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Sara Beatriz Guardia*
Em seu livro, Origens do totalitarismo, publicado em 1951, Hannah Arendt se refere à relação que existe entre modernidade, totalitarismo e filosofia, na análise do nazismo, os campos de concentração e o extermínio do povo judeu. Constitui, sem dúvida, um dos textos mais importantes de análise da sociedade moderna e da história da humanidade, em que a crueldade nazista não aparece como um produto da irracionalidade mas como objetivo que pretende a dominação total através da eliminação das pessoas.
Porém, não só matando, também eliminando-as como pessoas jurídicas, e limitando-as à categoria de pessoas fora da lei, massas sem pátria, despossuídas, incompreendidas, ignoradas. Quer dizer, sem direitos. Este aniquilamento da pessoa implica aniquilamento moral, corrupção dos mecanismos de defesa, da solidariedade humana, do respeito ao outro. É dizer a um povo que não ele não existe, é ninguém, posso te aniquilar, matar, ofender e não me passa nada.
Ao finalizar a Segunda Guerra Mundial e diante do horror produzido pelo holocausto judeu, a premissa utilizada então, de que se desconhecia o grau de violência e crueldade a que tinham chegado. Pode-se hoje dizer o mesmo diante da crueldade e assassinatos dos palestinos?
Não está a humanidade contemplando, através das cenas propagadas pela televisão de todos os países, os bombardeios israelenses contra refúgios e escolas com alto porcentagem de crianças palestinas mortas? Não nos comovemos e indignamos por vê-los dessangrando diante de nossos olhos?
Aos 23 dias do início das operações contra os palestinos, o exército israelense bombardeou uma escola da ONU que servia de refúgio para crianças palestinas desalojada de seus lares, e então, só então, Ban-Ki-moon, secretario geral da ONU fez ouvir sua voz e se pronunciou: “É atroz. É injustificável”, asseverou. Pierre Krahenbuhi, chefe da Agência da ONU para Refugiados Palestinos, por sua vez, acrescentou: “Esta é uma afronta a todos nós, uma fonte de vergonha universal”.
Não é também uma fonte de vergonha universal que os Estados Unidos condene o massacre palestino e ao mesmo tempo envia armas para Israel?
“Estamos muito preocupados porque milhares de desalojados palestinos não estão a salvo nos refúgios designados pela ONU em Gaza”, disse o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, Bernadette Meehan. Tão preocupados que no mesmo dia, em comunicado o porta-voz do Pentágono, contra-almirante John Kirby, confirmou o envio de armas para Israel, justificando esta ação porque: “O Departamento de Defesa recebeu uma carta em 20 de julho solicitando uma venda normal de munição para o estrangeiro. O pedido tramitou pelos canais normais e foi aceito em 23 de julho”, justificou Kirby.
Não se trata de fatos isolados nem tampouco de fatos de competência exclusiva da área política, há também um problema ético, moral. Ninguém pode dizer que ignora o que está ocorrendo, ninguém pode dizer que Palestina está muito longe ou que este problema não nos concerne, porque sim, nos concerne como seres humanos, como pessoas com princípios, com ética. É com estas respostas que o homem constrói a utopia, que como referiu Gramsci, é ética porque expressa a coerência que existe entre os postulados que orientam a sociedade e os atos políticos e de toda a vida privada. Ao estabelecer uma ponte com o mundo exterior, o indivíduo aporta seus próprios valores em concordância com os valores universais e a conjuntura específica que lhe cabe viver. A quebra desse equilíbrio significa o fim de uma proposta ética de vida. O fim da utopia, o reino da impunidade.
*Do núcleo de colaboradores de Diálogos do Sul – é coordenadora da Cátedra Mariátegui