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Ilka Oliva Corado*
Com minha voz de afrodescendente. Tenho vivido diferentes formas de discriminação e a mais feroz tem sido a racial devido a cor de minha pele, pois sou afrodescendente. O estigma de ter uma cor de pele escura, cabelo crespo e músculos fortes.
Para a sociedade a cor escura é prova de sujeira e impureza, paradoxalmente signo de quentura sexual. E não é que dizem que o homem negro tem o membro avantajado e que a mulher negra é explosiva na cama. E por isso nos vem como exótico, como erotismo proibido. Proibido porque nos veem como coisa mundana que ó é bom para o sexo mas jamais para uma relação de casal interracial que possa advir em matrimônio ou uma união civil com filhos. Jamais para formar uma família como o Estado e a igreja dispõem. E não é exagero, é dizer as coisas como são. É essa parte que todos vemos e fingimos que não está ali porque incomoda.
Aos negros nos consideram como bruto, que não temos inteligência e que devido aos músculos poderosos só servimos para o trabalhos pesados, como o das bestas.
Experimentei a discriminação no seio de minha família. Minha mãe me cuspiu na cara toda forma de denigrar por causa da cor da pele. Dose dupla porque além dos insultos me batia. Sou a única filha negra, e desde pequenina vivi a segregação e sei a forma como isso avaria as emoções. O rechaço constante aniquila todo desejo de viver e a estabilidade emocional.
Porém, minha mãe não é a malvada do conto. Duas de suas irmãs são negras e viveram nas mãos de minha avó coisas ainda piores das que eu vivi. E reconstruindo a historia, eu diria o mesmo de minha tia avó materna, de meu avô materno e seus irmãos. A família de meu país em que a maioria é negra. Sabemos isso desde que os espanhóis impuseram o genocídio em solo latino-americano. Está tão arraigado nos padrões de família que infesta. Com isso seguimos lacerando a outros seres humanos com tal nível de ignorância, preconceitos e estereótipos a ponto de desgraçar-lhes as vidas. Quando isso começa na infância é irrecuperável.
Há poucas semanas enviei uma fotografia a minha mãe. Pensei que a faria rir, é bem popular: é uma ovelha negra no meio de um grupo de brancas. Eu dizia: “eu sou a ovelha negra de minha família”. E é que, literalmente, é isso que sou em minha família, em todos os sentidos. Por causa disso ela me chamou por telefone. Falamos pouco porque chocamos. Pensamos abissalmente diferente e ainda há muitas feridas não curadas. Por essa razão prefiro que nossa comunicação não seja constante, assim evitamos discutir e passar mal momentos, as duas. Porém essa fotografia tinha algo que eu não intui e que a minha mãe lhe tocou na medula.
Muda o tom de voz dela quando está pensativa e nostálgica. Assim a escutei e me assustei e pensei que algo tinha acontecido em casa –e eu tão longe- porem não, respirou profundo e começou a falar sem parar. Ela não é assim; me desequilibrou completamente. Custa para que nos saiam as palvras, por exemplo, não posso dizer-lhe “mamãe” como a chamam meus outros irmãos. Por mais que tento as palavras doces não me saem quando conversamos. Secamente lhe digo, mãe ou Nanoj, que é a forma mais tenra de chama-la. E, o que não brota não se pode forçar porque então seria hipocrisia.
Faz muito tempo que não conversamos sobre o tema de como ela me trata devido a cor de minha pele e minha rebeldia incurável. Sempre evitamos em tempo porque é uma bomba de tempo. Falamos do dia a dia de cada uma e a mim me fascina transportá-la ao tempo de sua infância que foi patética e num agridoce e me transformo em cronista e veja através de seus olhos quando recorda suas vivencias de criança, de recém parida, de aldeã e diarista.
As relações pessoais são tão delicadas como um vaso que quando se quebra, mesmo que se consiga colar todas as partes não fica igual. E muito se perde na reconstrução e afinal é o que há e não s pode regressar no tempo nem mudar o que já aconteceu. Mas sim se pode afrontar o presente com os estragos com que nos foram formando como pessoas.
Fazia muitos anos que não conversávamos sobre o tema porque terminávamos brigando e tínhamos que deixar o tempo passar para que as águas se acalmassem e recuperar a comunicação. Agora que há terra nos separando nos damos melhor. Eu pensei que jamais viveria esse momento, nunca exigi que me pedisse desculpas por seus maltratos, nem tenho o direito de obrigar a ninguém a que mude suas atitudes nem sua forma de pensar. Em troca eu lhe pedi perdão por não ser a filha que ela sonhou e encarnar o fracasso em todas suas formas.
