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EUA são "última esperança" de trabalhadores em regime análogo à escravidão na Guatemala

Após 7 anos em uma mercearia na capital guatemalteca, Ovidio decidiu partir em busca de melhores oportunidades
Ilka Oliva Corado
Diálogos do Sul
Território Estadunidense

Tradução:

Ovidio escuta ao longe o alarme do relógio despertador, vira para ver, são 3h30 da madrugada. Se levanta meio dormindo e caminha para o banheiro. Desde a noite anterior deixou a cubeta cheia com água para não ter que ir a essa hora tirá-la do tonel que está no quintal. Em um saco tem quatro mudas de roupa, tira uma que passou na noite anterior e se apronta para o entregador de pão que não tarda em chegar.

Em uma das bocas do fogãozinho de mesa põe os feijões para esquentar. Na outra esquenta as tortilhas. Da geladeira tira um saco com creme e queijo fresco do que passou deixando o vendedor que chega desde Taxisco a cada semana. Serve a si uma xícara de café e da cesta de pão tira dois. Serve-se dos feijões, coloca as tortilhas em um monte e começa seu desjejum. São 4h da manhã, em uma hora tem que abrir a mercearia, mas antes Ovidio tem que limpar e organizar o mostrador como faz todos os dias antes de abrir. 

Depois de limpar o mostrador, varrer o local e tirar o pó das estantes, coloca em sacos o pão frio do dia anterior para vendê-lo pela metade do preço. Quando lhe disseram para ir à capital cuidar de uma mercearia se iludiu com estudar na escola noturna, porque esse foi o trato com o dono, um homem originário da mesma cidade que se foi para os Estados Unidos indocumentado e regressou vinte anos depois com documentos e com dinheiro para pôr um negócio e regressar ao Norte. Chegou à aldeia dizendo que era um migrante empresário.

Após 7 anos em uma mercearia na capital guatemalteca, Ovidio decidiu partir em busca de melhores oportunidades

Agência Brasil
Migrantes centro americanos buscam outros horizontes

Em sua natal Nahuatán, Pajapita, San Marcos, Guatemala, Ovidio não tinha mais futuro que ir para os Estados Unidos, como fizeram dezenas de jovens de sua aldeia, coisa que ele também queria fazer, mas sua mãe lhe disse que se fosse o mais provável seria que não se tornariam a ver, como sucede a tantos que morrem no caminho aos Estados Unidos, ou morrem os pais na longa espera do retorno. Suplicou que não fosse tão longe, que lhe havia doído tanto o parto como para que fosse e não o voltasse a ver. 

Combinaram com seu empregador que lhe daria dois bônus anuais, dez dias de férias por ano e nas festas de fim de ano poderia ir visitar sua família; que poderia finalizar seus estudos na escola noturna e morar no próprio local do trabalho, que tinha um quarto atrás muito cômodo, mas nada disso foi certo. Ovidio está há sete anos trabalhando na mercearia na capital, dorme a poucos passos dos tambores de gás propano em um colchão no chão, malcheiroso, que já estava aí quando chegou. Levanta-se de madrugada, fecha a mercearia às 10h da noite e vai dormir à meia-noite; não pode fazê-lo antes, tem que fazer as contas do dia, ordenar produtos e organizar as prateleiras.

O dono da mercearia abriu mais três locais e contratou jovens da mesma aldeia para que cuidem deles. Lhe disseram seus amigos da aldeia que o tal migrante empresário os está explorando. Sua mãe lhe diz que não renuncie, que aí tem teto e comida e que trocar de trabalho lhe implicaria gastos. Que aguente, que é jovem, que já virá a oportunidade de algo melhor. Ovidio, entre os sustos dos cilindros de gás propano que armazena para a venda, também sofreu infinidade de assaltos, as grades não protegem de uma bala ou das ameaças de quando sai para o mercado comprar frutas e verduras para a mercearia e o ameaçam de matá-lo se não entregar o dinheiro. 

Ficou sabendo que na mesma situação se encontram várias jovens que trabalham fazendo tortilhas no setor. Elas mesmas lhe contaram que nas mercearias dos arredores também há jovens indígenas cuidando delas, que os levaram de seus povoados e que mal falam o espanhol, como ele que chegou falando mam e o espanhol fala só um pouco, apesar dos anos que leva vivendo na capital. E que de assaltos nem se diga… até notas deixaram os assaltantes pedindo uma quota mensal para não matá-las. Os donos dos postos de tortilhas fingem que não estão sabendo, apesar de que à noite eles foram manchar as paredes com sangue como advertência. 

Carmen, uma das garotas que trabalha fazendo tortilhas, não quer arriscar-se mais e perder a vida em um assalto, nem estar deixando os pulmões doentes para encher as bolsas de outros. Há meses estão dizendo que se vão aos Estados Unidos, que um primo seu as recebe lá. Irão cinco de suas companheiras de trabalho e se unirão a uma dessas caravanas de migrantes hondurenhos que atravessam a Guatemala. 

Finalmente, Ovidio se decide. Uma madrugada qualquer se levantou como de costume, recebeu o pão. Não abriu a mercearia, saiu pela porta de trás, agarrou o dinheiro da semana e chamou o dono para avisá-lo da sua renúncia, também lhe disse que a cópia da chave as deixava com as meninas das tortilhas da esquina, que não se preocupasse que ele não roubou nada.

No caminho para o México os dois passaram por San Marcos, mas Ovidio não quis ir visitar seus pais, porque sua mãe o convenceria outra vez para não ir. Então foi só assim, como se vão os mais golpeados das classes sociais: como aves em bandos buscando outros horizontes.

Ilka Oliva-Corado | Colaboradora da Diálogos do Sul em território estadunidense.
Tradução: Beatriz Cannabrava


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Ilka Oliva Corado Nasceu em Comapa, Jutiapa, Guatemala. É imigrante indocumentada em Chicago com mestrado em discriminação e racismo, é escritora e poetisa

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