A espiritualidade que nos congrega pode ser linda. O seu uso militar, político e comercial é uma desgraça
“The human race is always all ears for a fairy tale” [A humanidade sempre tem ouvidos abertos para um conto de fadas] (Lucretius, De rerum natura)
“Fins moralistas justificam meios violentos” (Jonathan Haidt)
“Insistence on a rooted notion regardless of contrary evidence is the source of the self-deception that characterizes folly” [Insistir numa noção enraizada, qualquer que seja a prova em contrário, é a fonte de auto-engano que caracteriza a insensatez] (Barbara Tuchman).
A racionalidade ocupa sem dúvida um espaço importante no que temos chamado de homo sapiens, mas temos dado insuficiente peso às nossas dimensões irracionais, ao que podemos chamar simplesmente de crenças. Como bem explicita Jonathan Haidt, gostamos de vestir as nossas crenças do manto da racionalidade, e, portanto, de legitimidade. Mas não custa darmos um passo atrás, e pensar racionalmente nas nossas dimensões irracionais.
A quantidade de crenças no mundo é impressionante. Temos centenas de religiões, de mundos sobrenaturais, semeadas de imagens surrealistas, mas cada comunidade de crentes afirma com convicção de que as suas crenças são baseadas na realidade. Como conseguimos inventar tantas histórias, e nelas acreditar, ainda que sejam absurdas? Há lendas, naturalmente, e delas gostamos, como a dos Cavaleiros da Távola Redonda, e fantasias assumidas como tais nos contos, por exemplo, de Chapeuzinho Vermelho. Gostamos de contos de fada, mas sabemos que são contos de fada.
Mas em outro nível, no universo da espiritualidade, os contos de fada se tornam não só crenças assumidas, racionalmente assimiladas e confirmadas, inclusive com tantos que morreram ou estão dispostas a morrer por elas. Criou-se inclusive um conceito poderoso, a fé, como ponte entre a fantasia, a racionalidade, e o nosso mundo emocional. A fé realmente move montanhas, mas por definição, a fé é baseada em acreditar sem provas, senão seria conhecimento, e não precisaria de ato da fé. Os que acreditam que o mundo foi criado há pouco mais de cinco mil anos, justamente ‘acreditam’, e os que sabem que existe há bilhões de anos simplesmente sabem, não precisam acreditar.
A fé, por definição, dispensa provas. E nesta medida, permite que as pessoas se convençam, e até busquem defender racionalmente, as fantasias mais absurdas, de que o sol é um deus, de que houve serpentes que falam, de que há figuras humanas com asas e que voam, de que os pecados se lavam no sangue fazendo sacrifícios de animais, ou até de humanos, de que más safras são culpas de bruxas que é preciso queimar – não à toa eram mulheres – ou ainda mais comodamente, de que matar pode ser legítimo, uma ordem de Deus, porque estaríamos matando infiéis. A fé não tem limites, dispensa racionalidade.
É impressionante que nesta nossa era científica o irracional ainda tenha tanto peso. Lembremos que nos anos 1500 um Copérnico havia adiado por décadas a publicação do que ele sabia ser a realidade – que o mundo não gira em torno da terra – por medo das perseguições religiosas. Nos anos 1600 Galileo tinhas de sussurrar eppur si muove¸ com medo da morte. Em pleno século 21 grande parte dos americanos prefere acreditar do que saber, e batalham para que nas escolas a teoria da evolução seja ensinada ao lado do bereshit, da visão da criação do mundo que encontramos na Bíblia, com maçã, serpente e arcanjo, como teorias legítimas.
Não estamos aqui denunciando a irracionalidade, faz parte de nós como seres humanos, mas buscando de onde vem tanta força nesse estranho mundo irracional da espiritualidade. Não se trata de exercício apenas teórico, tem grande importância, considerando como religiões podem utilizar o irracional como justificativa de interesses muito reais. A peça de teatro de José Saramago, In Nomine Dei, baseada nas guerras de religião, com massacres e tudo, ajuda a entender como o absurdo pode ser transformado em interesses organizados e racionalmente defendidos, com ‘argumentos’. A peça é baseada nos anos 1500, mas hoje vemos na televisão inúmeros programas que justificam qualquer coisa, porque na Bíblia podemos encontrar frases que justifiquem praticamente tudo – e o seu contrário. O raciocínio mágico se generaliza.
O sentimento de espiritualidade é respeitável, e o encontramos em tantas épocas e civilizações. O seu uso, que levou e leva a tanta barbárie, violência, oportunismo político, ganhos financeiros, o é muito menos. Em 2022 Edir Macedo e família ostentam uma fortuna de 1,34 bilhão, falar em nome Deus pode ser muito lucrativo (Forbes, 2022, fortuna 230). Nos Estados Unidos as fortunas com essa origem são muito mais amplas.
