Esta semana, entre um choque e outro do noticiário das eleições, li um texto que me acordou para a hora da luta mais urgente. No livro “O reino perdido”, de Genolino Amado, li o trecho que copio:
“O mundo todo brigando, na maior briga do mundo, e a Escola em paz. Só de velhas pelejas e de velhos heróis é que eu falava nas lições às garotas do sobradinho. Quanto me senti inatual ! Professor de História defunta, num tempo em que a História vivia como jamais vivera até então, eu ensinava Leônidas e Temístocles, as Termópilas e Salamina…. na época de El-Alamein e Stalingrado. Os porta-aviões e os cruzadores em Guadalcanal, eu com as trirremes gregas. Ofensivas e contraofensivas motorizadas nas estepes russas, eu a pé com as legiões romanas. O pó dos séculos mortos cobria a sangueira do presente nas aulas às meninas”.
Então me veio a visão do abismo em que se encontra o Brasil. Estamos, os intelectuais, artistas e professores, fazendo de conta que a vida está normal, enquanto caminhamos para a mais absoluta exceção animal. Aquilo que Joseph Conrad gravou para sempre, “o horror! o horror!” no romance O Coração das Trevas, ganha a sua realidade no Brasil dos apoiadores do fascismo, de alto a baixo na sociedade, dos médicos mais brancos aos enfermeiros e serventes. É necessário e urgente que escritores, jornalistas, artistas de todo gênero, professores, músicos, realizem o que mais sabem fazer em todos os campos, sem quartel: nas salas de aula, nos palcos, no cinema, nos shows, até nas redações dos jornais e de toda sorte de mídia mostrando à população o que representa o abismo da eleição do fascista no Brasil. Falemos do abismo. Está em jogo não só a sorte de toda a gente, mas o nosso papel de tribunos, educadores públicos, artistas dignos do seu povo. Não adianta tirar férias na Europa, dar um refresco ao horror — não há lugar onde a morte do Brasil não nos alcance. O nosso lugar é aqui, já, agora.
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E foi a propósito, como se o tema destas linhas não me saísse do pensamento, que revi esta semana o Missisipi em Chamas. Cinema fundamental não só pela denúncia, mas pelo dom de acordar na gente o terror brasileiro. Quero dizer, tanto no filme de Alan Parker como aqui, desde as cenas com a Ku Klux Klan o anticomunismo está na ordem do dia, misturado ao racismo. Tão parecido com a campanha de Jair Bolsonaro, não? Num acaso mais que irônico, que me pareceu premonitório, na última imagem do filme aparece uma lápide coma inscrição: “1964, não esquecido”. O que só viemos a compreender depois: o verão sangrento do Mississipi foi em 1964, quase simultâneo ao verão sangrento do Brasil, mais sério e devastador, também em 1964. Ambos, na crueldade, inesquecíveis. No entanto para nós esse 64 não é passado. Hoje no Brasil, a luta ideológica foi posta na ordem do dia, bem nutrida por animais repletos de ignorância.
Hoje, voltamos a 1964 de outra maneira, quase como uma confirmação da frase de Karl Marx, “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Da primeira, bem sabemos do seu caráter de tragédia, com os assassinatos frios e execuções de prisioneiros desarmados, mas sempre “mortos em troca de tiros com a polícia”, como as notícias dos jornais sob censura repetiam. Mas mesmo nesse maldito tempo, lembro de alguns fatos quase cômicos. Durante a ditadura, eu vi na esquina do bairro de Água Fria um traficante e bandido gritar em sinal de protesto: “Eu sou ladrão. Não sou comunista não!”. E de fato ele se deu bem com tal diferença. Tempos depois, eu o revi como vendedor de carros na Rua do Imperador, no Recife. Na verdade, vivemos hoje neste período eleitoral um retorno aos dias da ditadura. Por exemplo, as soluções do mercado, pelo mercado, para o mercado, são daqueles tempos. Mas desta vez, como uma repetição piorada, igualmente fascista, porém mais primitiva. Quero dizer, de modo mais preciso o que vem a seguir.
