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Quando no dia 16 de julho passado circulou no El País de Madrid uma entrevista ao diretor da Real Academia Espanhola, Dario Villanueva, este artigo já estava escrito por outros motivos: entre eles, a realidade cotidiana e o desgosto que por e-mail expressou ao autor uma leitora a respeito do comentário que apareceu em –La Jiribilla— que recordaremos mais adiante – em uma nota do próprio articulista publicada neste órgão.
A vida prima, e um fato resulta curioso: algumas pessoas que, em geral, talvez nem levem em consideração a mencionada Academia, a defendem com ardor quando se trata de acatar a regra que fixa o gênero masculino como neutro. Tal ardor parece crescer com ou contra a vontade crítica — seja pessoal ou de movimentos e governos progressistas — que ignora a norma mencionada e rechaça o que se pode esconder atrás dela.
Se sabe que no idioma influi a lei do menor esforço. É mais prático, e até se considera mais elegante – por exemplo – dizer “os trabalhadores” e “os cidadãos” que repetir uma e outra vez “as trabalhadoras e os trabalhadores, “os cidadãos e as cidadãs”. É desnecessário imaginar giros como “Pedro é espanhol e Eugenia é espanhola”, em vez de “Eugenia e Pedro são espanhóis”; menos ainda “os camarados e as camaradas” ou as “poetas e os poetos”, que, enquanto não se prove o contrário, são piadas de variada finalidade ou distam do sentido comum. Mas nada impede que se empreguem formas inclusivas e sintéticas do tipo de “a população trabalhadora” e “a cidadania”.
Não se deve “confundir a gramática com o machismo”
Que o gênero masculino tenha se imposto como neutro é coisa do patriarcado, que se beneficia com a equivalência do homem ao varão e ao ser humano em geral. A mulher foi considerada até nascida de uma costela de um homem, e em não poucos contextos — se não na teoria, na prática — escrava ou apêndice dele. De um grupo de mil mulheres e apenas um homem se fala no masculino, e seria até ofensivo fazê-lo no feminino. Para considerar apenas o espanhol, aponte-se que, salvo exceções, na formação desta língua desapareceu o gênero neutro latino, e o lugar dele foi ocupado pelo masculino junto com o seu próprio, antônimo de feminino.
A presença de mulheres entre aqueles que defendem, apaixonadamente, o predomínio do masculino, confirma que o pensamento dominante é assim porque também é assumido pelas vítimas da dominação, e a linguagem é o suporte material por excelência do pensamento. Contra aqueles que acreditaram que a Real Academia Espanhola não só desaprova o desacato — mostrado com giros como “os trabalhadores e as trabalhadoras” — da ocultação aplicada às mulheres, mas inclusive um ditame seu que havia posto fim a essa prática, o autor deste artigo publicou não faz muito tempo em Cubadebate o mais recente dos textos, não o único, em que tratou desse tema.
Não agiu por ignorância da norma aludida, mas sim para recordar que a Academia opina ou dita, e até repudia, e deve seguir contribuindo a cuidar a unidade do espanhol, sem desmedro de suas particularidades regionais; mas carece de poder para erradicar o que desaprova. O uso da língua é decidido por quem a cria, o povo, e a Academia nem sequer pôs fim ao rançoso Real que leva no seu nome.
Essa Academia, que não admitiu em seu claustro Gertrudis Gómez de Avellaneda e Emilia Pardo Bazán, embora depois tenha recebido outras mulheres — com isso, manifesta seu atual diretor na entrevista mencionada no início, “está tentando resolver um problema histórico” —, mereceu muitas retificações. Algumas foram aportadas por María Moliner em seu Dicionário de uso do espanhol — o preferido de Gabriel García Márquez, e não apenas dele, entre os léxicos deste idioma —, e está recordando-as em Havana a feliz apresentação, pela atriz e diretora Eva González, de El dicionário, obra de Manuel Calzada, espanhol como ela, e da própria Moliner.
