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Em carta à OEA, Stella Calloni dá aula sobre América Latina

Stella Calloni

Tradução:

A Jornalista argentina Stella Calloni.
A Jornalista argentina Stella Calloni.

A Jornalista Stella Calloni, colaboradora de Diálogos do Sul, decidiu escrever carta diante do posicionamento da OEA frente aos acontecimentos na Venezuela.

A jornalista e escritora argentina Stella Calloni escreveu uma carta aberta ao Secretário Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, uma verdadeira aula de história sobre Nossa América, que deve ser lida por todos os que vivem nesta região e não aceitam a manipulação da informação diária produzida pela mídia comercial conservadora.

Carta Aberta ao secretário geral da Organização de Estados Americanos

Senhor Luis Leonardo Almagro,

Sou simplesmente uma mulher da América Latina, jornalista, escritora e o conheci quando era chanceler do presidente José “Pepe” Mujica no Uruguai. Não espero que se lembre.

Mas, que diferenças daqueles momentos aos que hoje estamos vivendo! Agora o senhor é Secretário Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) que ainda continua sendo uma espécie de Ministério das Colônias. E nestes momentos parece ser mais do que nunca, ainda que nem todos nossos países sejam manipulados como em outros tempos.

Por isso, diante do que está vivendo nossa região, e a Venezuela, cujo povo acaba de demonstrar a verdade que ocultam os monopólios midiáticos votando em peso nos representantes populares para a Assembleia Constituinte, decidi lhe escrever esta carta. Também diante da impotência pela impunidade com que se está tentando destruir o projeto mais avançado de integração emancipatória que tínhamos conquistado. Essa grande esperança da unidade de Nossa América, que tanto nos custou: um genocídio no século XX, golpes de Estado, invasões, saques e a dependência eterna da potência imperial que nos declarou seu “pátio traseiro”.

Neste século XXI estávamos dando passos gigantescos com o objetivo de recuperar nossa independência definitiva, castrada nos fins do século XIX pela expansão imperial, “o Destino Manifesto”, a doutrina Monroe, todos documentos coloniais que seguem sendo básicos nos projetos atuais dos Estados Unidos contra nós. Os sempre submissos sócios ou aliados por interesses de todos os governos estadunidenses, as direitas locais, acompanharam as ditaduras militares no continente e agora continuam sendo o mesmo batalhão perdido do império.

Havíamos conseguido um avanço extraordinário, nossa voz era ouvida alta e o senhor sabe, tínhamos a possibilidade pela primeira vez de formar unitariamente um bloco não para dominar e atacar ninguém, mas para defendermos juntos; declararmos finalmente livres de toda dependência e manejar nossos grandes recursos em favor de nossos castigados povos. Também significava o resgate de identidades e culturas ocultas pela sobrevivência colonial em nossa vida cotidiana.

Os Estados Unidos, diante de seus fracassos contra o governo e o povo venezuelano com as estratégias e táticas de guerra contra-insurgente em seus novos traçados, decidiu golpear primeiro e ao mesmo tempo os três países chaves no traçado da integração: Venezuela, Argentina e o Brasil.

Houve esperanças quando o senhor foi eleito por consenso de 33 de 34 países para ocupar a Secretaria Geral da OEA que assumiu em maio de 2015. Havia sido o senhor chanceler do governo do presidente José “Pepe” Mujica, do Movimento de Participação Popular e da Frente Ampla. Como não confiariam no senhor, apesar de que nos últimos tempos na chancelaria começaram a advertir sobre algumas mudanças em suas ações?

Um homem da terra do herói latino-americano José Gervásio de Artigas, da Frente Ampla que sobreviveu aos tempos da ditadura e chegou finalmente ao governo pela via eleitoral pela primeira vez impondo a vontade do povo. Como o senhor não ia defender a Nossa América?

“Aos senhores, como representantes dos povos das Américas, devo, e os agradeço pelo seu voto de confiança”. Foram suas palavras.

Agora estamos vendo o “outro” Almagro, o que lamentavelmente se converteu na cabeça diplomática e política do golpismo que desde há muito mais de quatro anos assola a Venezuela.

O senhor conhece muito bem o que os governos do falecido presidente Hugo Chávez Frías e seu seguidor Nicolás Maduro conquistaram nesse país, onde 80 por cento de venezuelanos viviam na pobreza no início deste século. O governo Chávez produziu uma profunda mudança revolucionária e suas decisões no econômico, político e social foram reconhecidas por organismos internacionais: a eliminação da extrema pobreza, derrota do analfabetismo, ações sociais inéditas nesse país petrolífero, a recuperação dos recursos naturais, a criação de “missões” que fizeram um extraordinário trabalho em favor da população venezuelana, escapando da tragédia das burocracias criadas pelos velhos poderes dependentes, e uma política externa cujo eixo essencial era e é a unidade regional, a solidariedade e o respeito a todos os direitos dos países livres e soberanos.