O nível cultural do capitão candidato é semelhante ao de um recruta sem educação, confronto que faço para guardar o sabor da hierarquia. Sério. Esse candidato pensa como qualquer conservador que jamais cultivou o espírito — ora, o espírito, mas digo, ele é portador de ausência de luzes por leitura ou por convivência com pessoas de melhor educação política. Tome-se qualquer uma, qualquer uma das suas declarações à imprensa. Eu disse qualquer uma. Por exemplo, a sua afirmação ao Jornal Nacional um dia depois da votação do primeiro turno: “que a inocência da criança em sala de aula esteja acima de tudo”. O que isso quer dizer? Primeiro, que a criança é um ser idealizado, imune à experiência social de que todos somos feitos. Ora, e ora, o capitão é anterior aos estudos e contribuições de Sigmund Freud, que nos provou para sempre a existência do mundo do sexo desde a mais tenra infância. Se o capitão candidato nos ouvisse aqui, responderia irado: “Freud?! Quem é esse monstro? Se estiver vivo, eu prendo e mato o tarado. Se estiver morto, eu escarro no túmulo dele”. Em segundo lugar, ao mencionar a inocência em sala de aula, ele se refere à criança que não pode nem deve conhecer que no mundo existem famílias de pais separados, e, pior, não deve saber que nem existem homens e mulheres gays. O que é uma trágica piada, pois qualquer criança no Brasil hoje conhece mais que essa pedagogia do século dezenove. O que e isso? O candidato fascista é incapaz de assimilar a experiência real da própria família. Ou seja, a sua idealização da infância é uma criação miserável, primitiva, de um tempo em que se julgavam crianças como pessoas cujo cérebro era uma tábula rasa. Essa ideia seria deprimente ou uma farsa se não trouxesse as maiores ameaças ao ensino da civilização brasileira. É a Escola sem partido, é a caça ao pensamento do século 21. É, de novo, a Morte à Inteligência, que os franquistas berravam na guerra civil da Espanha.
Tome-se outra declaração, qualquer outra, em relação à mulher. Teremos de escolher desde a “fraquejada” em uma palestra em que ele cometeu: “Eu tenho cinco filhos. Foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher”; a “chocadeira”, com que ele uma vez se referiu à própria mãe: “Minha mãe, basicamente, era aquela chocadeira: um filho atrás do outro”; ou a mulher que é digna de estupro, se for bonita: “A deputada não merece ser estuprada porque ela é muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero. Jamais a estupraria. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque ela não merece”.
Até a direita francesa rejeita o fascismo desse candidato, porque o julga, com razão, cheio de ideais tão atrasadas que nem a França fascista poderia aceitar. Perguntada sobre as declarações do primitivo quando fala que preferia ver seus filhos mortos em vez de homossexuais e que mulheres grávidas são um fardo para empresas, a líder da extrema direita francesa Marine Le Pen afirmou: “Ele diz coisas extremamente desagradáveis que são intransponíveis para a França”
O capitão candidato é um primitivo anterior ao Homem de Neandertal, que mais avançado possuía até qualidades intelectuais e estéticas. Neste capitão, que conseguiu não ser expulso do Exército, sobrevivem o puro instinto de caça às diferenças que ele não entende, como as mulheres, homossexuais e comunistas, nem sempre nessa ordem, a depender do seu oportunismo. Depois de entrevistá-lo para o documentário Out There, o jornalista Stephen Fry ficou espantado:
“Esse deve ter sido um dos mais estranhos e sinistros encontros dos quais eu já tive a experiência. Esse deputado é o típico homofóbico que encontrei pelo mundo todo, com seu mantra de que os gays querem dominar a sociedade, recrutar crianças ou abusar delas. Mesmo num país progressista como o Brasil, suas mentiras criam histeria entre os ignorantes, dos quais a violência pode surgir e acabar em ataques brutais como o que matou Alexandre Ivo”.
Isso foi em 2013. O anúncio daqueles tempos agora virou epidemia. A direita está se sentindo incentivada, pela pregação de violência e armas do candidato, a espancar e matar a todos que se ponham no caminho do fascista. Executar um homem e mulher livres deixou de ser crime para os apoiadores do capitão. Passaram a exercitar a morte. Dai que retornamos o apelo: é necessário e urgente que escritores, jornalistas, artistas de todo gênero, professores, músicos, realizem o que mais sabem fazer em todos os campos, sem quartel: nas salas de aula, nos palcos, no cinema, nos shows, até mesmo nas redações dos jornais e de toda sorte de mídia mostrando à população o que representa o abismo da eleição do fascista no Brasil.
Cada intelectual, todo artista, todos os mestres são chamados a cumprir o seu oficio. Esclareçam, escrevam, falem, ensinem, cantem, componham, desenhem e pintem com o vigor do saber feito de experiência e pensamento livre. Enquanto é tempo, ou seja, agora. “Metida tenho a mão na consciência, e não falo senão verdades puras que me ensinou a viva experiência”, nos legou Camões. Falou para todos, hoje.
Veja e ouça o não poema de Arnaldo Antunes: