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Exploração da Lua, militarização e combate às mudanças climáticas: perspectivas da gestão Biden para a exploração espacial

Em abril, os EUA fecharam um contrato bilionário com a Space X, que agora é responsável pelo desenvolvimento do sistema de pouso integrado da missão que levará um estadunidense de novo à Lua
Giovanna Bertolaccini Santos
Diálogos do Sul Global
São Paulo (SP)

Tradução:

Em 1958, um ano após o lançamento do satélite artificial Sputnik I pela então União Soviética (URSS), a National Aeronautics and Space Administration, popularmente conhecida por sua sigla Nasa, foi criada pelo governo estadunidense com o propósito de inserir os Estados Unidos na competitiva corrida espacial e tecnológica da Guerra Fria. 

A partir deste momento, a política espacial se torna um importante vetor da agenda doméstica e internacional estadunidense, tanto pela ótica da segurança quanto de desenvolvimento científico e tecnológico.

Algumas semanas após a ida do primeiro cosmonauta soviético ao espaço em 1961, o então presidente John F. Kennedy anunciou o plano nacional de levar o primeiro homem à Lua até o final daquela década através das missões Apollo, que causaram enorme efeito na evolução da exploração espacial e da Nasa. 

Doravante, esta evolução, com novas missões e objetivos, ocorreu calcada na diretriz política de cada governo, caso, por exemplo, da abordagem no estabelecimento das bases legais para a exploração espacial, uma preocupação de Lyndon Johnson e Richard Nixon; dos grandes planos para a vertente militar advindas de discursos de defesa e de militarização, tal qual em Jimmy Carter e Ronald Reagan; do grande incentivo orçamentário e do plano de estabelecer uma missão a Marte, como em George H. W. Bush e Donald Trump; ou do incentivo à exploração espacial privada, conforme promovido por George W. Bush e por Barack Obama. 

Com base em ações e sinalizações de Biden nestes primeiros meses, o que podemos esperar, enfim, do atual governo com relação à exploração espacial?

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Assim que o anúncio oficial da vitória de Biden sobre Trump nas urnas veio à tona, o então chefe da Nasa, Jim Bridenstine, anunciou que deixaria o cargo. Bridenstine havia sido o primeiro membro do Congresso americano a se tornar diretor da agência, historicamente comandada por profissionais da área.

O congressista foi o responsável por avançar projetos cruciais, como o aceleramento do programa Artemis. Com a saída de Bridenstine, o nome escolhido para chefiar a Nasa foi o de Bill Nelson, que teve sua nomeação muito bem recebida pelo time que agora comanda, assim como analistas e pela imprensa. E isso acontece por conta de seu histórico com as atividades espaciais.

Continuidade nas parcerias público-privadas

Bill Nelson é um político que já ocupou diversos cargos na representação do estado da Flórida, regional e nacionalmente, onde esteve engajado em impulsionar as atividades espaciais estadunidenses no âmbito governamental e comercial. 

Eleito para a Câmara de Representantes dos EUA pelo distrito que abrange o Centro Espacial Kennedy, foi presidente do subcomitê da Casa voltado para política da Nasa, advogou no Congresso pautas relacionadas às atividades e ao orçamento desta agência, tal qual o veículo Space Launch System. 

Também atuou como astronauta em 1986, permanecendo no espaço durante dez dias a bordo do Columbia, no último voo de sucesso deste ônibus espacial, e ainda serviu como conselheiro do Nasa Advisory Council desde 2019.

Diante do currículo de Nelson e dos anos de envolvimento com a política espacial desde o início de sua carreira pública, as expectativas voltadas para ele também se tornaram muito grandes. 

Especialistas alimentavam ainda o receio de que, pela postura de outrora de defender institucionalmente a Nasa e os projetos estatais espaciais, Nelson poderia representar um impasse nas parcerias público-privadas que têm sido um importante pilar das atividades espaciais dos EUA. 

As primeiras ações da Nasa com Bill Nelson no comando seguiram em outra direção, porém. Em abril, os EUA fecharam um contrato bilionário com a Space X, que agora é responsável pelo desenvolvimento do sistema de pouso integrado da missão que levará um estadunidense de novo à Lua.

A nomeação do novo comandante da Nasa se apresenta como uma continuidade ao projeto que já havia sido estabelecido pelo republicano Trump no setor tecnológico e científico espacial, inclusive declarando que tentará seguir o – fortemente otimista – cronograma planejado pelo governo anterior para o programa Artemis. 

Seu nome remete à deusa da mitologia grega irmã gêmea do deus Apolo, uma vez que a missão levará a primeira mulher da história até a superfície lunar, enquanto que as Missões Apollo levaram o primeiro homem à Lua.

Este projeto foi o carro-chefe da política espacial de Trump e promete continuar sendo o principal foco das atividades espaciais no governo Biden. O programa é um guarda-chuva, sob o qual diversas atividades acontecem no sentido da exploração da Lua, de Marte e de outros corpos celestes. 

Diferentemente das missões Apollo, o Artemis é composto por uma coalizão de países parceiros (Austrália, Canadá, Itália, Japão, Luxemburgo, Emirados Árabes Unidos e Reino Unido), liderados pelos EUA.

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Assinados em 2020 para a exploração pacífica do espaço exterior, os Acordos Artemis estabelecem algumas bases legais para a exploração e a segurança em bases lunares e no espaço cislunar e são motivados pela configuração atual de estagnação da legislação internacional espacial. 