Mark Twain ironiza sobre a sociedade “que tem guerras o tempo todo, levanta exércitos, constrói armadas e luta pela aprovação de Deus por qualquer meio disponível. E em qualquer lugar onde houvesse um país selvagem que precisasse ser civilizado, iam lá e o tomavam, e o dividiam entre vários monarcas esclarecidos, e o civilizavam – cada monarca a seu jeito, mas geralmente com Bíblias e Balas e Impostos. E o jeito que enalteciam a Moralidade, o Patriotismo, a Religião e a Irmandade dos humanos era nobre de ser visto” ( p. 182).
Neste sentido, é essencial separar o sentimento religioso, a espiritualidade, que encontramos em tantas civilizações, do seu uso político no quadro de diferentes estruturas organizadas de poder, que se apropriam de alguma forma do papel de representantes de divindades para justificar tudo e qualquer coisa. Os governos atuais de Israel navegam confortavelmente nas raízes emocionais poderosas que representa a convicção de serem o “povo eleito”, portanto com direito a exercer a justiça divina em cima de outros povos. Os nazistas levavam na sua bandeira o Gott mitt uns, Deus está conosco. O Taliban pode se permitir tudo em nome da fé, e o apelo a “Deus, Pátria, Família” é encontrado nas bocas de todos os pequenos candidatos a ditadores do planeta, Trump, Erdogan, Orban, Duda, Meloni, Bolsonaro, Kristersson, Duterte, Netanyahu e tantos mais na fila de espera, navegando na ingenuidade e frustração das populações.
A mensagem implícita é de que quem quer respirar livremente, com mais democracia e igualdade, é contra os ideais sagrados, e, portanto, não uma pessoa tolerante e de cabeça mais aberta, mas um inimigo. A compreensão de que a espiritualidade faz parte de um conjunto de aspirações, que queremos aqui elencar, e que podem ser compreendidas e legitimadas, mas que o seu uso na indústria da comunicação, da política e inclusive da exploração comercial consiste em abuso da intimidade das pessoas, em atos de violência sem legitimidade, me parece essencial. A apropriação de símbolos poderosos, como Deus, Pátria e Família, permite justificar qualquer coisa, gera um empréstimo de respeitabilidade.
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Não há como não lembrar da fala do bispo sul-africano Desmond Tutu: “Quando os missionários chegaram à África, eles tinham a Bíblia e nós tínhamos a terra. Disseram “Rezemos”. Nós fechamos os olhos. Quando os abrimos, nós tínhamos a Bíblia e eles tinham a terra”. O conceito de hipocrisia encontra aqui a sua representação mais perfeita.
Nas nossas emoções e no nosso imaginário cabem universos de criatividade espiritual, que vão desde à reencarnação até o Olimpo ou o purgatório, e a história das crenças religiosas mostra uma riqueza espantosa. Da beleza da Cosmogonia de Hesíodo, às cosmogonias do Egito, de Pan Ku na China, de Olorum africano, do Bereshit bíblico e tantos outros, não há como não ver a busca de preencher o inexplicável, ou inexplicado, com mitos. É legítimo? Sem dúvida, pois preencher o vazio explicativo com um mito gera mais sentimento de segurança do que um buraco negro desconhecido. E se nos pomos de acordo com a comunidade em torno de nós, e aceitamos o mesmo mito, o nosso vazio mental entra em sentido de repouso. Na falta de ciência, temos crença. E se os vizinhos também acreditam, temos uma visão de mundo. Mas a facilidade com a qual tantas pessoas se deixam levar, balançam a cabeça, obedecem, fazem um Pix de contribuição para as corporações religiosas, nos alerta para as nossas fragilidades emocionais e mentais, que merecem ser respeitadas e não abusadas.
Já as codificações éticas colocam dilemas muito mais amplos, pois permitem justificar comportamentos com empréstimos à legitimidade sobrenatural, na falta de legitimidade terrena de não fazer o mal. O fato de encontrarmos na Bíblia o comando divino “não deixarás que as bruxas vivam” permitiu massacres, e multiplicaram-se as festas de ver pessoas queimadas vivas, com a profunda satisfação das populações, que se sentiam vingadas das suas frustrações.
A Bíblia, neste sentido, é fértil, e Mark Twain resume em um parágrafo: “No Antigo Testamento os Seus atos expõem constantemente a sua natureza vindicativa, injusta, impiedosa e vingativa. Está sempre punindo – punindo delitos insignificantes com severidade milhares de vezes maior; punindo crianças inocentes pelos malfeitos dos seus pais; punindo populações pelos malfeitos dos seus governantes; até descendo ao ponto de exercer vinganças sangrentas em cima de bezerros e cordeiros e carneiros e bois inofensivos, como punição por transgressões cometidas por seus proprietários. É talvez a biografia mais condenatória que existe impressa em qualquer lugar” (p. 319).
A verdade é que encontramos em escrituras passagens para justificar tudo e seu contrário. E não faltam pregadores com uma massa de citações decoradas. Como escreve Haidt, “O raciocínio pode levá-lo para qualquer lugar onde você queira ir” (p. 122). Haidt usa os conceitos de “pensamento confirmativo” (confirmatory thinking), “raciocínio motivado” (motivated reasoning), ou “cérebro partidário” (partisan brain): “Como ratos que não conseguem parar de apertar um botão, partidários (partisans) podem ser simplesmente incapazes de parar de acreditar em coisas aberrantes. O cérebro partidário foi reforçado tantas vezes para realizar contorções mentais que o liberem de crenças indesejáveis. O partidarismo extremo pode ser literalmente viciante” (p. 88).
Estamos aqui na fronteira mental, onde a força da crença – do que se quer acreditar – se sobrepõe ao racional, e dele se empodera para reforçar a própria crença. No limite, explicar que a terra é redonda e tem 4,5 bilhões de anos torna-se inviável. Na cabeça da pessoa, em certas áreas de raciocínio, foi instalado como se fosse um filtro – em inglês prefiro usar o conceito de frame – que simplesmente não deixa passar nada que não corresponda ao formato predeterminado. O brainwashing (lavagem cerebral) é muito mais generalizado no nosso cotidiano do que gostaríamos de admitir. Barbara Tuchman usa os conceitos de self-hypnosis (p. 269) e de self-righteousness (p. 271), buscando caracterizar o congelamento de visões que se vestem de racionalidade, mas são impermeáveis a argumentos: “Os psicólogos chamam o processo de exclusão de informação discordante de ‘dissonância cognitiva’, um disfarce acadêmico para ‘Não me confunda com fatos’” (p. 322).
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Não há como deixar de ver que a crença, neste sentido, gera uma área de conforto: não preciso mais pensar no assunto, está resolvido pela simples rejeição mental de qualquer argumento que venha a incomodar o cérebro. Pá de cal, assunto resolvido. No limite, conforme a crença adotada, temos o raciocínio simplório que leva facilmente ao fanatismo, particularmente se é confirmado com uma comunidade de crentes. Desde Constantino no ano 325 da nossa era, os políticos entenderam a força do empréstimo de autoridade divina para os embates humanos. Uma coisa é o conhecimento racional, baseado na ciência; outra é a crença, baseada na fé, no que se quer acreditar; e outra ainda a ética, os valores emprestados para justificar o que fazemos, área na qual borrar as fronteiras entre ciência e crença tornou-se generalizado. Adotamos as crenças necessárias para justificar o que supomos saber.
Estamos aqui muito além das igrejas, com a centralidade do processo na política, nos interesses comerciais, gerando o controle da atenção bem descrito por Tim Wu no The Attention Merchants, e denunciado por Noam Chomsky no documentário Chomsky & Cia. Hoje, com a conectividade global, a atenção humana presa em telinhas várias horas por dia, desde a infância mais tenra, e em particular a indústria que colhe informações privadas sobre cada um de nós, nas mais diversas dimensões, criam-se novas arquiteturas mentais, ou nova mobília na nossa cabeça. Os mercadores da atenção chamam de ‘bolhas’, com ‘internautas’ que só encontram confirmações do que acreditam.
Conhecimento racional, crenças e convicções morais se confundem no novo universo planetário que Shoshana Zuboff chamou de The Age of Surveillance Society: “Um texto eletrônico inteiramente renovado agora se estende muito além dos limites da fábrica ou do escritório. Graças aos nossos computadores, cartões de crédito, e telefones, e as câmeras e sensores que proliferam em espaços públicos e privados, quase tudo o que hoje fazemos é mediado por computadores que registram e codificam cada detalhe das nossas vidas cotidianas numa escala que teria sido inimaginável apenas alguns anos atrás” (p. 182).
A ideia do Jesus Christ Super-Star deixa de ser uma ideia. A igreja eletrônica veio para ficar. O Bispo Edir Macedo é dono da TV Record, e navega em citações de textos de dois mil anos atrás. Aqui se mistura ciência, crença e ética. Recomendaram votar em Bolsonaro, em nome de Jesus. Com a mudança dos ventos políticos, recomenda apoiar Lula.
