nossos lugares e direitos, mesmo com os diversos feminismos, mulherismos, entre outros processos de insurgência e luta de mulheres, ainda vivamos em um ambiente cuja configuração social e política reflete muito a misoginia e a subalternização de mulheres. Essas, que somos nós, foram historicamente relegadas ao ambiente familiar — espaço de trabalho não reconhecido e menosprezado, apesar da importância para sustentação da dinâmica socioeconômica capitalista.
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Essa (meio longa) introdução é fundamental para falarmos de Rosângela Lula da Silva, a Janja. Que coisa, não, menina? Ela é toda empoderada, toda cheia de si, toda articulada. Sem filhos, estudada, independente, bonitona, conservada… Toda interessada em moda, amiga de famosos, twitteira, toda cheia de expressões jovens. Que coisa, não? Parece que até vai desfilar no carnaval, depois de uma polêmica que rolou… Ela tá muito hypada, em voga!
Poderia listar mais coisas aqui, fofoquinhas básicas que estão rolando por aí. E se eu o fizesse chegaria certamente no comentário: “nossa, mas não é um pouco demais?”; ou “ai, ela gosta muito de aparecer”; ou, pior ainda, “nossa, mas na idade dela?”. Chegar a esses comentários é muito fácil. Fácil para mim, para você que me lê, para nossas amigas, irmãs, mães… É fácil, não apenas porque estamos acostumadas com esse tipo de comentário (que se não são sobre outras, são sobre nós mesmas), mas também porque fomos e somos forjadas por conceitos que se opõem fortemente ao protagonismo e autenticidade da mulher em qualquer circunstância. E esses conceitos estão profundamente enraizados em nós, mesmo que tentemos fugir deles.
Janja está se propondo a suplantar a ideia de “primeira-dama”, e sempre expressou isso abertamente. Prefere ser chamada de “esposa do presidente” até o dia que não seja mais necessário usar alcunha alguma. Isso já é grandioso num país onde muitos homens ainda enxergam as mulheres como “damas de companhia” reduzidas a papéis de ora cuidadoras silenciosas, ora enfeite de seus acompanhantes — seja marido, namorado, até parentes, como pai, tio e irmãos.
Reprodução – Twitter
Consciência de Janja é de uma importância enorme num país desigual como o Brasil
Janja nos instiga a ver essa figura, “esposa do presidente”, de uma outra forma, e assim nos desafia a reeducar o olhar. Repito, isso é grandioso demais. E alguém poderia dizer: “mas é demais, o envolvimento dela é sem precedentes!”, e poderíamos responder apenas “sim”. É isso mesmo. É novo, diferente, é da ordem “nunca antes na história do Brasil”, como o marido dela gosta de dizer. Isso é maravilhoso, porque o nosso país está mesmo precisando aprender coisas novas, mudar algumas ideias, vestir novas roupas. E nosso país somos nós, mulheres, e homens também.
Mas sabemos também que esse envolvimento de Janja não é tão sem precedentes assim. Há informações de que Ruth Cardoso era muito envolvida nas decisões políticas, só não se divulgava isso, além de não existir Twitter e Instagram na época dos mandatos de Fernando Henrique Cardoso. Marisa Letícia, falecida esposa de Lula, também tinha influências significativas nas decisões do marido, desde a época de sindicalista. Mas como Ruth, se reservava mais ao âmbito privado, como rezava a cartilha.
Janja está se propondo a mudar um pouco essa cartilha, ou talvez até abandonar a ideia de cartilha para mulheres e esposas. Ela tem noção de que é uma figura pública porque, embora não faça parte da chapa eleita, também está usufruindo de bens públicos, se beneficiando inclusive. E essa consciência de Janja é de uma importância enorme num país desigual como o Brasil, no qual o poder do Estado foi configurado por uma elite cujo objetivo era usurpar os bens públicos, coletivos.
Duas atuações de Janja se destacam e demonstram essa consciência de estar ocupando um lugar público, concreta e simbolicamente. A primeira foi a organização da posse, que contou com momentos inéditos e históricos — especialmente, a subida da rampa do Palácio do Planalto com representantes do povo brasileiro, e a entrega da faixa presidencial em seguida. Não à toa, muitas pessoas, como eu, se emocionaram profundamente: foi a primeira vez que o povo participou, de fato, da cerimônia de posse, com função ativa e simbólica. O artista Jorge Silveira reproduziu em ilustração o momento e incluiu a frase que resume o intenso simbolismo: “O Brasil toma posse de si mesmo”. E o papel de Janja foi fundamental na construção desse símbolo.
A outra atuação memorável e importantíssima de Janja foi a entrevista concedida à jornalista Natuza Nery, repórter e apresentadora da Globonews, na qual detalhou a situação degradada do Palácio da Alvorada, moradia oficial da presidência da república. O prédio, que é tombado como patrimônio histórico do país, foi entregue pelo ex-governo de Bolsonaro em uma situação deplorável diante da importância do edifício: infiltrações, móveis estragados, obras de arte danificadas e desaparecidas, entre outros absurdos. Tudo isso é de interesse público, e se não fosse Janja, não teríamos a dimensão do estrago do nosso patrimônio — o que provavelmente é um sintoma e/ou metáfora dos outros estragos causados por Bolsonaro e sua trupe também em outros patrimônios (físicos e simbólicos).
Claro, o papel de Janja nessas duas ocasiões não a isentam de cometer erros. Por se propor a ocupar um espaço de forma diferente, com certeza ela já errou e irá errar. Inclusive, um quase erro virou notícia: ela teria cogitado vetar jornalistas no coquetel da posse, mas percebeu antes de errar e mudou de ideia. Além disso, ela também carrega em si, na própria formação, assim como grande parte das brasileiras, assim como eu e você que lê, as estruturas patriarcais e misóginas. Mas, mesmo com erros, precisamos, sim, celebrar Janja e sua postura como esposa do presidente Lula, especialmente nesse momento histórico do Brasil e do mundo.
E então poderemos comentar: “Cê viu a Janja, menina? Que coisa, não? Ela é tudo que a gente precisava agora. Vamos aprender junto com ela!”. Obrigada, Janja.
Verônica Lima | Escrevivente, jornalista e pesquisadora nas áreas de comunicação, decolonialidade e cultura.
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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