A Venezuela nos trouxe o pensamento contra-hegemônico do século XXI, o bolivarianismo, que satisfaz a todos. Quem ignora que Chávez foi propulsor ardente da integração e da solidariedade? Agora esse país está submetido a uma guerra contra-insurgente, dirigida desde os Estados Unidos.

O senhor sabe perfeitamente como ocorreram todos os processos de desestabilização em Nossa América. É impossível que os desconheça, já que viveu em seu país e nos arredores. Ou por acaso há diferenças no desabastecimento programado pela ultra-direita fascista chilena e a CIA estadunidense contra o governo de Salvador Allende, nos anos 70 , com o que aconteceu na Venezuela a partir da morte de Chávez?

Nesses momentos, o golpismo – que nunca deixou de estar presente nesse país depois do fracassado golpe de abril de 2002, derrotado em 48 horas por um povo nas ruas e um setor patriota das Forças Armadas – foi incentivado. Ocorreram uma série de sabotagens e tentativas golpistas e uma permanente conspiração de Washington que além disso investiu milhões de dólares para manter organizada a direita fascista venezuelana.

A participação dos Estados Unidos não só está documentada como inclusive foi admitida abertamente por seus governantes. O chamado “golpe eterno” se fortaleceu com a morte do presidente Hugo Chávez em março de 2013. Em Washington se pensava que morrendo um líder com essas características seria muito fácil avançar sobre seu sucessor, neste caso Nicolás Maduro, que em 14 de abril de 2013 ganhou as eleições em meio de um ataque de guerra cibernética e de uma campanha demolidora e mentirosa da imprensa majoritariamente em mãos do setor privado e golpista.

Nessa mesma noite o chefe da Mesa da Unidade Democrática e ex-candidato presidencial, Henrique Capriles Radonsky exortou seus seguidores a sair às ruas e incendiar Caracas, sob alegação de fraude. Apareceram as forças de choque, os motorizados que produziram incêndios, ataques a instituições, mas o mais doloroso, resultou em 13 mortos e dezenas de feridos.

E isso continuou ao longo de 2014. O ano de 2015 começou com mais sabotagens, assassinatos e ataques terroristas. Em 12 de fevereiro a ex-deputada ultra-direitista Maria Corina Machado acompanhou o dirigente da Vontade Popular Leopoldo Lopez – ambos com vínculos com a CIA e os setores fundamentalistas dos Estados Unidos – quando se anunciou pela televisão a tomada das ruas de Caracas, com conclamação de rebeliões e com uma linguagem de extrema violência para executar o projeto golpista “A Saída”.

López assegurou então que permaneceriam nas ruas até a derrubada do presidente e isso significou um salto qualitativo nas “guarimbas” em quanto ao uso da violência, tratando de provocar mortes e os maiores danos possíveis para levar ao caos e obrigar a renúncia de Maduro. Contavam com um muito bem organizado apoio externo e midiático.

O senhor sabe perfeitamente que os meios de comunicação manipulados pelo poder hegemônico em 95 por cento, para assegurar a desinformação, a desculturalização e a dominação dos povos são hoje uma peça chave para as Guerras de Baixa Intensidade e de Quarta Geração, que estão acontecendo na Venezuela e em Nossa América, com a cooperação da Organização dos Estados Americanos.

López já havia participado ativamente no golpe de Estado de 2002. O plano “A Saída” utilizando ataques de extrema violência e franco atiradores, em uma aliança com paramilitares colombianos deixou 43 mortos e 800 feridos, dos quais cerca de 200 sofrem algum tipo de invalidez, dezenas de edifícios incendiados, e danos milionários no país.

O que o senhor acha, senhor Almagro, o que aconteceria em Washington se algo do gênero ocorresse? O que acredita que faria o governo dos Estados Unidos diante de uma situação semelhante?

Agora há mais de 90 dias, em setores claramente demarcados e não em todas as ruas nem em todo o país, como querem fazer crer os meios de desinformação midiáticos, se desenvolvem ações de extrema violência, com grupos de choques, entre os quais se juntam jovens, inclusive meninos, “contratados” por dinheiro e drogas, delinquentes comuns (bucha de canhão, como se diz), e paramilitares colombianos, cujas ações resultaram mais de 100 mortos. Trata-se de levar a violência a seus extremos limites queimando edifícios, centros de saúde, universidades, caminhões com alimentos e remédios e levar a uma guerra civil. A Venezuela não tem o direito de defesa?

Isso é um golpe de estado em desenvolvimento, que é apresentado ao mundo como “marchas pacíficas” da oposição, que foi convocada ao diálogo permanentemente pelo governo, e que criou obstáculos para sentar-se em uma mesa pela paz, porque os Estados Unidos necessitam com urgência quebrar a Venezuela, depois do golpe de estado, judicial, parlamentar e midiático ocorrido no Brasil.