Mas é interessante a que ponto nesta era de avanços científicos e de compreensão dos mistérios da vida, a espiritualidade aliada ao pertencimento a organizações religiosas continua poderosa no mundo. Entendemos que o trovão não ocorre porque Zeus está irritado, e que, portanto, teríamos de ver quem o irritou: olhamos as previsões de tempo no celular. Mas esse imenso mundo das divindades permanece forte no cotidiano de três quartos da população mundial, e a consulta a “textos” de tantos séculos atrás serve de misteriosa justificativa para os nossos absurdos da era dos algoritmos. Podemos elencar alguns mecanismos, se é que podemos chamá-los assim, que presidem a esta persistência, ou até renovação. E têm raízes profundas.
O medo da morte sem dúvida joga um papel importante. Nas mais variadas mitologias, imaginamos que a morte é apenas uma passagem para outra vida, seja na reencarnação, ou na subida da alma aos céus – sempre é para cima, como se o céu fosse um lugar – nas diversas modalidades do Éden. Conseguimos assim escapar do óbvio: somos um mamífero que passa pela vida em ritmo relativamente lento, mas inevitável, e depois não se ouvirá mais dele. O ressuscitar é um sonho, mas o fim é o fim, e apesar de Lázaro, e a agitação no palco da vida. Não há como não lembrar do realismo de Shakespeare, sobre esse ser humano, “a poor player, that struts and frets his hour’ upon the stage, and then is heard no more.”[i] É uma motivação poderosa, não à toa muitos se ‘convertem’ na hora extrema.
Igualmente poderoso é o sentimento de vazio que nos dá quando pensamos que estas poucas décadas que temos para aparecer no mundo terminam, depois de tantas brigas e turbulências, e afinal é só isso. “Ma é questo la vita?”, pensa o mortal, chegando à morte. Ou seja, além do medo da morte, e do vazio que segue, temos que enfrentar o próprio sentido do que fazemos. Wim Wenders resumiu o sentimento de forma simples: “Humanity is craving for meaning”, a humanidade anseia por sentido. Pertencer a um desenho maior, ter um Deus que nos observa e julga – como se não tivesse outra coisa para fazer –, precisarmos nos submeter a regras ditadas por um ser superior, ser filho de Deus enfim, é poderoso.
Meu pai, que era muito católico, se indignava de que as pessoas “preferiam descender de primatas do que serem criaturas de Deus”, como se saber ou crer fosse uma opção. Era engenheiro, com muita leitura, inclusive de filosofia, mas aqui não se trata de racionalidade, e sim do imenso vazio que nos invade quando pensamos que somos uma criatura frágil, briguenta e passageira, perdida num planeta perdido no universo. Na mesma linha, Lee Kuan Yew menciona que “há uma busca para algumas explanações mais elevadas quanto aos propósitos do homem, quanto a porque estamos aqui. Isso é associado com períodos de grande estresse” (In: Huntington, p. 97).
A liberdade pode ser muito angustiante. Ter regras na vida, nesta turbulenta confusão de valores, pode ajudar muito. Não à toa demos tanto peso aos Dez Mandamentos, proibições e obrigações, pontos de referência que nos permitem guiar os nossos comportamentos. São diversos segundo as religiões, no hinduísmo encontramos a proibição de matar animais e outras formas de vida. O cristianismo nunca impediu os cristãos de matar, mas sempre “em guerra justa”, e contra pagãos, ou bárbaros, ou seja, gente que precisamente não seguia as nossas regras, não eram “nós”.
Só o fato de precisamos justificar, explicar porque violamos os mandamentos, mostra a importância não só da ética, mas de um conjunto de códigos aceitos por determinado segmento da sociedade. As religiões desempenham um papel importante na tranquilidade pessoal. Estou seguindo as regras. Dante traz com força a angústia de não saber o caminho: “mi ritrovai per uma selva oscura, che la diritta via era smarrita”, caminhos retos perdidos, é precisamente a entrada do Inferno. A religião ajuda “nas necessidades psicológicas, emocionais e sociais de pessoas presas nos traumas da modernização” (Huntington, p. 99). Quem não se sente perdido no caos planetário que vivemos?
