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Fim da farsa do impeachment

Paulo Cannabrava Filho

Tradução:

A farsa do impeachment chegou à meta demarcada. A presidenta Dilma Rousseff foi deposta. Uma morte anunciada, pois é um jogo de cartas marcadas. Que juízes são esses? As sentenças já foram pronunciadas, em alta voz e promovidas pela mídia, bem antes de iniciado o julgamento.

Paulo Cannabrava Filho*

Foto: Glória Fluguel
Foto: Glória Fluguel

Todos os personagens cumpriram a perfeição o rito. O rito e os prazos de um processo de impeachment previsto na Constituição. Se encheram de razoes para rechaçar o argumento de que praticaram um golpe de Estado.
Há muitas lições a aprender desse processo que pelo menos serviu para revelar as mazelas da política nacional, deixou claro o nível e as intenções das elites governantes. Vergonha registrada nos principais jornais do planeta.
A presidenta foi deposta. Na verdade, é necessário lembrar, que a presidenta sequer chegou a exercer o poder. Ganhou a eleição mas não conquistou o poder. Desde 1o de janeiro de 2015, primeiro dia de seu segundo mandato, já se via que não haveria condições de governabilidade. Dissemos isso aqui neste espaço na mesma semana da posse.
Advertimos que as forças que tradicionalmente conspiraram neste país, já estavam conspirando. Tal como no nosso passado de 1964 e recentemente em outros países era visível a armação de um golpe de Estado, a presença de agentes estrangeiros movendo instituições e organizações em conluio com a mídia conservadora.
Quando se iniciou o processo de impeachment na Câmara, por toda parte, entre a esquerda, e entre os que defendiam a democracia de todas as cores, a palavra de ordem era “temos que parar o golpe”. Advertimos que o golpe já estava dado, era tarde e irreversível dado a força acumulada pela reação. Dos 81 senadores, a palavra de ordem era “temos que parar o golpe”.
Irreversível exatamente porque a presidenta não conquistou o poder, não assumiu com um projeto alternativo para a condução da economia, não apelou ao apoio popular. Sequer conseguiu montar um núcleo de inteligência para ajuda-la a pensar o governo, não se utilizou de um sistema próprio de comunicação, nem sequer utilizou do direito de utilizar os meios de comunicação em cadeia nacional. Mais grave, não teve capacidade de detectar e denunciar a conspiração nem a espionagem em seu próprio gabinete.
É certo que não conseguiu maioria parlamentar nem na Câmara nem no Senado para governar. Também, como conseguir num ambiente com 35 partidos, a maioria  pequenos partidos criados com finalidade unicamente oportunista e fisiológica. Sem  existência de partidos programáticos? Outra questão que fica evidente nesse processo é a necessidade de uma reforma política. E que a classe política crie partidos verdadeiros, partidos ideológicos e programáticos. e que além da sagrada fidelidade partidária que as alianças se façam em torno de programas.
Na evolução do processo a presidenta colocou-se na defensiva e deixou-se encurralar a ponto de ficar completamente isolada. Sem governo, com abandono dos aliados, inclusive de seu próprio partido. Quando acordou já era tarde, todos os espaços já estavam ocupados.