Mas entre quem mais apaixonadamente impugnou o articulista houve mulheres, e uma julgou necessário estender-se sobre a norma que ele havia explicado em seus textos. Quando à editora que reproduziu o artigo no periódico cubano, que desde o título representa as mulheres, o autor lhe falou da desfavorável reação de algumas delas contra o texto, com seu costumeiro sorriso luminoso ela lhe respondeu: “Há muitas mulheres machistas”. Defesas à comentarista foram feitas de ângulos diversos, como — entre outros — o do encrespado intrigante que coleciona pseudônimos para posar de ultra esquerdista. Embora certamente se divirta em tudo o que ele supõe que lhe serve para atacar posições revolucionárias.
Pensar como prefira ou possa fazê-lo é um direito não apenas daqueles que assumem posições academistas, mas também daqueles que defendem outras tessituras. Mas se este articulista ignorasse a norma acadêmica comentada, teria pelo menos que sentir vergonha por não haver aprendido nem sequer o elementar daquilo que leu, nem daqueles que lhe ensinaram espanhol desde a escola primária.
Na universidade, sobre gramática e outras áreas linguísticas em particular desfrutou aulas de Francisco Alvero Francés, Otilia de la Cueva, Ofelia García Cortiñas, Max Figueroa Esteva. E algo deles aprendeu, pelo menos para não ultrajar o título de doutor em Ciências Filológicas e, sobretudo, para tratar de escrever com a correção com que tem a responsabilidade de fazê-lo. Mas não trata aqui de autodefender-se. Pelo contrário, quem queira impugnar suas posições ante determinada norma da Academia, dê por sentado que não é inocente nem deseja merecer a atenuante da ignorância, embora saiba muito mais acerca dela do que quisera conhecer.
Cada quem é livre de agir com respeito à Academia —e não apenas no que a ela concerne – segundo deseje, inclusive obedecê-la de joelhos. O articulista carrega conscientemente com seu modo de assumi-la. Respeita as contribuições dessa instituição ao cuidado da unidade do espanhol, e rechaça o arrastre Hispano cêntrico que a tem caracterizado até os nossos dias, por muito que tenha evoluído e muito terreno que tenham sabido ganhar aquelas que de modo natural se denominam Academias da Língua.
Estas últimas representam as pessoas que fora da Espanha falam espanhol, e hoje representam em torno de noventa por cento das que o flagraram no meio milênio determinante para que chegasse a ser o que é. Têm tanto direito a usá-lo como os povoadores da ex metrópole, onde nasceu a Academia que continua chamando-se Real, não por verdadeira – que também o são as outras – mas por sua linhagem monárquica.
Ter sensibilidade linguística é uma virtude, sobretudo se não se esgota em si mesma. Há outras expressões da sensibilidade humana que requerem, merecem e devem ter assegurado seu espaço, especialmente se concernem à dignidade. José Martí, a quem ninguém em seu perfeito juízo e no uso de honradez quererá negar-lhe – entre suas imensas e claríssimas luzes – o extraordinário domínio que teve do espanhol, recomendava não ficar na casca das palavras, mas sim chegar à sua medula.
Seria absurdo pôr em dúvida o seu conhecimento da norma que avaliza as prerrogativas do gênero masculino, mas não por gosto foi consciente da necessidade de, chegado o momento, provocar alguma ruptura na observância dessa regra. No início da nota introdutória onde plasmou os fins da Idade de Ouro, publicação com a qual propôs semear sabedoria e consciência, escreveu: “Para os meninos é este periódico, e para as meninas, é claro”. Sabia que se dirigia a um público no qual a porção feminina costumava ser ignorada.
Se a vontade justiceira se opõe, ainda mais que o formalismo, ao disse-que-disse linguístico, algo pode andar mal no pensamento, como ao repudiar cegamente os chamados de atenção sobre o excludente que pode ser algum desígnio da Academia. Em uma nota já aludida, o autor do presente artigo armou a atitude solidária do povo cubano ante a tragédia aérea do dia 18 de maio e houve quem se desentendeu do sensível assunto e, com o título “Problema de gênero”, enviou à revista, onde foi publicado, esse curto comentário: “Cubanos e cubanas, meninos e meninas. A Real Academia e As Academias, esclareceram o mau uso em torno a estas expressões. Obrigado”. Por respeito ao comentarista, o autor da nota não se permite corrigi-lo, mas algumas correções seriam básicas, máxima se intentamos defender a pureza linguística.
