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Espíritos fortes e libertos foram os que obrigaram a natureza humana aos maiores progressos

A natureza de todos os “homens de bem” é vulgar, pois nunca perde de vista o seu benefício próprio, que na velha sociedade capitalista chama-se lucro
Carlos Russo Jr
Espaço Literário Marcel Proust
São Paulo (SP)

Tradução:

Aquela geração de homens, que passou para a história como a Geração 68, demarcou uma das vezes em que os espíritos livres surgiram em grandes grupos na face da Terra. E entender-nos significa, em simultâneo, compreender os enigmas do presente!

Por um homem que já ultrapassou a marca dos setenta, pertenço à era do pós-guerra do século vinte, uma daquelas que nos tempos modernos mais intensamente estimulou experiências radicais, que formatou pessoas que ousavam mudar o mundo, onde se quebraram tabus como nunca antes na história, quando se sofreu e praticou violências, quando a vivência do humanismo abarcou suas mais diferentes fontes, que, enfim, para o bem ou para o mal, foi o tempo da existência da geração incubadora do mundo em que se vive hoje. 

Porque, se é verdade que a dinâmica humana engendra a formação de espíritos livres, também é verdade que eles se tornam realmente libertos apenas em determinados momentos históricos; estes momentos são tão tumultuosos que toda a natureza se agita, a terra põe-se a tremer sofrendo de convulsões que abalam até sua ígnea matéria; os mares se elevam sob os influxos lunares; os céus são cortados por raios e estrondos, como se as portas de comunicação que unem nosso mundo com o celestial e o subterrâneo, de repente se abrissem de para em par. 

E estas aberturas propiciam a coexistência do divino e maravilhoso, com o pérfido e o demoníaco, do criativo com o conservador, do revolucionário com a reação às previsíveis mudanças. 
Então, o solo social sob o qual sempre o homem pisou de modo tão seguro, agora se afigura incerto, gretas e chamas dele se erguem e tudo prenuncia o surgimento do novo.

Tempo de surgimentos dos Espíritos Livres. 

É quando os grilhões que acorrentavam, aparentemente, para sempre os espíritos uns aos outros, à rotina sempre vivida, aos preconceitos, às infindáveis culpas e ao pecado, rompem-se com estrondo e os espíritos tornando-se livres das amarras começam aqui e ali a surgirem, a contaminarem outros acorrentados, a incentivarem o rompimento de outras amarras. 

E a Gaia Terra, que estremece, sabe que jamais voltará a ser a mesma, após estes sublimes momentos históricos de arrebatamento, de ruptura, de coragem, de dor e de criação inauditos.

São momentos históricos como os de 1968 que tornam a presença do homem sobre a terra justificável, que empurram o niilismo para trás da cortina da vida, que transformam um mundo sem sentido em um universo em si e para si. 

Pois somente os espíritos que ousaram em determinados momentos se libertarem é que assumiram a responsabilidade de mudar o mundo. 

Sob sua ação nada mais permaneceu como era antes. 

Nem mesmo importa que muito dos sentidos destas mudanças hajam se perdido ou desvirtuado, que os ideais revolucionários tenham sido substituídos pelo bem-estar pessoal ou pelo espírito dos burocratas: O mais importante, o que definitivamente conta é que os espíritos livres fizeram a História da Humanidade e nela escreveram as linhas mais belas, mais Humanas, seguramente demasiadamente Humanas.
Porque quando a jovem alma se liberta ela rasga o véu nauseante da rotina, arrebata e é ao mesmo tempo arrebatada e, talvez seja por isso que ela mesma não compreenda muito bem toda a extensão do que se passa. 

Um impulso num ímpeto se torna senhor de sua ação, despertando um desejo de ir avante, seja para onde for a qualquer preço; uma jamais suspeitada, mas impetuosa e perigosa curiosidade, uma busca por um mundo inexplorado se inflama e crepita em todos os sentidos.

“Antes a morte que a vida mesquinha de antes”- assim soa a voz imperiosa da sedução a negar tudo o que se havia amado até então! 
Entroniza-se nos espíritos, um súbito pavor e premonição contra o que antes era o antigo e como num relampejar surge o desprezo por tudo aquilo que os espíritos ainda agrilhoados consideravam “ser” e “dever”.

O espírito liberto sorve, então, da fonte preciosa de uma nova criatividade antes insuspeitada; sente nas entranhas um desejo tumultuoso, arbitrário mesmo, vulcânico de andança e de negação de tudo que não acompanhe a sua própria sua mutação.

Seu ódio a tudo o que represente o antigo transforma-o em um iconoclasta e ele caminha destruindo até mesmo os seus próprios mitos e imagens.
Neste momento, então, aqueles que ousaram e tiveram a ventura de serem penetrados pela liberdade do espírito, puderam sentir um regozijo, um arrepio de bêbado apaixonado pelo perigo. E do perigo retirou o orgasmo que lhe deu toda uma nova vida e o prenúncio de vitória sobre uma sociedade esclerosada e dormente com seus ópios e opróbios!

