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Estados devem garantir que empresas não usem mão de obra escrava, diz especialista

Terminar com as formas contemporâneas de escravidão é parte de uma luta mais ampla contra a pobreza, contra o subdesenvolvimento e a desigualdade
Thalif Deen
IPS
Nova York

Tradução:

“As formas tradicionais de escravidão foram penalizadas e abolidas na maioria dos países, mas prevalecem as formas contemporâneas de escravidão em todas as regiões do mundo”, precisou a sul-africana Urmila Bhoola, relatora especial da ONU sobre formas contemporâneas de escravidão.

Os Estados membros sob suspeita de violações de direitos humanos se negam a permitir que especialistas internacionais, os chamados relatores especiais, investiguem as acusações, ou inclusive que os visitem formalmente. 

Até agora, Bhoola, nomeada em 2014, visitou Níger, Bélgica, Nigéria, El Salvador, Mauritânia, Paraguai e, por último, a Itália, em outubro de 2018.

Seu mandato inclui a implementação do artigo 4 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz: “Ninguém será submetido à escravidão nem à servidão; a escravidão e o tráfico de escravos estão proibidos em todas as suas formas”.

Bhoola precisou que só realiza visitas aos países cujos governos a convidam. “Tenho enviado solicitações a muitos países, mas por causa do mandato e sua especificidade, os Estados membros costumam ser relutantes”, explicou em entrevista a IPS.

Terminar com as formas contemporâneas de escravidão é parte de uma luta mais ampla contra a pobreza, contra o subdesenvolvimento e a desigualdade

IPS
Para erradicar a escravidão de forma efetiva em escala nacional, os Estados também devem investir em desenvolvimento sustentável

As conclusões tiradas após a visita a cada país podem ser encontradas em relatórios públicos. 

IPS: A Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostra que 40 milhões de pessoas, 71 por cento das quais são mulheres e meninas, sofrem várias formas de escravidão moderna, como o tráfico de pessoas, recrutamento forçado de menores para a guerra, matrimônio precoce, servidão doméstica e trabalho forçado. Estas práticas podem ser penalizadas mediantes leis nacionais ou tratados internacionais? 

Urmila Boola: Vários tratados internacionais proíbem a escravidão e as práticas similares, como o Convênio sobre Escravidão, de 1926, e o protocolo que o modifica; a Convenção suplementar sobre a abolição da escravidão, de 1956; o Convênio sobre Trabalho Forçado (nº 29), de 1930; o Convênio sobre a Abolição do Trabalho Forçado (nº 105), de 1957; o Convênio sobre a proteção do salário, de 1949 (n 95); o Convênio sobre Trabalhadores Domésticos, de 2011; o Convênio sobre a idade mínima, de 1973 (nº 138); o Convênio sobre as piores formas de trabalho infantil, de 1999; o Convênio para a repressão ao tráfico de pessoas e à exploração da prostituição alheia, de 1949, e outros. 

Os tratados internacionais podem fazer uma grande diferença em um país, pois os Estados necessitam informar de forma periódica sobre os avanços na implementação de suas disposições uma vez que o tenham ratificado. Se um Estado não tem os meios para cumprir com suas obrigações de forma efetiva no marco de um tratado ou convenção, deve buscar assistência internacional 

Mas a escravidão é considerada uma norma consuetudinária do direito internacional que requer eliminação por parte dos Estados, independentemente de que tenham ratificado as convenções contra a Escravidão, de 1926, ou a suplementar, de 1965. Todos os Estados devem proibir, em suas próprias leis, a escravidão em suas diferentes formas, as práticas equivalentes ou a servidão. 

Para erradicar a escravidão de forma efetiva em escala nacional, os Estados também devem investir em desenvolvimento sustentável e na proteção e promoção dos direitos humanos. 

Muitos Estados se comprometeram a alcançar a meta 8.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) porque terminar com a escravidão e criar trabalho decente para todos requer um enfoque multifacetado. 

Isso requer que desenvolvam respostas nacionais e integrais para as formas contemporâneas de escravidão, que devem combinar o direito, os marcos institucionais e políticos sólidos, pôr fim à discriminação e à desigualdades, inclusive a desigualdade de gênero, a proteção dos direitos trabalhistas e supervisionar o setor privado, assim como garantir que o acesso à justiça seja total e igualitário.

Terminar com as formas contemporâneas de escravidão é, portanto, uma parte integral de uma luta mais ampla como a luta contra a pobreza, contra a falta de desenvolvimento e a desigualdade de gênero, e chegar a um desenvolvimento baseado nos direitos humanos e na justiça para todos. 

Como relatora especial para formas contemporâneas de escravidão, qual a extensão de seu mandato? Pode denunciar um país em falta ou é uma ação que só pode ser tomada pelo Conselho de Direitos Humanos?

Os relatores especiais são designados pelo conselho e têm um mandato sobre uma área temática ou um país específico. No meu caso, o mandato é para atender problemas específicos de um país, seja de forma pública ou privada. Todos os relatores especiais estão aptos para atender comunicações confidenciais com os Estados e/ou difundir comunicados públicos e informes temáticos públicos que são apresentados a cada ano. 

Também difundo informes públicos sobre cada país que visito com as conclusões da missão, assim como as recomendações ao Estado visitado e a outros atores. 