Quem optar por se submeter aos ditames da Real Academia Espanhola como se fossem ordens divinas, se privará de não poucos vocábulos, como lomerío, que ela ainda não recolheu em seu léxico, mas tão querida é, pelo menos para Cuba. Ou que espere sentado que reconheça outros, como daiquirí, que até pouco tempo suplantou por daiquiri, embora essa bebida deva sua origem e nome a um topônimo cubano, Daiquirí.
Em defesa da Academia é justo dizer que frequentemente é mais flexível que aqueles que lhe rendem culto de obediência. Cada certo tempo inclui em seu Dicionário vocábulos – ou variante deles, como ícone, não apenas icono – que antes desconhecia. Mas há quem aguarde que ela – outro exemplo – acolha prevenible, para deixar de acreditar não apenas que é desnecessário, mas que “não existe”, porque basta previsible, com o qual se ignoram conotações que diferenciam essas palavras. Não foi por gosto que a Academia fez com que ficassem mal com o anúncio de que prevenible estaria na seguinte edição de seu Dicionário. O assunto é simples: aquele vocábulo existe e existiria, mesmo que ela não o colocasse em seu registro nem lhe outorgasse o “documento de identidade”.
No que se refere a determinadas ocupações ou responsabilidades, assunto nada alheio à norma que está sendo discutida, com a crescente aparição de mulheres em profissões como a Medicina e diferentes Engenharias, e em funções como a presidência – até de países -, prosperam as formas femininas médica, engenheira e presidenta, embora não tenha faltado contra elas inércia e reações inclusive airadas. O uso é tão influente que a própria Academia pode até passar por alto dinâmicas próprias do idioma. Faz isso, digamos, ao aceitar como forma imperativa do verbo ir não só íos, mas também iros, porque embora a primeira seja a conjugação correspondente, canônica, inclusive pessoas cultas a recusam porque seguramente a sentem muito desvalida.
Nem de longe se tenta, nem há nestas linhas espaço para esboçar um inventário de mudanças que – nem sempre, talvez como para aplaudi-las – a Academia Espanhola aceita, e que podem leva-la inclusive a posições indecisas, em correspondência com o caráter mutante da língua. Mas ninguém deve ceder a instituição alguma o direito e a responsabilidade de pensar por si próprio, e menos ainda se estão em jogo relevantes assuntos de conteúdo. Quem conceder demasiado à Academia se arrisca a que ela troque de lugar a escada, ou a tire, e os deixe pendurados (ou penduradas) na brocha.
Quem sabe se não terão que se preparar para um dia admitir que o uso converteu em pessoal o verbo haver, como equivalente de existir. Haviam problemas e haverão regulações como para reclamar carta de cidadania no espanhol, embora nem o autor desse artigo goste desse uso. Mas, caso se queira cuidar zelosa e produtivamente da correção do idioma, por que não rechaçar também com paixão o mal emprego de humanitário como sinônimo de humano? Tal erro vem validar a dolosa qualificação de humanitárias dado pelo império – e pela OTAN, seu braço armado internacional – às suas ações genocidas. Quantas ações militares, intervenções, massacres, foram qualificadas de “humanitárias”, sobretudo desde fins do século XX para cá!
Entre a gramática e a vida, por importante que seja a primeira e ele a desfrute, o articulista prefere guiar-se pela segunda, embora deva apoiar alguma ruptura de sistema para pôr em claro ideias que o requeiram. Nisso opta por ser – submetido a julgamento – culpado, antes que desprevenido ou inocente. O confessa diante dos leitores, e diante das leitoras, porque, embora na entrevista citada o diretor da Academia diz que não se deve “confundir a gramática com o machismo”, o certo é que a primeira pode ser escrita com tintas patriarcais.
*Original de La Jiribilla, revista de cultura cubana, especial para Diálogos do Sul – Direitos reservados