Eu vivi minha vida toda do avesso mas não me arrependo de absolutamente nada e se voltasse a nascer repetiria tudo. Não tenho filhos não posso saber o que sente uma mãe quando ve a uma filha perder-se, afogada em álcool e distanciar-se dela e cortar a comunicação, colocar um continente separando e ve-la como uma pessoa estranha. Isso eu fiz com minha mãe e não me arrependo. De ter ficado na Guatemala estou absolutamente segura de que já não estaria neste mundo. A relação que mantemos, assim como o vaso quebrado recém colado, é bastante comparado com o caos de quando eu vivia na Guatemala. Penas suficiente minha mãe passou em sua vida para que eu continuasse lá amargurando-a
Pedi perdão por não entrar no modelo mas fiz de minha vida o que me deu prazer me deu na gana e isso sei que herdei dela e me enche o peito. Tenho sua garra e sua ousadia. Não ha nada que tenha herdado de minha mãe, de seus genes que eu não agradeça tanto como seus impulsos para mostrar os polidos dentes à vida mesmo estando comendo merda.. A constância de cair e levantar-se com a frente erguida, bem pisoteada mas jamais vencida. Somos como um espelho. Me vejo e a vejo nela. Idênticas em nossa resistência. Afinal, a vida é isso: resistir…
Naquele telefonema minha mãe me pediu perdão por ter me tratado tão mal na minha infância. Eu não podia acreditar no que estava escutando. Me desmoronei. Nunca esperei, nunca sonhei; pensei que jamais sucederia, que ela aceitasse que me lastimou tanto física como emocionalmente. Disse que foi a única forma de educar em casa que ela conheceu, que não sabia que havia outras e que não sabia que isso era racismo. Viveu em sua casa, com suas irmãs e tomou isso como normal. Viu também na casa dos tios.
É a isso que me refiro quando digo que os padrões de educação estão carregados de estereótipos, racismo, homofobia, e vemos isso como normal porque está por toda parte, estamos dentro dessa atmosfera. Eu, dentro de meu coração, já tinha deixado ir essa amarga parte de minha vida, e jamais esperei de parte dela se aceitasse como mãe. Por isso foi tanta minha surpresa. Ocorreu quando eu tinha 35 anos. O mais bonito de tudo isso é que minha irmã menor tem uma filha que é igualzinha a mim, na cor, no físico, no caráter, no passional e no ardente amor ao futebol e à bicicleta. Sem dúvida, de tê-la eu a parido não teria saído tão parecida comigo. O melhor de tudo isso é que mesmo que minha mãe não tenha se dado conta em tempo quando eu era criança, acontece agora que sua neta é uma réplica minha. A vida tem seus altos e baixos.
Os padrões de educação já estão mudados nela e na minha irmã. A menina não é discriminada pela cor de sua pele, não há insultos, não ha segregação não ha surras. E isso me faz imensamente feliz. É como se estivesse eu vivendo em carne própria. É como se a vida tivesse dado uma nova oportunidade. Eu decidi não ter filhos, não conhecerei os genes saídos de minha matriz. Não conheço a intensidade do amor que dizem que as mães tem para com os filhos de seu sangue. Para mim o sangue é tão somente um laço de representação; o amor não tem nada a ver com origens, com cor, com religiões, com identidades sexuais.
Minha mãe, que é uma mulher árida, inquebrantável, com essa voz de trovão que reflete sua trajetória tormentosa pela vida, de repente me chama e abre seu coração, é algo que valorizo tanto, que me faz admirá-la como pessoa, porque sei que não foi fácil, mas o fácil na vida não vale nem a pena nem a alegria.
Por amor é que existimos pessoas que ainda acreditamos que esta humanidade pode se salvar e uma forma fundamental de fazer é mudando nossos padrões de educação dos filhos, e não dizer que assim nos criaram assim criamos.. Nunca é tarde para mudar. Os beneficiados somos todos e mais as criaturinhas que ão como esponjas que tudo absorvem. Merecem viver dentro de um jardim exuberante de flores e de esperança.
Tenho orgulho de ser afrodescendente –pelo lado materno- raiz da mãe África e nunca em minha vida neguei ou me envergonhei, ao contrário, apesar dos golpes e do rechaço da sociedade, ser negra e canhota é um privilegio que poucos temos na vida. E se acrescentamos a alegria do som dos atabaques e das cores, meu, aqui se faz um baile no estilo das batucadas do carnaval brasileiro.
Hoje, 21 de março, é o Dia Internacional da Eliminação da Discriminação Racial
Sejamos parte da mudança.
*Ilka Oliva Corado é guatemalteca, vive nos EUA e colabora com Diálogos do Sul