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Filme “Jukus” retrata intolerância e violência nas regiões mineiras da Bolívia

João Baptista Pimentel Neto

Tradução:

Não podia deixar passar a primeira projeção de Jukus (2018), de Rubén Pacheco outro esforço entusiasta daqueles que caracterizaram sempre o cinema boliviano. Trata-se de um filme honesto e digno, “imperfeito” no bom sentido, o de Julio García Espinoza.

Alfonso Gumucio*

Sempre senti o impulso do ver filmes bolivianos, e não o digo como primeiro historiador de nossa cinematografia, nem como crítico de cinema com quatro décadas a meia de exercício, nem como cineasta. Eu o digo como boliviano que se interessa por nossa produção cultural e que tem a certeza de que a verdadeira reserva moral que tem o nosso país está naqueles que produzem cultura.

Atenção: a origem etimológica da palavra “cultura” não se reduz às artes, mas sim ao digno processo de cultivar, e isso inclui desde uma peça de teatro até um luminoso pé de quinoa. Cultivar é, por definição, o contrário de extrair, por isso, a agricultura é o pólo oposto do extrativismo, embora a mentalidade extrativista às vezes se imponha na agricultura. 

Neste país dominado pelo extrativismo, admiro aqueles que cultivam valores humanos e correm riscos para desenvolver atividades tão pouco rentáveis, quase suicidas, como escrever livros, fazer filmes ou plantar árvores frutíferas. Primeiro cultivam valores e reafirmam convicções; por esse caminho tem andado o melhor do cinema nacional. 

Por isso, não podia deixar passar a primeira projeção de Jukus (2018), de Rubén Pacheco outro esforço entusiasta daqueles que caracterizaram sempre o cinema boliviano. Trata-se de um filme honesto e digno, “imperfeito” no bom sentido, o de Julio García Espinoza. 

Veja o trailer:

Foi um acerto do diretor e do roteirista situar o argumento de Jukus no ano de 1972 em Huanuni, em pleno auge dos preços do estanho e no período inicial da ditadura de Hugo Banzer (1997- 2001). Não se poderia situar um filme dessa natureza em 2017, quando os minérios tradicionais foram deslocados pelo extrativismo do gás, mas curiosamente a atmosfera mostrada pelo filme é já então de deterioro físico e moral, uma atmosfera de decadência e de violência, às vezes contida, às vezes expressada em frases ferinas, e às vezes em ações sangrentas.

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O fio narrativo principal é complexo, pois fala dos ladrões de minérios que roubam o Estado, mas também os trabalhadores honestos da empresa estatal. Os “jukus” ou “lobos” entram à noite na mina para roubar o minério que os mineiros deixaram ao finalizar sua jornada de trabalho. (Me chamou a atenção que não houvesse um terceiro turno, noturno, como costumava haver nas minas que eu conheci nesses anos). 

O conflito moral está marcado pelo protagonista, um jovem amigo de jukus que se nega a participar nos roubos porque seu pai (Luis Bredow) era guarda de segurança da mina e foi assassinado com um tiro pelos ladrões de minérios. Esse guarda de segurança — que se converte em narrador em “off” da história — pertencia a outros tempos e mal podia perceber a saída sorrateira dos jukus, e em uma tentativa para impedi-los, morre baleado, algo que marca o personagem principal para o resto de seus dias. As cenas em flashback mostram a relação que existia entre o protagonista quando era criança e seu pai (que poderia ser seu avô) e o legado de honestidade que ele lhe deixou.

Na trama, desenvolvem-se três eixos dramáticos que se entrelaçam em torno do tronco comum que é a violência e a intolerância.

Por um lado, o mais óbvio e violento: a segurança da empresa está manejada por pistoleiros que não duvidam em matar “lobos” quando os pegam. Liderados por um pistoleiro sádico, seu propósito é fazer desaparecer fisicamente todos os ladrões de minério. 

O segundo eixo é o desejo do jovem protagonista pela prostituta do povoado, a qual não pode ter porque não tem dinheiro. Aqui, o conflito sublinha a relação entre a violência e o poder: o protagonista é demasiado débil para competir com os que possuem essa mulher e suas fantasias de tê-la com ele na cama (que no filme são reiteradas mais de uma vez como sonhos molhados), não são senão seu desejo de ter mais poder e status social.

No terceiro eixo, que é o que de alguma maneira outorga ao filme um ar purificador, o casamento entre dois irmãos causa tal indignação à moral hipócrita do povo de Huanuni, que os cidadãos enlouquecidos lincham o casal em uma fogueira, como nos melhores tempos da inquisição. 

Esses três eixos estão cruzados transversalmente por uma atmosfera de intolerância e de violência física ou verbal que se manifesta desde as primeiras cenas do filme, quando o protagonista compra uma bicicleta e recebe das vendedoras um tratamento displicente, que é muito característico e “normal” em nosso país. 

A violência contida aflora nos olhares dos amigos “lobos” do personagem, que querem vingar, morte por morte, seus amigos assassinados pelos agentes da segurança da empresa mineira. E o conseguem, com a cumplicidade de um desses guardas de segurança interpretado em tom estridente por Juan Carlos Aduviri. Seu personagem, da mesma forma que algum outro é caricatural, sem sutileza (óculos escuros de mafioso, sobre atuado). 

Enquanto os episódios de violência se sucedem, o casal imortalizado pelo fogo (ela impecável de branco) não deixa de percorrer as ruas poeirentas da cidade nascida como acampamento mineiro, onde a silicose compete com as balas e as explosões de dinamite. Esse casal incestuoso é o símbolo da tolerância, que se opõe ao cotidiano da violência.

O longa-metragem não é, no entanto, um relato moral, mas sim uma história que faz pensar nas muito limitadas oportunidades de viver uma vida diferente da que tinham os jovens nos acampamentos mineiros, e nisso a referência ao filme “Viejo Calavera” de Kiko Russo é inevitável, embora o personagem do longa-metragem de Russo seja mais complexo, menos linear.

Talvez o elo mais fraco do longa-metragem de Rubén Pacheco seja precisamente o de ter personagens às vezes caricaturais e outras sem profundidade psicológica verossímil. E talvez a fraqueza mais notável seja a música, não por ser deficiente, mas porque está demasiado presente ao longo do filme, como que disputando lugar com o protagonista. Em compensação, no aspecto positivo, se destaca a fotografia de Milton Guzmán, trabalhada com muita sensibilidade e força. O uso da luz natural se sobressai nas cenas filmadas no final da tarde, quando o sol poente satura as cores.

Rubén Pacheco demonstra que o tema mineiro no cinema é inesgotável, e que as representações não têm que ser necessariamente heroicas nem exemplares. O cinema boliviano está em um novo momento de busca e de proposta, e isso é sadio, embora o público, demasiado domesticado pelas superproduções de Hollywood, lhe dê as costas. 

*Colaborador de Diálogos do Sul, de La Paz Bolívia


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

João Baptista Pimentel Neto Jornalista e editor da Diálogos Do Sul.

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