Para as grandes potências, a exploração lunar está cada vez mais perto de se materializar, sendo onde as principais atividades espaciais estarão alicerçadas no futuro próximo e, consequentemente, as disputas interestatais. 

As motivações são muitas, e questionáveis, se analisadas pela ótica da política, no entanto, o estabelecimento desses acordos é estrategicamente importante para os EUA por protegerem sua propriedade no espaço exterior e, ao mesmo tempo, fornecerem margem de manobra legal que cerceie motivações de outros Estados que não sejam cooperativas.

Somando-se às sinalizações do governo Biden para o avanço das atividades espaciais no âmbito da Nasa, na divulgação do orçamento para 2022, Biden propõe ao Congresso designar US$ 24,7 bilhões para a agência, sendo este total US$ 1,5 bilhão a mais do que em 2021. 

Do valor proposto, destaca-se a quantia de US$ 6,9 bilhões destinados ao programa Artemis. O aumento da designação orçamentária para a Agência Espacial reforça que as atividades espaciais civis são parte importante da agenda de ciência, tecnologia e projeção internacional dos EUA. 

Também ocorre pela pauta ambiental do democrata que, desde sua candidatura, já deixava claro que reverteria as ações trumpistas contra os regimes internacionais de proteção ao meio ambiente.

Até o atual momento, o governo Biden tem colocado a agenda ambiental e climática no centro das prioridades dos EUA. Entre outras ações, renovou o compromisso com o Acordo de Paris e começou a restabelecer as regulamentações domésticas de proteção ao meio ambiente. 

É neste âmbito, no combate às mudanças climáticas, que a Nasa se torna um importante aliado de Biden. No orçamento mencionado anteriormente, a previsão para o Programa de Ciências da Terra desta agência teve um aumento de 12,5% em relação a 2021. 

A Nasa possui satélites de estudos da Terra que vão desde observação e monitoramento até meteorologia, além de desenvolver outros muitos projetos, como sistemas preditivos para sustentabilidade e aviões com maior eficiência energética. 

Sendo assim, o programa espacial civil estadunidense é visto como ferramenta crucial para Biden em sua agenda ambiental e que, mesmo havendo ênfase nas pesquisas sobre mudanças climáticas, elas não se deram às custas da regressão de outros programas, ou de mudanças radicais na abordagem da Nasa.

Militarização crescente do espaço

No outro lado do espectro das atividades espaciais, está a vertente militar do setor, que, nesta nova era da exploração espacial, é marcado pelo advento das armas antissatélites. 

Há pelo menos mais de uma década, a China representa uma ameaça aos EUA por conta do desenvolvimento das armas antissatélites, e Biden agora encara mais uma onda dessa ameaça.

 A China possui armas em terra e no espaço que, se disparadas, podem destruir satélites, ou cegar seus sensores. O que pode parecer uma guerra no espaço digna de ficção científica tem, na verdade, consequências sérias para a segurança nacional, como impedir a comunicação com outros satélites, entre as tropas, e até mesmo o comando de armas inteligentes como os drones de guerra.

A China trabalha para ser a maior potência espacial dentro de poucas décadas e, embora ela seja considerada a maior ameaça à segurança dos EUA a partir do espaço e represente um entrave nos planos estadunidenses de se destacar na exploração comercial do espaço exterior, não é a única ameaça. 

O incidente com os satélites russos Kosmos 2542 e Kosmos 2543 demonstraram que a Rússia também possui satélites duais com potencial para atacar os EUA, tanto no espaço quanto na Terra. Além disso, a saída da Rússia do Tratado Céus Abertos abre uma lacuna com relação ao uso de armas nucleares que também podem ser incorporadas ao programa espacial russo.

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Em reação a estas ameaças, reais e potenciais, o secretário de Defesa de Biden, Lloyd J. Austin III, em fala no Senado, classificou o espaço como lugar de competição, projeção de poder e domínio de guerra e combate; classificou a China como maior adversário e ameaça aos EUA neste cenário; e destacou a necessidade de aumentar a “vantagem competitiva” em relação ao gigante asiático. 

O reconhecimento de que o espaço exterior é o presente e o futuro cenário de guerras e ciberguerras não é, porém, exclusividade do atual governo. Esta movimentação se iniciou com George W. Bush e Barack Obama, até culminar no estabelecimento da U.S. Space Force por parte de Trump. 

Embora tenham havido especulações de que Biden reverteria a independência da Força Espacial para a antiga condição de um braço da Força Aérea, não foi o que aconteceu.

A decisão de Biden de manter a independência da Space Force demonstra o potencial bélico que o espaço ocupa na nova agenda política, bem como o reconhecimento de que uma das maiores ameaças à estabilidade das forças militares em terra e à segurança nacional estão no espaço exterior. 

Sendo assim, estes primeiros meses de governo Biden indicam que, diferentemente do que se esperava, a política espacial ganha forte aporte governamental neste início de mandato. 

Mostra ainda que há um compasso entre a vertente civil e a militar do programa espacial, assim como um compasso entre o público e o privado na competitiva corrida científica pela colonização e comercialização do espaço.

* Giovanna Bertolaccini Santos é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC-SP), pesquisadora do NEAI e membro da Rede de Pesquisa em Autonomia Estratégica, Tecnologia e Defesa (PAET&D). Contato: giovanna.bertolaccini@unesp.br.


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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