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Excludente de ilicitude: Em dois anos, única proposta de Bolsonaro é a licença para matar

Corremos o risco de tomar a estupidez como “normalidade” e o perigoso é nos habituarmos a essa repetição constante de insensatez
Flávio Tavares
Diálogos do Sul
São Paulo (SP)

Tradução:

A Covid-19 é brutal em si, mas não foi só a pandemia que fez de 2020 um “ano terrível”, em que a humanidade transformou-se num fantasma, vagando com medo e sem rumo na escuridão. Os governantes do Brasil deram, também, intensa contribuição ao horror.

A sucessão quase diária de disparates governamentais nos transforma num país sem rumo. Os absurdos se amontoam. O que nos escandalizou ontem é superado pelo horror de hoje, a ser substituído pelo absurdo de amanhã.

O perigoso é nos habituarmos a essa repetição constante de insensatez. Corremos o risco de tomar a estupidez como “normalidade”, levando o caos para o lar ou para a consciência e alterando para pior nossa compreensão do mundo e da vida.

Em tempos de democracia e até nos anos brutais da ditadura implantada em 1964, os governos (bem ou mal) buscaram unir o país em torno de problemas imediatos. Agora, em plena pandemia, Bolsonaro desmobiliza a sociedade, como se não visse a ameaça. Dizer que a “gripezinha” está “no finalzinho” em meio às mortes em aumento, ou que “não há pressa” na vacina, mostra um desvio de atenção próximo a um perigoso desvio de personalidade.

Corremos o risco de tomar a estupidez como “normalidade” e o perigoso é nos habituarmos a essa repetição constante de insensatez

Palácio do Planalto
Como presente de Natal, liberou a importação de armas, enquanto medicamentos essenciais vindos do estrangeiro continuam com altas taxas.

Em meados de dezembro, a foto de primeira página deste jornal mostrou o exibicionismo megalômano que leva a indagar sobre quem é, de fato, o presidente da República na profundeza do próprio ser. Numa redoma de vidro, ali apareciam a roupa e o vestido usados pelo casal presidencial na posse de janeiro de 2019, como se fossem “relíquias sagradas”. Na foto, ele e ela, em pose, como objetos de adoração.

O exibicionismo esconde raízes profundas, que, no caso, faz crer que o presidente só vê a si próprio, numa sucessão de espelhos, sem jamais enxergar a nação.

Ou quando olha em torno de si, o presidente vê apenas o que já “cozinhou” na mente. Inventa inimigos, alhures ou algures. Ou leva o país ao abismo perigoso de instigar as forças policiais contra a imprensa, como fez na formatura da Polícia Militar do Rio de Janeiro no final de 2020. Jamais um chefe de governo convocou soldados da segurança pública a duvidarem da informação concreta da imprensa, dando-lhes assim (mesmo indiretamente) “carta branca” para o crime como se isto combatesse o crime.

O ano novo é sempre tempo de júbilo e bons augúrios, mas a alegria confiante e verdadeira surge apenas da realidade. Nosso amanhã brota do que fomos ontem, nunca da fantasia ilusória de um sonho irrealizado. E de fantasias ou ilusões (ou mentiras) vivemos há tanto tempo que basta mencionar os disparates recentes para compor uma seleção do horror. Primeiro o “mensalão” depois a “Lava Jato” deram a dimensão da fraude de Lula da Silva e seus comparsas. Logo, Temer ampliou a caverna de Ali Babá e surgiu Bolsonaro com as mãos imitando um revólver ou um fuzil, mas com a mente vazia.

Neste 1 de janeiro, ele completou dois anos de governo e sua única proposta é insistir na tal “excludente de ilicitude”, nome pomposo que dá à polícia licença para matar num país em que não há pena de morte.

O presidente age como se tivesse intimidade com a morte. Dias atrás, voltou a elogiar o massacre do Carandiru, em que 111 detentos foram mortos há anos. Logo, como presente de Natal, liberou a importação de armas, enquanto medicamentos essenciais vindos do estrangeiro continuam com altas taxas de importação.

Facilita-se o que leva à morte, sem maior preocupação com a vida.

Nada, porém, é comparável ao desdém com que o governo federal trata a pandemia e a devastação do meio ambiente. A ciência, o secretário geral da ONU e o Papa advertem sobre o futuro desastre das mudanças climáticas, algo ainda mais devastador do que a Covid-19. Os “rios aéreos” da nossa Amazônia ajudariam a mitigar a crise, mas a devastação da floresta cresce a cada dia.

Os incêndios no Pantanal mato-grossense foram tratados burocraticamente.

Sobre a pandemia em si, tudo é ainda mais brutal pois o horror já se instalou e mata sob o olhar de desdém do presidente da República que, de forma diferente, repete aquele “todos vão morrer um dia”, dito à porta do Palácio, meses atrás, como bordão festivo.

Até o Supremo Tribunal viu-se acima da nação ao pedir que se reservassem 7 mil doses da vacina a seus membros e familiares.

Se os governantes são impermeáveis frente ao futuro, no setor privado alguns entenderam o perigo. Os três maiores bancos privados, Itaú, Bradesco e Santander já advertiram sobre a possível retirada de investimentos estrangeiros se persistir a devastação ambiental. A Ambev construirá 48 usinas solares para abastecer seus centros de distribuição, mesmo após Bolsonaro retirar incentivos à energia solar e eólica. A Votorantim promete “reduzir a zero”, até 2050, a emissão de gás estufa nos poluentes processos de mineração e fabricação de cimento.

Os doze meses de 2020 não definiram um grande ano, mas apenas um ano anão.

 

Flávio Tavares, colaborador da Diálogos do Sul, jornalista e escritor, prêmio Jabuti 2000 e 2005, prêmio APCA 2004.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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Flávio Tavares Jornalista e escritor, professor da Universidade de Brasília, Prêmio Jabuti de Literatura em 2000 e 2005, Prêmio APCA em 2004

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