Mas no limite, ter regras também pode ser opressivo. Numa sociedade religiosa, o ódio e a violência contra as pessoas que não se submetem às mesmas regras levaram, nas mais variadas sociedades, a comportamentos de uma violência impressionante. É que o sentimento de conhecer “o bem”, a certeza do caminho reto, parece justificar a perseguição dos todos os desvios. Quem não leu o Malleus Maleficarum, O Martelo das Feiticeiras, dos inquisidores Heinrich Kramer e Jacob Spenger, está perdendo uma visão de como as regras, apropriadas pelos “justos”, podem levar a violências pavorosas. Isso data de há poucos séculos na Europa, e o livro, em nome de Deus, ensina como torturar mulheres, de preferência nuas, bem como a importância de quem interroga não lhes ver o rosto, pois o sofrimento nele expresso poderia comovê-los, e tirá-los da sua severa retidão.
Os massacres na Índia, no conflito entre hinduísmo e islamismo são de ontem, e perduram os ódios. A morte de uma jovem no Irã, porque não cobria a cabeça e o rosto de maneira adequada aos mandamentos religiosos leva hoje a um levante, mas o essencial aqui é que enquanto uma sociedade se apropriar de regras ajuda na coesão social, a sua rigidez se torna ao mesmo tempo opressiva. Entre o conforto de regras superiores e a barbárie, a fronteira é pequena. E não precisamos necessariamente de divindades para termos regras do jogo, comportamento moral, referências.
Buddha era um pensador, Siddhartha Gautama no seu nome completo, fundador do budismo. Confúcio, Kong Fuzi, da mesma época, cinco séculos antes de Cristo, também era um filósofo, hoje uma poderosa referência para as regras da vida na Ásia. Precisamos de guias, não necessariamente divinos. E cada vez mais se coloca o dilema das pessoas não físicas, mas jurídicas, que se consideram absolvidas de qualquer dimensão ética, bastando a legalidade. Greed is Good, ou The business of business is business, clamam as corporações, e geram desastres, mas como ficam as pessoas que nelas trabalham? Estão apenas seguindo instruções?
A noção de culpa, e de culpabilidade, desempenha um papel essencial no sentimento religioso, e em particular no poder das hierarquias religiosas. No cristianismo e no judaísmo, somos todos culpados pelo pecado original, como se Adão ter comido a maçã tivesse qualquer importância no meu cotidiano em 2022. Cristo veio nos redimir deste pecado, que como em tantas crenças, tem de ser lavado no sangue, no sofrimento. Os crucifixos, instrumento de tortura, continuam a nos ameaçar.
Temos todos os universos do submundo do inferno – sempre em baixo, por misteriosa razão, mas a palavra em latim significa precisamente “em baixo” – o lugar onde os malvados serão punidos, sofrerão até o infinito fim dos tempos. O imaginário sobre os tipos de tortura, que vemos em tantas representações artísticas, mas também na Epopeia de Gilgamesh, no shoel judaico, ou no reino de Hades na mitologia grega. Aliás, chamamos de mitologia as versões anteriores das crenças atuais.
Associada à culpa, como força poderosa de controle social, em particular da mulher, está a sexualidade. Associar a atração sexual a algo sujo, “libidinoso”, quando se trata da fonte maior da nossa pouca felicidade, na riqueza das suas manifestações, continua a ser o combustível para ódios e perseguições. O que faria Freud sem essa repressão sexual permanente, a sua associação ao pecado, às proibições bíblicas? Controlar a sexualidade da mulher, nos seus mínimos detalhes, por parte de doutores da lei divina, é objetivo que encontramos em tantos textos religiosos.
A excisão (corte dos lábios da vagina feminina) ainda é praticada hoje em meninas, em nome de obediência às regras, e aos mandamentos religiosos, para que a futura mulher não tenha o vergonhoso prazer sexual. Todo o conceito da “Imaculada Conceição” está ligado ao sentimento (mais do que pensamento) de que o ato sexual seria uma “mácula”.
Marie-France Baslez, que pesquisa a origem do cristianismo, no seu estudo Comment notre monde est devenu chrétien, apresenta o detalhe dos debates, desde o século II da nossa era, sobre a virgindade de Maria. Mas o essencial para nós, é a ideia de pecado, de culpa ligada à sexualidade, e que permitiu, durante séculos e até hoje, que se proíba uma mulher de entrar na igreja com braços descobertos, para falar de um detalhe que parece inocente, mas que em outras culturas resulta na burka.
A questão do direito às decisões sobre o seu próprio corpo, por parte da mulher, continua tão presente como em outros séculos. Ser controlador da sexualidade dos outros é uma ferramenta de poder que hoje vemos manipulada nas igrejas eletrônicas, e cujo conteúdo mudou pouco. Basta ver os debates da Corte Suprema nos EUA, a luta pelo direito ao aborto, ao direito da eutanásia, dispor da própria vida. Apoiada no controle da sexualidade, a religiosidade prospera. “Pode beijar a noiva”, ouve o casal, que hoje provavelmente não esperou a autorização.