O rito e o exibicionismo

O processo evidenciou também a pobreza dos argumentos dos senadores da oposição, todos eles repetindo as mesmas acusações, fazendo os mesmos questionamentos, obrigando  a presidenta a se repetir incontáveis vezes. Uma perda de tempo sem justificativa se não a de tentar cansar a presidenta. Esta no entanto, se revelou de grande energia, muito calma e muito bem preparada. Na Câmara Federal, durante o processo de aceitação do pedido de impedimento, ficou explicito e exibicionismo dos deputados e a inconsistência das acusações. O mesmo provincianismo se repetiu no Senado da República.
Dos 81 senadores, 48 senadores se inscreveram para falar, por cinco minutos cada um. A presidenta tinha prazo ilimitado para as respostas, porém tratou de manter dentro do prazo. A sessão começou às 9:30 e terminou em torno da meia noite da segunda-feira 29 de agosto. Esperava-se de alguns, como o candidato derrotado por Dilma na eleição, o senador Aécio Neves, um pouco mais de consistência em seus argumentos, afinal é presidente do PSDB e candidato potencial às eleições de 2018. Bateu na mesma tecla. Um casuísmo jurídico sem consistência, a busca de fatos fora do contexto.
Quase todas as perguntas –pelo rito deveriam ser perguntas- eram peças acusatórias. A acusação insistia na ilegalidade de três decretos e um plano de financiamento da safra agrícola. Absolutamente inconsistente uma vez que ela pode demonstrar que atuou de acordo com a Constituição e a Lei Orçamentaria. Que não houve crime de responsabilidade, nem danos ao erário é incontestável. Pela Constituição só por crime de responsabilidade um presidente pode ser condenado e não houve nenhum crime. Condenada pelo conjunto da obra, segundo Aécio Neves.
Pelo conjunto da obra, só o povo tem o direito de julgar o presidente numa eleição, respondeu a presidenta. A defesa insistiu que a perda da maioria parlamentar não justifica o afastamento de um presidente no regime presidencialista, que isso é um sério precedente que poderá se repetir nos Estados e Municípios. Deputados e vereadores que conseguirem maioria nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais estarão animados a derrubar governadores e prefeitos.
Foi a própria presidenta Dilma, em sua alocução de defesa, quem melhor resumiu a situação ao afirmar que “as provas produzidas deixam claro e inconteste que as acusações contra mim dirigidas são meros pretextos, embasados por uma frágil retórica jurídica. … São pretextos, apenas pretextos, para derrubar, por meio de um processo de impeachment sem crime de responsabilidade, um governo legítimo, escolhido em eleição direta com a participação de 110 milhões de brasileiros e brasileiras. São pretextos para viabilizar um golpe na Constituição. Um golpe que, se consumado, resultará na eleição indireta de um governo usurpador”.

O que se perde

O senador Roberto Requião, do PMDB do Paraná foi um dos poucos que reforçou os argumentos da presidenta de que o que está em jogo não é só um mandato, um cargo de presidente. E foi o único que apontou o que realmente está por trás de tudo isso, ou seja, os interesses e forças estrangeiras.
O que está em jogo é a democracia, são as conquistas sociais, são as riquezas do Pré-Sal. Nessa mesma linha os poucos parlamentares contrários ao impeachment denunciaram que o que está em jogo é o salário mínimo,  as conquistas sociais, a inserção do país no cenário internacional, os BRICS, o MERCOSUL, a Unasul, o equilíbrio fiscal sem abrir mão do social, a auto estima recuperada do povo.
No dia seguinte, a sessão abriu às 10:30 com discurso dos advogados de acusação, Janaína Pascoal e Miguel Reale Junior y o da defesa, Eduardo Cardoso, em que cada um falou por uma hora e meia. A sessão reabriu em torno das 14 horas depois de um pequeno intervalo para o almoço com 63 senadores inscritos para falar, e terminou na madrugada. A votação final ficou adiada para o dia seguinte. Na quarta-feira, retomaram os trabalhos pouco depois da onze horas. Para cumprir com o rito, o presidente da sessão leu um resumo do ocorrido nos cinco dias e as ponderações da defesa e da acusação. Em seguida, quatro senadores falaram a favor do impeachment e outros quatro contra, por cinco minutos cada um.
Só depois disso, e das considerações do presidente da sessão, o presidente do Supremo Tribunal, Ricardo Lewandowisk  é que teve início a votação. De novo a sensação de uma imensa perda de tempo. Como imaginar que alguém pudesse mudar de posição? O PT ainda tentou separar na votação a questão da perda do mandato e da cassação dos direitos políticos. Depois de mais de uma hora de discussão o plenário aceitou.
No início do processo no Senado, 59 senadores votaram pela admissibilidade do processo de impeachment. Por isso mesmo, nenhuma surpresa nos discursos da oposição nem do resultado da votação final. Colocado em votação o primeiro quesito, condenação e deposição da presidenta, houve 61 votos favoráveis, mais dos dois terços necessários, nenhuma abstenção e apenas 20 votos favoráveis a manutenção do mandato. Em seguida foi colocada em votação a punição por perda de direitos políticos por oito anos. Mais oito discursos, quatro a favor e quatro contra. Computados os votos, 42 votos votaram pela perda, 33 pela manutenção e três abstenções. Como não alcançou os dois terços necessários, Dilma Rousseff, agora cidadã, permanece com seus direitos políticos.
E aqui não se pode deixar de registrar a incongruência dessa decisão dos senadores arvorados em juízes. Se não há punição, como previsto na lei, é porque reconhecem que não houve crime. Se não há crime não ha razão para o impeachment. Fica portanto nula a farsa do impedimento.