Me reporto tanto ao Conselho de Direitos Humanos como à Assembleia Geral, e quando esses informes são apresentados, os governos se envolvem entre eles, inclusive com o que foi visitado; esse diálogo construtivo é o mais útil, na minha opinião, para enfrentar a falta de cumprimento.

Quantas empresas cumprem com os Princípios Reitores sobre Empresas e Direitos Humanos? Como a maioria dos casos de escravidão ocorrem no setor privado, que efetividade têm as pautas voluntárias, não obrigatórias, na prevenção das formas modernas de escravidão no âmbito do trabalho?

Esses princípios foram desenvolvidos para deixar claro os papéis e a responsabilidade dos Estados e das empresas que têm que prestar atenção ao impacto empresarial sobre os direitos humanos. 

Não constituem um instrumento internacional a ser ratificados pelos Estados nem criam novas obrigações legais. Mas esclarecem e se referem às consequências de disposições relevantes de padrões internacionais de direitos humanos, alguns dos quais são legalmente vinculantes e oferecem pautas sobre como fazer para que sejam operativos. 

As leis nacionais frequentemente existirão ou requererão que se assegure de que essas obrigações sejam efetivamente implementadas e respeitadas. Isso, por sua vez, significa que elementos dos Princípios Reitores se refletem nas leis nacionais que regulam as atividades empresariais. 

Embora os Princípios Reitores sejam legalmente vinculantes, se espera de todos os Estados a proteção dos direitos humanos contra o abuso do setor privado, e na maioria dos casos é uma obrigação legal através da ratificação de tratados internacionais de direitos humanos que contêm dispositivos para isso. 

O dever de proteger do Estado que figura nos Princípios Reitores procede dessas obrigações. Em muitos deles se reflete, totalmente ou em parte, na legislação nacional ou em normas que regem o setor privado. As empresas estão obrigadas por contrato.

A responsabilidade corporativa de respeitar os direitos humanos existe por encima e além da necessidade de cumprir com as normas e as leis nacionais em matéria de proteção dos direitos humanos. São aplicados igualmente onde as leis nacionais são fracas, estão ausentes ou não são cumpridas. 

Os Princípios Reitores também validam o dever dos Estados de proteger ou reparar qualquer ataque contra os direitos humanos no setor privado. No contexto das formas contemporâneas de escravidão, o dever de proteger pode ser traduzido em uma mistura inteligente de medidas para garantir que as empresas assumam sua responsabilidade de respeitar os direitos humanos, inclusive seguindo a devida diligência em toda a sua cadeia de fornecimento e remediando o efeito adverso de suas operações. 

Como mínimo, os Estados devem garantir que as empresas percebam as consequências de comprar produtos ou serviços que estejam, de qualquer forma, vinculados a trabalhos forçados ou a outra forma contemporânea de escravidão. 

Até hoje, os Estados adotaram diversos enfoques para enfrentar o assunto, como responsabilidade penal ou civil para as empresas que violam os direitos humanos, mediante mecanismos que regulem o cumprimento no que diz respeito à proteção do comércio e do consumidor, além da contratação por parte do governo. 

Divulgação e transparência também podem figurar como obrigações legais, em vez de ficar limitadas pelas iniciativas voluntárias de responsabilidade social corporativa.

Não é possível medir o cumprimento de todas as companhias, mas há certas iniciativas fundamentais que devem ser mencionadas como o Corporate Human Rights Benchmark, que busca identificar que companhias têm melhores antecedentes em matéria de direitos humanos. É possível encontrar mais informações sobre essa iniciativa e seus últimos resultados na internet. 

A ONU tem formas de frear o recrutamento de mulheres e meninas através das redes sociais? Existe alguma solução? 

A ONU tem várias convenções contra o tráfico de pessoas e mecanismos para enfrentá-lo. Também há um mandato vinculado ao tráfico de pessoas, em especial sobre mulheres e meninas, que se concentra nisso especificamente. Para evitar a superposição de nossos mandatos, o meu se concentra em uma das consequências do tráfico de pessoas, especificamente à exploração laboral. 

A Grã-Bretanha tem um “chamado à ação para pôr fim ao trabalho forçado, a escravidão moderna e o tráfico de pessoas”. Qual tem sido a sua efetividade? Há algum outro país com ações ou normas similares?

A Grã-Bretanha lançou essa iniciativa em 19 de setembro de 2017, durante o 72º período de sessões da Assembleia Geral, e já conta com o respaldo de 84 entre Estados membros e observadores. 

O chamado à ação detalha ações práticas que os países podem fazer para cumprir o objetivo 8.7 dos ODS. Houve avanços positivos, mas é necessário fazer mais. 

Esses assuntos de trabalho forçado, formas contemporâneas de escravidão e o tráfico de pessoas não podem ser tratados separadamente, pois são delitos complexos e necessitamos conectar-nos com outros países e outros mandatos. 

O Chamado à Ação oferece um marco para que os países se unam e compartilhem as melhores práticas e trabalhem juntos, além de sublinhar a necessidade de que o setor privado e público se envolvam para chegar a uma mudança real.

A Universidade das Nações Unidas junto com a Aliança 8.7 criaram com fundos do governo britânico uma plataforma de conhecimento que acelerará uma pesquisa sobre o que funciona e mantém uma base de dados com informação sobre as ações dos países para apoiar pesquisas e as melhores práticas: www.delta87.org/call-to-action

IPS de Nações Unidas especial para Diálogos do Sul

Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.
Thalif Deen

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