Outro eixo poderoso que nos leva para as religiões é a busca de pertencimento, sentimento essencial da nossa vida social. A própria palavra “religião” nos traz na sua origem a ideia de se religar aos outros, de pertencer, religio em latim. A volta à religião, mais do que ao território, pode ser importante nessa fase de êxodo rural e de busca de identidade: “As pessoas mudam do campo para a cidade, ficam separadas das suas raízes, com novos empregos ou desemprego. Interagem com um grande número de pessoas estranhas, e são expostas a novos padrões de relacionamento. Precisam de fontes de identidade, de novas formas de comunidade estável, e de novos conjuntos de preceitos morais para assegurar-lhes um sentimento de sentido e de propósito… Para pessoas que enfrentam a necessidade de determinar quem sou eu? a que eu pertenço? a religião providencia respostas atraentes, e grupos religiosos providenciam pequenas comunidades religiosas que permitam substituir aquelas que perderam com a urbanização” (Huntington, p. 97).
Aqui também os lados negativos abundam: “Qualquer que sejam os objetivos universalistas que tenham, as religiões dão às pessoas uma identidade ao fixar uma distinção básica entre crentes (believers) e não crentes (nonbelievers), entre um grupo ‘interno’ superior e diferente e uma grupo ‘externo’ inferior ” (p. 97). Nada como um inimigo externo para reforçar os laços internos, e as religiões organizadas utilizaram essa necessidade de pertencimento de forma generalizada. Os que estão fora do grupo são pagãos, seguidores de “seitas”, “ateus” e tantos outros qualificativos que permitem o sentimento confortável de estar numa comunidade, de estar “juntos”, de ter um inimigo comum.
O uso político é igualmente generalizado, e à medida que o embate se agrava, a crença migra para o fanatismo fundamentalista, que hoje podemos observar em várias culturas políticas e religiosas. A política migra da racionalidade para as emoções, do cérebro para o fígado. “Amai-vos uns aos outros” serve de justificativa para o ódio e a violência. Não são israelenses que estão matando palestinos, é “a ira de Deus que se abate sobre eles”. Com reciprocidades, naturalmente. Deus pode ser uma gazua política. Baslez usa o conceito de “identificação coletiva”, ao comentar a excitação popular nos jogos de circo romanos, quando os “outros” eram cristãos (p. 150). Homo sapiens?
Outra motivação que nos leva para o sobrenatural, é que, na hora do desespero, precisamos apelar para alguém. Os valentes guerreiros de todas as “civilizações” partiam para a guerra pedindo a proteção de deuses, e muitos animais foram destripados para que se lesse nas vísceras o que se podia ler sobre o destino das batalhas. Deus me ajudou diz qualquer jovem depois de marcar um gol, e o mesmo dirá o goleiro ao impedi-lo. Eu diria que o comando de não invocar o nome do Senhor em vão poderia ser aplicado.
Mas o essencial, é que nessa nossa vida insegura, nos agarramos a qualquer esperança. Minha mãe, polonesa, era como se deve: católica apostólica romana. Mas quando eu estava preso no Brasil, e ameaçado de morte, ela na Polônia rezou por mim na igreja, e por via das dúvidas foi procurar também os ritos pagãos que ainda sobrevivem da antiga Polônia pré-cristã. No desespero, todos os santos ajudam. O fato é que sobrevivi. Graças a Deus, sem dúvida, mas também graças a Dom Paulo Evaristo Arns, que conseguiu divulgar a minha prisão, até então clandestina.
E não há como não ver o imenso potencial civilizatório que as religiões podem desempenhar, ao promover a solidariedade humana, organizar comunidades, restaurar a sociabilidade tão necessária e tão diluída nos universos urbanos. Acompanhei muito os aportes da Pastoral da Criança, que não só obteve imensos sucessos em termos das suas políticas sociais, como gerou um impacto organizacional de solidariedade que envolveu centenas de milhares de mulheres. A visão do Papa Francisco, de uma outra economia, permite o reencontro entre os interesses econômicos, os objetivos sociais, a proteção ambiental e o respeito humano. Trata-se aqui, claramente, de uma outra economia, mas que envolve uma outra cultura, no sentido mais amplo.