Encerramento e continuidade

Encerrada a sessão, foi convocado o Congresso Nacional para a as 16 horas para a sessão de dar posse ao vice-presidente e presidente em exercício Michel Temer, um cidadão sobre quem pesam acusações de ter cometidos crimes de responsabilidade muito mais grave que os imputados à presidente deposta.
Impressionante como a acusação reiterou os mesmos casuísmos sem consistência: a presidenta cometeu crime de responsabilidade fiscal por três decretos sem autorização do Congresso e um crédito agrícola. Reali Junior fez um discurso político atacando o conjunto da obra, pondo a culpa no governo pela crise econômica e consequente desemprego. Um absurdo. A crise tem causas muito mais complexas com muito componente externo (desvalorização das commodities e do petróleo) e da paralização do país provocada pela insegurança jurídica provocada pela oposição e a usurpação do governo.
A defesa desmontou um a um todos os argumentos, comprovando com a legislação e pareceres que a presidenta atuou de acordo com a lei. Concluiu emocionalmente apelando à consciência dos senadores para que não condenem uma inocente, apontando como isso contribuirá para denegrir a imagem do país e o que significará na história. Foi uma defesa realmente brilhante, mas, como fazer furo na água, não muda o já construído.
Recordaram que a sessão do Senado que em 31 de março de 1964 declarou vaga a presidência da República estando o presidente João Goulart em território nacional foi declarada nula por esse mesmo Senado em atitude de reparação histórica. Advertiram que estão ocorrendo no mesmo erro diante da história. Esses mesmos parlamentares afirmam que continuarão lutando para anular a presente sessão do Senado, para que não seja necessário um outro pedido de desculpa como reparação de erro histórico.
Mais que uma demonstração de coragem e firmeza de caráter, Dilma  se mostrou muito preparada, respondendo com objetividade e conhecimento profundo das questões de governo. Porém, já fora de tempo. O que ocorrerá agora?
A presidenta ainda pode recorrer ao Supremo Tribunal Federal, mas não muda o fato do governo usurpador continuar desgovernado, ou seja, não só desmontando as realizações do governo deposto, como aceitando clausulas que violam a soberania nacional e barram as alternativas de desenvolvimento autônomo em tratados de livre comércio com Estados Unidos.
Durante o dia e na manhã seguinte à primeira sessão de julgamento do Senado ocorreram manifestações de protesto nas principais cidades do país. Na capital de São Paulo paralisaram as principais vias de acesso à cidade erguendo barreiras de pneus queimados. Os movimentos sociais prometem que não darão trégua. Todas as manifestações fortemente reprimidas prenunciando que muita repressão está por vir.
Mas o pior é que quando falamos em insegurança jurídica, é com base em que é o respeito à Constituição é que garante a convivência entre os contrários. Perdeu-se essa convivência na demonstração do baixo nível dos parlamentares, principalmente da Câmara Federal, advertido em praticamente todo o mundo.
O foco da luta deve ser pelo respeito às leis, única garantia para o funcionamento da democracia, e a defesa da soberania nacional.
*Jornalista e editor de Diálogos do Sul


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Paulo Cannabrava Filho Iniciou a carreira como repórter no jornal O Tempo, em 1957. Quatro anos depois, integrou a primeira equipe de correspondentes da Agência Prensa Latina. Hoje dirige a revista eletrônica Diálogos do Sul, inspirada no projeto Cadernos do Terceiro Mundo.

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