Quando na semana passada Cesar Hildebrandt escreveu uma extensa página referida à esquerda, supus que se tratasse de um fato fortuito. Pensei que alguma coisa lhe havia afetado o fígado e que, e como resultado do mal-estar, o lido jornalista havia incubado uma explosão. O fato de que em sua mais recente edição volte ao tema, com a mesma mensagem vitriólica que conhecemos, já é preocupante. Não tanto por seu destino pessoal – que finalmente dependerá de sua própria maneira de encarar as coisas – mas sobretudo por sua mensagem, que diz representar uma vontade que sistematicamente desmente: a indispensável identificação com a causa dos povos.
Na verdade, da plateia os expoentes da classe dominante devem tê-lo aplaudido de pé, saudando suas imprecações contra o socialismo e seus expoentes. Vale a pena, então, refletir em torno delas como uma maneira de responder à vertigem de palavras que nos apresenta o jornalista.
Alai.net
Contrariamente ao que ele sustenta, a esquerda pensa, se não pensasse, se guiaria seguramente por Hildebrandt e estaria maldizendo a todos.
Contrariamente ao que ele sustenta, a esquerda pensa, se não pensasse, se guiaria seguramente por Hildebrandt e estaria maldizendo a todos. Falando mal de uns e outros, denunciando os que cantam e os que dançam. Os que leem e os que escrevem; os que riem e os que choram. E responderia apenas aos seus reflexos hepáticos, maldizendo intermitentemente seus juízes. Mas assim não cresceria, como soube crescer (a esquerda) em determinadas etapas de sua história.
É verdade que em sua honrosa história, a esquerda cometeu erros. Teve etapas solventes, como quando encabeçou a luta dos trabalhadores mineiros do centro do Peru, nos anos trinta do século passado; ou quando levantou as bandeiras da restauração democrática respaldando Bustamante e Rivero, em 45; ou quando soube ver no horizonte o início de um processo transformador com Velasco Alvarado nos anos setenta, e se somou em seu apoio sem pedir nada em troca; ou quando se converteu em uma alternativa de governo e de poder, com as bandeiras da Esquerda Unida em fins do século passado.
Nestas etapas, houveram jornalistas – e outros – que se acercaram a nós, que colaboraram com nossas publicações e que nos convidaram a conversar com eles em tribunas públicas. Eram outros tempos, sem dúvida, e alguns do que assim agiram, pensaram que à sombra de nossas lutas poderiam alcançar algo, pelo menos em laudatórios reconhecimentos formais. Os revezes do socialismo finalmente os desalentaram e optaram por acreditar apenas na estéril virtude da negação e do protesto.
E também é certo que cometemos erros sobretudo nas últimas décadas, quando algumas cúpulas de partido se deixaram ganhar pelos anzóis lançados em seu entorno. Ali apareceram posições eleitoreiras e oportunistas, que muitos denunciamos e esperamos corrigir com o tempo, Mas esses lastros não pesam tanto em nossa consciência como para que caiamos no desespero ou no abandono.
Sabemos do peso da classe dominante e somos conscientes que ela é capaz de infiltrar, desorganizar e mesmo desorientar nossas fileiras.
Recordamos, é claro, a esse argentino bom, Aníbal Ponce. Ele nos dizia com soltura: “alentando em uns a vaidade sempre desperta, aumentando nos outros a cobiça nunca afogada, a burguesia retém ainda entre suas mãos alguns dos meandros da alma proletária”. Nos falava assim de uma consciência de classe que se adquire na luta, e que se perde quando ela cessa, e quando se impõem as teses de “concertação” e do “diálogo”, em vez da ação independente e de classe..
Por aí assomam nossos desafios e retardos, que procuramos encarar com paciência de perseverança, conscientes de que vivemos ainda em etapas prévias a uma convulsão social que aparece inexorável.
Sabemos que na medida que amadureçam as coisas e que se eleve, como corresponde, a experiência das massas, elas saberão construir a ferramenta que ainda não conseguimos forjar. E nisso também somos leais a Lenin: “cada país deve parir seu movimento”.
Objetivamente, ainda não alcançamos o alumbramento indispensável, e os nove meses de uma gravidez rotineira parecem ser no caso do nosso movimento um período muito mais longo que o previsto. Talvez esse seja tão extenso que muitos de nós não alcancemos a ser atores desse desenlace; mas ele acontecerá, apesar dos turvos presságios dos pessimistas de sempre.
Nós – é bom que saibam – não desanimamos pelas derrotas nem arriamos bandeiras pelos contrastes. Nascemos e crescemos ao calor das expectativas de nosso povo. E por isso, apesar dos revezes, incubamos com orgulho a esperança viva.
Nos alenta o exemplo de grandes homens e mulheres que souberam de dignidade e de justiça, de valores e de lealdades, e que nunca se inclinaram, a não ser para render homenagem às causas mais justas da humanidade inteira. Vallejo, Neruda, Nazim Hikmet integram a mochila ideológica que contém também os ensinamentos de Marx, Lenin, Mariátegui. Com essas referências, não temos nada de que arrepender-nos e nada do que renegar.
César se proclama inimigo de tudo: da esquerda peruana, de seus líderes e representantes, de seus partidos e movimentos, de sua obra intelectual e política, de suas expressões e esforços. Tudo isso é compreensível, e poderia ser entendido como a atitude de um ácrata honesto, incorruptível e enérgico, que brande sua espada contra aqueles que se equivocaram com boa- ou má – intenção. Mas não é assim, Arremete com a mesma ira contra o que existiu e ainda existe no mundo. Contra a Revolução Russa, contra a União Soviética; contra a China e contra Cuba; contra o processo emancipador bolivariano, contra a Venezuela de hoje e a Nicarágua. E, é claro, contra cada uma das pessoas que representam esses movimentos, Não se salva ninguém. Todos, sem exceção, claudicaram, capitularam, ou desonraram sua mensagem, traíndo seus povos, e se tornaram merecedores dos qualificativos mais baixos. Sua ruindade não teve limites.
Com essa atitude, se esquece do conselho do Amauta: “elevar-se por encima de sentimentos e interesses negativos, destruidores, niilistas” ; se afasta do mais elementar espírito revolucionário, ou seja, do espírito construtivo; Talvez dele se poderia dizer: “O proletariado, da mesma forma que a burguesia, tem seus elementos dissolventes, corrosivos, que inconscientemente trabalham pela dissolução de sua própria classe”.
Certos jornalistas – os que cultivaram seus espíritos e escrevem belamente – podem ser considerados verdadeiros escritores e até poetas. Marx entendia que a eles “havia que deixá-los marchar livremente pela vida”; que não se podia medi-los com o critério dos outros homens. “Não havia mais remédio que mimá-los um pouco se queríamos que cantassem; com eles, não valiam as críticas severas”.
Se tomasse em conta a vontade de luta dos revolucionários, a consequência daqueles que deram suas vidas combatendo por uma mesma causa, a firmeza espiritual e moral daqueles que não se dobram hoje porque caíram algumas de suas fortalezas, César poderia ser mais objetivo e mais justo, mais legítimo e até mais criador. Em suma, poderia crescer (politicamente, claro) e servir melhor à causa de seu povo.
*Colaborador de Diálogos do Sul de Lima, Peru.
Tradução: Beatriz Cannabrava
As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul
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