A expansão do Islã tampouco pode ser simplificada. De um lado, enquanto as elites adotavam uma vida luxuosa com a venda de petróleo, as redes islâmicas de solidariedade asseguravam serviços de saúde, de educação, de um conjunto de atividades básicas que o Estado não providencia, bem como densas organizações comunitárias. E em termos de imensas regiões colonizadas e humilhadas, no Oriente Médio e no norte da África, mas sobretudo na Ásia, “a reafirmação do Islã, qualquer que seja a sua forma sectária específica, implica no repúdio da influência política e moral européia ou americana sobre a sociedade local” (William McNeill, in: Huntington, p. 101). Estamos falando de 1,6 bilhão de pessoas, de dezenas de países. Uma vez mais, cruzam-se as necessidades da população em adotar referências religiosas, de defender a sua identidade, enquanto o seu uso político gera barbárie, inclusive por parte dos que as combatem.
Neste sobrevôo das motivações religiosas, por parte de um não-especialista no tema, mas sensível à imensa hipocrisia com que que os discursos religiosos invadem inclusive a economia, não podia deixar de trazer o imenso aporte cultural e artístico, que nos legou a Santa Sofia em Istanbul, a Catedral de Paris, maravilhas artísticas na Ásia, as miniaturas da Pérsia, os monumentos da américa pré-colombiana, tantas sinfonias, cantos, cerimônias religiosas complexas, da missa cristã aos ritos africanos, uma teatralidade e musicalidade que nos encantam e sem dúvida atraem. Neste grande e frequentemente duro teatro da vida, a religião está muito presente, precisamente no sentido artístico e teatral. Benvindas as artes, mas não justifiquem a barbárie, e não usem o nome do Senhor em vão.
É interessante pensar que os aborígenes australianos tinham Uluru, a rocha sagrada; os celtas tinham Belenus, um deus solar; o Popol Vuh conta a mitologia dos maias, os astecas olhavam para o céu, Tlalocan; na mitologia chinesa, Pan Ku separou a terra do céu; na mitologia japonesa, Izanagi criou os deuses Amaterasu e Susanoo, respectivamente o Sol e as Tempestades; o Livro dos Mortos nos ensina sobre Atum e Rá e os mitos egípcios; a mitologia greco-romana nos legou as belíssimas histórias de Zeus-Júpiter, Afrodite-Vênus e tantos outros; a mitologia hindu nos legou Brama (o criador), Vishnu (o mantenedor) e Shiva (o destruidor); a mitologia judaico-cristã nos legou Adão e Eva, Jesus e Maria, e combatentes de monstros como São Jorge; a mitologia mesopotâmica nos legou o deus Apsu (água doce) e a deusa Tiamat (água salgada) que criaram o resto, e como tantos deuses, brigaram à vontade; na mitologia nativo-americana, em que nos faltam textos escritos, temos em todo caso um Pai Celeste e uma Mãe Terra, além de deuses malandros como o Corvo e o Coiote; na mitologia nórdica, temos Odin que vivia em Valhala, e também um juízo final, Ragnarok.
A Mitologia, de Christopher Dell, de onde extraio essa pequena lista, é um documento de extrema riqueza, que ao apresentar as várias formas como civilizações diferentes e em diversas épocas criaram explicações para o inexplicável, afirmando com determinação e frequentemente muita violência a sua realidade, nos chama para um pouco de bom senso e tolerância. Somos o que somos, e é o mundo que temos. Os cristãos rezam ajoelhados, os islâmicos de cócoras, os judeus se balançam de pé, os hindus de pernas cruzadas, os africanos dançam.
Convenhamos, há espaço para todos. A questão não está nas crenças, mas no seu uso político e comercial que hoje predomina. Apropriar-se da intimidade das pessoas, e inclusive se possível do seu imaginário, transformou-se numa indústria. No centro dessa indústria, cada vez mais, estão os gigantes corporativos. Os governos acompanham, discutem o óbvio em Davos, e se submetem.
Haverá sem dúvida outros universos motivacionais, nesta difícil separação do que é ciência e razão, do que é crença e emoção, do que é julgamento e ética. A atitude interessante me parece ser o exercício de dar um passo para trás, e olhar com tolerância e compreensão para a tão difícil busca de caminhos do pobre ser humano, suficientemente dotado de inteligência para compreender os limites da razão. E também tão impotente frente a tantas manifestações da bestialidade coletiva da humanidade. Neste momento em que escrevo, cerca de 180 milhões de crianças estão passando fome no mundo, enquanto produzimos alimento suficiente para alimentar 12 bilhões de pessoas. São crianças, mas os “mercados” são mais sagrados. Não olhem para cima.