Então, o espírito livre sorri, mas este sorriso não tem nada de angelical, pois ao libertar-se, o halo de inocência caíra no pó de um tempo que já era passado. O sorriso do espírito livre tem um misto de maldade e malícia, e será a sorrir que ele irá revirar tudo o que estava encoberto e, desnudando-se, principia o grande ensaio de entender como seriam todos os conceitos da vida virados ao avesso.

Os espíritos fortes e libertos foram os que obrigaram a natureza humana aos maiores progressos, reascenderam paixões adormecidas- aquelas mesmas que as sociedades policialescas as fazem esquecer.

Despertaram as contradições, o gosto pelo risco, pelo inusitado. 

Para muitos, criaram o mal, mas de qualquer forma, o novo é sempre visto como o mal, pois é o que quer conquistar, o que quer destruir antigas crenças. Para espíritos agrilhoados só o antigo, o velho, o conhecido é o bem.

Já os “homens de bem” de todos os tempos nada criaram, apenas aprofundam velhas ideias. A natureza de todos os “homens de bem” é vulgar, pois nunca perde de vista o seu benefício próprio, que na velha sociedade capitalista chama-se lucro.

Mas os espíritos libertos instituem seu próprio e único árbitro – não mais aceitam nenhum valor, nenhuma moral que lhes seja imposta- e sua curiosidade esgueira-se para tudo o que sempre fora um dogma, para tudo o que antes lhe era proibido.

Mas no fundo de sua agitação, o espírito livre é um errante, um ser intranquilo e por ser indomável, não segue um rumo pré-determinado. A história, ele a quer toda reescrever a seu modo.
Mas depois de libertar-se de suas amarras, surge um momento crucial: é quando o espírito se pergunta se, no fundo, todos os valores da sociedade em que vive não seriam todos falsos. Agora, não lhe basta mais questionar os valores da antiga sociedade, ele vai além e coloca em cheque até mesmo os novos valores adquiridos. E isto ele o faz dialogicamente, numa sequência de negar, negar a negativa, buscar uma síntese que, por sua vez, também será questionada.
E neste eterno questionar, os espíritos se perguntam: se todos temos sido sempre enganados, por que um dia não nos tornaremos também enganadores de outros espíritos que desejarão se libertarem? 

Os espíritos, por serem livres, conseguem intuir até mesmo sua própria esclerose e morte futura, pois sabem que, ao seu tempo, ela ocorrerá para a grande maioria daqueles que se rebelaram.

Até mesmo, naquele momento, este conceito sacrifical de seu próprio eu não lhe parece impossível e se ele se questiona é tão somente porque ainda possui o bálsamo da virtude daqueles que se banharam nas águas da liberdade. 

Ainda hoje, passados mais de cinquenta anos, quando fecho os olhos vejo aqueles espíritos livres surgirem nos momentos de explosão da rua Maria Antônia, pressinto-os ao meu lado, como se das batalhas de rua dos Champs Eliseé eles ressurgissem; reconheço-os nos Panteras Negras americanos, farejo-os na resistência à Guerra do Vietnã, nos movimentos hippies, nas inúmeras reuniões no CRUSP, na marcha dos 100 mil da Cinelândia, nas dezenas de organizações de contestação social- armadas ou não- que surgiram nos anos1960, frutos dos mais saborosos e fecundos atuarem dos espíritos que se tornaram livres! 

Eu também os encontro em todos os porões da Ditadura Militar pelos quais perambulei em tão maravilhosa companhia, por tantos anos. 
Aqueles que nos insurgimos, que buscávamos destruir os grilhões que ontem e sempre aprisionam os espíritos, nós fomos, é verdade, esmagados pela reação. 
Formou-se uma geração de perseguidos, torturados, aprisionados, os melhores dentre nós assassinados. Foi quando os esbirros dos porões da ditadura entoaram seus gritos de vitória. Mas enganaram-se a cada alma nobre que julgavam assassinar, porque, nós, os espíritos livres de toda uma época, não fomos derrotados. 

Nós existimos, pautamos parcela da história da humanidade, deixamos nosso exemplo de rebeldia, sacudimos os preconceitos, descortinamos os caminhos para o retorno à democracia, denunciamos e continuaremos a denunciar como crime aqueles que usurpam o poder que só pertence ao povo.

Acontece que a cada o surgimento dos espíritos livres, jamais o mundo permanece o mesmo; e a história, que não se duvide, num futuro, que também ninguém sabe quando se dará, voltará a engravidar-se de novos e pungentes espíritos, daqueles que farão novamente a alma humana pulsar pela liberdade e rasgar as túnicas prostituídas de um passado medíocre, corrupto e corruptor.

E assim segue a história da humanidade, pontilhada de espíritos que fazem com que o mundo e a vida, que de outra forma nada mais seria que uma eterna luta animalesca pela exclusiva sobrevivência, ganhe sentido, torne-se, enfim, humana.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Carlos Russo Jr Carlos Russo Jr., coordenador e editor do Espaço Literário Marcel Proust, é ensaísta e escritor. Pertence à geração de 1968, quando cursou pela primeira vez a Universidade de São Paulo. Mestre em Humanidades, com Monografia sobre “Helenismo e Religiosidade Grega”, foi discípulo de Jean-Pierre Vernant.

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