A derrubada da presidenta Dilma Rousseff sem causa alguma, com a violência da mentira e falsas acusações, em agosto de 2016, evidenciou a intervenção de setores da justiça que em toda região foram cooptados por Washington, um Parlamento corrupto e a guerra midiática. Similar aos golpes em Honduras (2009) e Paraguai (2012).

Para o senhor não existiu esse golpe no Brasil, e agora se apoia no presidente ilegítimo Michel Temer para atuar contra Venezuela, ou no argentino Mauricio Macri, que chegou ao governo por via eleitoral em dezembro de 2015, em eleições marcadas pela ingerência externa, a guerra midiática que não deu trégua e os milhões de dólares que foram repartidos, também no Brasil, por meio de Fundações estadunidenses e sua rede de Organizações Não Governamentais. Na Argentina, se instalou abertamente uma “força de Tarefa” do Fundo de Paul Singer, que confessou abertamente a necessidade de se desfazer da presidenta Cristina Fernández de Kirchner, nas eleições de outubro de 2015. A maioria dos ministros do presidente Macri, cuja Fundação Pensar, depende diretamente da Heritage dos Estados Unidos, pertencem a fundações similares e possibilitaram que Washington seja o verdadeiro poder por detrás do trono. Esse governo está levando totalitariamente o país a uma severa crise entregando a soberania nacional, destruindo todos os programas sociais, culturais, educativos, científicos e humanitários, e provocando uma perseguição política, judicial e também midiática.

São esses os governos “democráticos” em que o senhor se apoia, para tratar de derrubar Nicolás Maduro, justificando política e diplomaticamente a violência criminosa na Venezuela. E, além disso, o México que desde 2006 quando se instalou a falsa guerra contra o narcotráfico, que dirige Washington, se registram cerca de 200 mil mortos e pelo menos 40 mil desaparecidos. Ou ainda a Colômbia onde se firmou o acordo de paz, entre o governo e as antigas guerrilhas, mas a cada dia continuam assassinando líderes sociais, indígenas, defensores de pobres e dos direitos humanos. Que país pode ser verdadeiramente independente com bases militares dos Estados Unidos em seu território?

Em Honduras continua o golpe de junho de 2009 e o terror encoberto em uma falsa democracia, o mesmo acontece no Paraguai depois do golpe. Isso é apenas uma sintética mostra da realidade latino-americana, em momentos em que também o governo estadunidense age contra Cuba, onde havia começado uma aproximação diplomática com Washington. E também sobre a Bolívia, Equador, Nicarágua, El Salvador e se pressiona os países caribenhos.

É possível que um Secretário Geral da OEA desconheça tais situações e realidades?

A generosidade da Venezuela com todos, mas especialmente com os países pequenos da região, para resolver as assimetrias e até uma integração profunda, é outra realidade, que parece o senhor desconhece. Os povos caribenhos tão desapreciados pelos poderosos e outras nações com dignidade rejeitam a ingerência externa contra o governo venezuelano. Seu país, Uruguai entre eles.

Momento extraordinário foi o fim do ano de 2011 quando se consolidou a Comunidade de Nações Latino-Americanas e Caribenhas (CELAC). Todos juntos pela primeira vez na história. Isso é que acelerou as ações dos Estados Unidos sobre a nossa região e o fato de que encontraram tanta resistência na Venezuela, os obrigou a atuar cada dia com maior violência e impunidade, qualificando os governantes que governam para seus povos como “ditadores” e transformando as vítimas em algozes com a ajuda dos meios de comunicação conservadores que desinformam.

O chamado “golpe brando” está sendo difícil de aplicar a esses latino-americanos insubmissos que têm uma obstinada decisão de finalmente libertar-se e que na década passada havíam cometido o sacrilégio de nos colocarmos de pé e falar com a nossa própria voz.

Agora o senhor tem a oportunidade de impedir que triunfem os verdadeiros terroristas que estão assolando a Venezuela e reconhecer uma Assembleia Constituinte democrática cujos representantes o povo elegeu, o que significa um caminho de paz, não de guerra. Mas os Estados Unidos, só vê a enorme reserva petrolífera venezuelana e outros recursos, que agigantam seu delirante sonho de controlar o mundo e recolonizar seu “pátio traseiro”. Ou seja, nós.

O senhor já é responsável por cada morte na Venezuela.

Senhor Almagro: Quantas mais vidas acredita que devemos pagar para ser autenticamente livres e independentes? Não traía a sua pátria. Defenda o direito dos povos de Nossa América de ser livres.

Edição: *com tradução de Mário Augusto Jakobskind


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Stella Calloni Atuou como correspondente de guerra em países da América Central e África do Norte. Já entrevistou diferentes chefes de Estado, como Fidel Castro, Hugo Chávez, Evo Morales, Luiz Inácio Lula da Silva, Rafael Correa, Daniel Ortega, Salvador Allende, etc.

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