Traçar essas notas, por parte de um economista como eu, pode parecer estranho. Mas é que os desafios da própria economia não cabem mais na estreiteza dos conceitos que a delimitaram. Conceitos como o de cultura, de civilização, de solidariedade humana, emergem por toda parte, e nos obrigam a ampliar a visão. Congratular-se com um PIB que aumenta ao destruir a natureza e ao gerar injustiças e sofrimentos gritantes é simplesmente grotesco. Que me seja permitido trazer à tona o óbvio econômico: o mundo de 2022 alcançou o equivalente a 100 trilhões de dólares de bens e serviços produzidos no ano. Isso, dividido por 8 bilhões de habitantes, representa o equivalente a 4,2 mil dólares por mês por família de quatro pessoas. Dá para viver? O mundo de hoje não é pobre, é mal administrado.
O Brasil produz, só de grãos, 3,7 quilos por pessoa por dia, e temos milhões passando fome. Os gigantes corporativos murmuram ESG, cosmética que se refere à sua preocupação com o ambiental, o social e a governança, mas é com o biquinho dos lábios. Os políticos apontam para o céu quando os nossos problemas estão aqui em baixo. Usam-se as crenças para justificar o injustificável. O Quo Vadis? da humanidade hoje tornou-se um dilema universal. Não se trata mais de uma luta econômica, trata-se de uma luta pelo resgate do bom senso e da dignidade humana.
*Ladislau Dowbor é professor titular de economia da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de A era do capital improdutivo (Autonomia Literária).
Referências
Barbara Tuchman – The March of Folly: from Troy to Vietnam – Random House, New
York, 2014. Cf; https://dowbor.org/2018/10/barbara-w-tuchman-the-march-of-folly-from-troy-to-vietna m-random-house-new-york-2014-a-marcha-da-insensatez-470-p.html
Christopher Dell – Mitologia: um guia dos mundos imaginários – Sesc, São Paulo, 2014.
Daniel Mermet, Olivier Azam – Chomsky & Cias. – Documentário, 60 min., 2008. Cf. https://dowbor.org/2022/04/resgatar-a-funcao-social-da-economia-uma-questao-de-dignidade-humana.html
Emmanuel Saez and Gabriel Zucman – The Triumph of Injustice – Norton, 2019. Ver também https://equitablegrowth.org/economic-growth-in-the-united-states-a-tale-of-two-countries/
Forbes – 290 bilionários brasileiros – 2022
Gilles Kepel – La revanche de Dieu: chrétiens, juifs et musulmans à la reconquête du monde – Seuil, Paris, 1991
Jonathan Haidt – The Righteous Mind: why good people are divided by politics and religion. Pantheon Books, New York, 2012. Cf. https://dowbor.org/2013/06/jonathan-haidt-the-righteous-mind-why-good-people-are-di vided-by-politics-and-religion-a-mente-moralista-por-que-boas-pessoas-sao-divididas-p ela-politica-e-pela-religiao.html
José Saramago – In Nomine Dei – Companhia das Letras, 1996.
Ladislau Dowbor – A economia desgovernada – Scholas Ocurrentes, 2019 – https://dowbor.org/2019/10/ladislau-dowbor-a-economia-desgovernada-novos-paradigm as-14-de-outubro-de-2019.html
Ladislau Dowbor – Resgatar a função social da economia: uma questão de dignidade humana. Ed. Elefante, 2022. https://dowbor.org/2022/04/resgatar-a-funcao-social-da-economia-uma-questao-de-digni dade-humana.html
Lucretius – The Nature of Things – tradução de A.E. Stallings – Penguin Classics, 2007.
Marie-France Baslez – Comment notre monde est devenu chrétien – CLD Editions, 2008.
Mário Theodoro – A sociedade desigual: racismo e branquitude na formação do Brasil. Zahar, 2022. Cf. https://dowbor.org/2022/05/a-sociedade-desigual-racismo-e-branquitude-na-formacao-d o-brasil.html
Mark Twain – The bible According to Mark Twain – Touchstone, 1995.
Michel Onfray – Décadence: vie et mort du judéo-christianisme – Flammarion, 2017. Richard Dawkins – The God Delusion – Houghton Mifflin Company, New York, 2006. Cf. https://dowbor.org/2008/01/deus-um-delirio-the-god-delusion-2.html
Samuel P. Huntington – The Clash of Civilizations – Simon&Schuster, 1996.
Shoshana Zuboff – The Age of Surveillance Society – Public Affairs, 2019.
Tereza Campello e Ana Paula Bortoletto – Da fome à fome: diálogos com Josué de Castro. Ed. Elefante, 2022. https://dowbor.org/2022/08/da-fome-a-fome-dialogos-com-josue-de-castro.html
Tim Wu – The attention merchants: the epic scramble to get inside our heads – Knopf, New York, 2016.
Nota
[i] Um pobre ator que freme e treme o seu papel no palco, e logo sai de cena. (Traduzir Shakespeare é uma aventura, deixei o original acima).
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