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Equador: ‘morte cruzada’ é chance de sepultar modelo empresarial-neoliberal fixado em 2017

Sem encarar o poder oligárquico reconstruído desde 2017, não haverá mudanças
Juan Jose Paz
Prensa Latina
Quito

Tradução:

Uma vez iniciado o processo político, em 16 de maio, depois de meio dia, o presidente Guillermo Lasso foi à Assembleia Nacional. Na intervenção não só fez sua defesa, mas enfatizou a “estabilidade” do país, utilizando uma série de cifras e fatos isolados.

No entanto, às 7 da manhã do dia seguinte, por cadeia de rádio e tv, anunciou o decreto 741 que dissolvia a Assembleia, aplicando a “morte cruzada” e utilizando como causa a “grave crise política e comoção interna”.

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Em 18 de maio, entrevistado pela CNN, Lasso não só voltou sobre sua defesa, argumentando contra o “bloqueio” permanente da Assembleia, esclarecendo a “constitucionalidade” de sua decisão, e dando a conhecer que reuniu seus funcionários do Estado para dizer-lhes: “temos que fazer, em cinco ou seis meses, o que deveríamos fazer nos próximos dois anos”.

Mas, ainda assinalou: “a decisão de dissolver a Assembleia Nacional de acordo com o artigo 148 da Constituição, é precisamente para deter um plano onde primeiro vinham buscar-me, depois a Procuradoria, depois o Contralor, o Procurador e a demais instituições do Estado”.

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“Ao ter dissolvido a Assembleia Nacional, perdeu efetividade este macabro plano para tomar o controle das instituições do Estado, para produzir impunidade e viabilizar o retorno de um presidente (refere-se a Rafael Correa), que foi sentenciado por corrupção pela Corte Nacional de Justiça”. Em uma intervenção igualmente divulgada para o país, as Forças Armadas e a Polícia anunciaram apoiar a decisão de Lasso e sentenciaram que é “constitucional”.

Muito mais tarde a Corte Constitucional descartou qualquer demanda de inconstitucionalidade, com um argumento surpreendente: “não tem competência para pronunciar-se a respeito da verificação e motivação da causa da grave crise política e comoção interna invocada pelo presidente para dissolver a Assembleia Nacional com fundamento no artigo 148 da Constituição, e tampouco tem nenhuma outra autoridade judiciária no país”.

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E, como não podia faltar, também o embaixador estadunidense Michael J. Fitzpatrick disse que os Estados Unidos “respeitam os processos internos e constitucionais do Equador” e “continuarão trabalhando com o governo constitucional, a sociedade civil, o setor privado e o povo equatoriano”.

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Prensa Latina
A crise política que viveu o Equador só parece atual, mas se nos ativermos às palavras do presidente Lasso, vem de muito antes




A crua realidade e o panorama futuro

O quadro está completo. Pela primeira vez na história da democracia equatoriana, um presidente foi submetido a um processo político, interrompido pela “morte cruzada”. Um governo com desaprovação cidadã entre 80 e 90%, semelhante à da Assembleia Nacional, quis evitar a vergonha internacional da destituição por suposto peculato, ao mesmo tempo que se ampara na Constituição de 2008, a do “correísmo- chavismo”, como foi atacada pelas direitas políticas e “acadêmicas” (https://bit.ly/3Omz4ue).

O governo dos gerentes, dos “libertários” que sonhavam no paraíso neoliberal, daqueles que sabem fazer a riqueza, administrar o Estado como uma empresa, gerar trabalho e fazer bons negócios, fracassou em dois anos e termina social e politicamente derrotado. Como já ocorreu no passado com o governo do milionário León Febres Cordero (1984-1988), os empresários no poder outra vez demonstraram carecer da visão e dos conhecimentos capazes de dar solução às deterioradas condições de vida e de trabalho da população e de promover o desenvolvimento nacional com bem-estar.

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Acreditaram que a economia vai bem quando funciona exclusivamente em seu benefício. Só que desta vez soma-se a imparável delinquência e a insegurança, um fenômeno que começou a crescer durante o governo de Lenín Moreno (2017-2021), que reviveu o modelo empresarial-neoliberal, e que explodiu, de forma inédita na história republicana, durante o governo de Guillermo Lasso, de acordo com os múltiplos informes e estudos que existem sobre o tema.

Desde logo, só às mentes que apoiaram estas “mudanças de rumo” ocorre pensar que a inoperância, ocasionada com a “redução do Estado” por parte de dois governos das direitas econômicas e políticas que se sucederam desde 2017, são consequência das heranças do “correísmo”.


Os problemas não são de agora

A crise política que viveu o Equador só parece atual, mas se nos ativermos às palavras do presidente Lasso, vem de muito antes, pois “desde o início de minha gestão, em quatro ocasiões, um setor da política nacional tentou depor o governo democraticamente eleito”, isto é, desde junho de 2022, quando, segundo o mandatário, houve a manifestação dos “violentos” (o movimento indígena) unidos à Assembleia. Visto com a lente sócio-histórica, é o resultado do conflito e da polarização sociais que só aumentaram.

O governo endossa a cada um as responsabilidades: a Assembleia dissolvida; o PSC, antigo sócio político, questionado por sua “aliança” com o “correísmo” que o mesmo partido nega; o “correísmo” atacado por querer retornar ao Estado e, por certo, aceitando uma saída política que seu máximo líder reclamava há tempos (embora Correa qualifique a decisão de Lasso de “fraude democrática”); os movimentos sociais e particularmente os indígenas desqualificados, reprimidos e à beira de serem considerados “terroristas”.

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A discussão jurídica sobre o tema, que vem de todos os ângulos imagináveis, embora seja importante, corre o risco de tirar o foco do pano de fundo das realidades socioeconômicas do país.


Sem transformação radical não há mudanças

Falando com perspectiva histórica, o que ocorreu é uma solução política temporária, que fará com que as próximas eleições para o Executivo e o Legislativo dentro de alguns meses se transformem no espaço de disputa para a reconfiguração das forças sociais no controle do Estado. Mas o que está atrás de todo este drama é a condução econômica.

Se o Equador não encarar a definitiva sepultura do modelo empresarial-neoliberal e oligárquico reconstruído desde 2017, não haverá mudanças no rumo nacional e pior desenvolvimento com bem-estar humano e coletivo.

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E, pelo que declara o próprio mandatário em retirada (“A partir de hoje, sem bloqueios, o governo nacional expedirá uma série de decretos lei que cumprirão com o mandato soberanamente expresso por vocês…”), nos próximos meses, o bloco de poder das direitas econômicas e políticas buscará blindar, com um aparato legal ultraliberal, os interesses da poderosa e atrasada oligarquia equatoriana.

Foi memorável que, fazendo suas as famosas palavras do ex-presidente Jaime Roldós (1979-1981), chamado de “comunista” pelas elites do poder de sua época, o presidente Lasso repita: “Meu poder na constituição e meu coração no povo equatoriano”.

Juan José Paz e Miño CepedaPrensa Latina, especial para Diálogos do Sul – Direitos reservados.
Tradução: Ana Corbisier


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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