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O longo artigo que o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, publicou na revista Piauí sob o título “Vivi na pele o que aprendi nos livros” (1) merece ser lido e comentado, pois suscita diversas questões.
Ricardo Carlos Gaspar*
Em primeiro lugar, pois Haddad figura entre as novas e promissoras – infelizmente escassas – lideranças do país. Sua postura pública tem se pautado pela seriedade, consistência e compromisso democrático.
Em segundo lugar, pelo fato de Haddad ter muito a dizer sobre o presente e o futuro da nação, embora não ocupe o espaço que sua estatura política e intelectual lhe destinaria, deixando de verbalizar suas convicções com a força e a frequência que seria de se esperar em face dos acontecimentos nacionais dos últimos anos e das manobras golpistas recentes. Desse modo, é ainda pequena sua contribuição para elevar o nível rasteiro do debate estratégico no Brasil de hoje.
Embora o artigo padeça de problemas de forma e estilo, mesclando muitos temas e tornando algo indigesta sua leitura, não carece de densidade teórica e política, estando à altura da capacidade de seu autor.
Haddad discorre sobre assuntos diversos e relevantes, que mereceriam desenvolvimentos específicos para serem mais bem elucidados. Trata com propriedade do patrimonialismo brasileiro (recomendaria ao ex-prefeito incorporar em sua análise os trabalhos de Jessé Souza, que investe de forma contundente contra essa concepção arraigada nos intérpretes da história brasileira), argumenta citando Marx, Habermas e Luhmann, elucida manobras de bastidores e investe lucidamente contra o papel da grande mídia brasileira na manipulação tendenciosa da opinião pública, distorcendo fatos e repercutindo inverdades.
Mas o que desejo analisar brevemente a seguir é sobre o assunto principal do artigo, ou seja, sua gestão a frente da prefeitura da cidade de São Paulo. E aqui os comentários não são tão lisonjeiros à atuação de Haddad.
São Paulo tem vivido a experiência de gestões municipais bastante heterogêneas. Depois do desastre das administrações Maluf-Pitta, a gestão de Marta Suplicy entre 2001-2004 deixou um legado muito importante de realizações, em boa parte descontinuadas na gestão seguinte, de Serra-Kassab. Assim é que, quando assume Haddad, em janeiro de 2013, a expectativa de renovação e mudança afigurava-se consistente com a biografia do prefeito.
Porém, indo direto ao ponto, afirmo que sua gestão frustrou expectativas. Ressalvando alguns avanços internos importantes, mas de peso político externo diminuto, como a luta contra a corrupção e o saneamento das contas públicas, a formulação do novo Plano Diretor Estratégico (cuja relevância não pode ser desprezada, porém tampouco supervalorizada, pois planos não têm o condão de se sobrepor a realidade), além de uma postura republicana de diálogo e prioridade ao espaço público, pouco mais se pode acrescentar.
O que é decepcionante, não apenas pelo que uma cidade do porte e do significado de São Paulo requer. Penso em ações ousadas estruturantes, de articulações criativas entre o público e o privado, de uso intenso da tecnologia digital na gestão urbana, de reformas administrativas que melhorassem a eficiência da administração e elevassem a moral dos servidores, de parcerias estratégicas para a construção de um futuro mais humano e inclusivo para a cidade, da necessária concertação metropolitana, para mencionar as mais importantes. Vale lembrar que governos anteriores do PT na cidade deixaram marcas duradouras.
Faltou, sobretudo, ação política. Presença nas periferias, interlocução inteligente com movimentos sociais, engajamento de atores sociais relevantes em projetos concretos de renovação urbana, uma comunicação eficiente com a sociedade. E, embora Haddad tenha razão nas suas queixas em relação ao tratamento que recebeu da imprensa em geral, isso é comum a todas as administrações de esquerda no país. Basta recordar o caso de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro.
Seu secretariado, salvo notáveis exceções, foi de escassa competência política ou operacional. O viés fisiológico, de direita, prevaleceu. Sua assessoria direta revelou-se incapaz de alimentar o núcleo político e administrativo de critérios de decisão qualificada. O desconcerto (até certo ponto natural, mas exagerado pelo grau atingido) ao longo dos protestos de junho de 2013, a omissão e a falta de iniciativa da gestão municipal em face das demandas metropolitanas e da crise hídrica são alguns dos exemplos mais notórios dessa indigência política.
Por falta de discernimento e articulação das ações de governo, perdeu-se a oportunidade de superar debilidades na relação com as permissionárias de telefonia celular (a qual exige uma nova legislação, iniciativa do executivo municipal) e do enterramento da fiação elétrica, em que São Paulo acumula um atraso monumental se comparada a outras metrópoles globais. No tocante ao contrato da prefeitura com o governo estadual e a SABESP, de fornecimento de água e esgotamento sanitário na capital, a municipalidade repetiu sua postura passiva, sem definir prioridades ou se equipar tecnicamente para formular planos e políticas na área, ao longo dos três primeiros anos da gestão. Apenas no último ano se logrou reverter em parte o déficit municipal nesse campo estratégico. Nesses e em outros exemplos de carência técnica e política do staff de governo, não obstante as boas intenções subjacentes, a responsabilidade é do prefeito, que nomeia seu secretariado e sua assessoria direta.
A derrota eleitoral, da forma como aconteceu no ano passado, não chegou a surpreender. Ainda mais se pensarmos que, como corolário das deficiências apontadas, a construção do programa de governo para sua reeleição foi absolutamente inconsistente. O que é uma lástima, sobretudo se pensarmos na perda democrática que a cidade sofreu com a chegada ao poder político municipal de um autêntico “gestor da enganação”, sem plano de governo, um lobista milionário franco-atirador que pesca nas águas turvas da política nacional. Esperemos que Fernando Haddad retome seu protagonismo e sua inteligência em prol de análises e propostas lúcidas para a cidade e o país. As forças progressistas lhe serão reconhecidas.
1. “Vivi na pele o que aprendi nos livros”, por Fernando Haddad
*Ricardo Gaspar é Professor do Departamento de Economia da FEA-PUC SP, pesquisador do Observatório das Metrópoles/SP e colaborador de Diálogos do Sul. Foi Assessor Especial da Secretaria do Governo Municipal da Prefeitura de São Paulo entre jan/2013 e dez/2016.