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Francisco: uma liderança no deserto

Revista Diálogos do Sul

Tradução:

O papa Francisco beija uma criança deficiente
O papa Francisco beija uma criança deficiente

Esteban Valenti*

A política está em crise, é uma verdade mundial aceita. Cada dia as pesquisas sérias demonstram um crescente desprestígio dos políticos, a cidadania tem perdido a confiança em que a política de uma ou outra maneira ajudará suas vidas. Pelo contrário a sociedade civil se separa do mundo da política.

É um tema que requer uma analise profunda e extensa que deixamos para outra oportunidade. Uma das expressões dessa crise é a falta de líderes mundiais, de homens e mulheres que sejam um ponto de referencia para as sociedades, para seu próprio país e transcendam fronteiras.

Mais pronunciada ainda é a crise de lideranças. Não existem hoje no mundo líderes de importância, referencias políticas, ideológicas, morais de uma certa importância. Um que se perfila e um que se extingue. Me refiro a Francis e a Nelson Mandela. São as únicas personalidades que se destacam.

Barak Obama foi tragado pela história e pelo sistema. Pode-se fazer a lista de seus fracassos e suas renúncias, além de carregar com o peso de sua nação e sua inegável vocação imperial.

Europa é o maior deserto. A política e governante mais influente é Angela Merkel, tem hoje no velho continente mais poder que Hitler em seu apogeu militar, e, não moveu um soldado, nem um tanque, nem uma ideia. Seu poder é o dos euros, nada mais, o mercado em sua forma mais impiedosa, o sistema bancário devorador. Merkel é o flagelo dos países em crise, que são muitos e que estão afundados até o pescoço.

Putin, não é referencia sequer dentro da Rússia. Devolveu a ela um certo protagonismo internacional, é a máxima expressão do poder puro e total, mas ninguém no planeta o toma como referencia política e menos ainda ideológica ou moral.

Se algum dos leitores, sem ajuda do Google recordar os nomes dos três principais dirigentes chineses, é por pura casualidade. O país com os mais espetaculares resultados econômicos e sociais não líderes carismáticos que se projetem. O último foi Deng Xiaoping, mas por múltiplos motivos ficou confinado a seus limites nacionais.

No mundo muçulmano não emergem figuras. As revoluções triunfantes, frustradas, derrotadas em muitos países nos mostram uma comunidade de nações dispersa, uma cultura profundamente fraturada, democracias que não terminam de nascer, revoltas contra tiranias substituídas por outras e um grupo de monarquias ou califados ancorados no século XII. Os trilhões de petrodólares não geram, certamente, lideranças mas sim dívidas e favores, nada mais.

Na América Latina, há mudanças importantes. Há figuras que lideram seus processos nacionais, mas, já não existem figuras com projeção universal. O mais próximo, porém longe é Lula.

Na África sobra Mandela. Nada mais, nem sequer aquelas figuras anticoloniais e representantes do africanismo que foram expressão da revolta de um continente oprimido e explorado por outras nações.

Mandela, a liderança solitária
Mandela, a liderança solitária

Observa-se um verdadeiro deserto mundial, ao que há que acrescentar um outro aspecto: a falta de tensão, de contradições que constituem o clima propício para o surgimento de determinados líderes. O fim da guerra fria, das aventuras revolucionarias e sua substituição por uma rede de guerras localizadas e do terrorismo não gera por certo grandes lideranças, nem nada perto disso. E não falo com nostalgia, comprovo.

Nesse cenário creio que há que analisar o papel emergente do papa Francisco. Em só quatro meses de seu pontificado conseguiu concentrar uma grande atenção da mídia e das pessoas. É o primeiro a emergir como uma referencia, um líder, neste caso espiritual.

Até agora a igreja católica estava submersa nessa mesma crise de referencias que a política, que os governos. Parecia mais a um reino transnacional com uma mensagem evangélica que a uma religião que se concentra nos valores, no povo de Deus, em atrair com o exemplo e com as virtudes que predica e em muitos casos não pratica.

Envolvido em escândalos financeiros, de pedofilia, de intrigas palacianas, o seu núcleo duro mantinha seu imenso aparato mundial, mas cada dia mais distanciado dos problemas de nosso tempo, de seus fieis e de seu próprio exercito de sacerdotes. Um reino acometido de quase que os mesmos males que os países onde nasceu a instituição, na Europa. Era mais o Vaticano que a igreja católica. E chegou Francisco.

Parecia conduzida pela frase de Coríntios 1, atribuída a Pablo de Tarso “O reino de Deus não consiste em palavras, sim em poder”.

Como Francisco se define, é um padre da rua. E a eleição como papa, longe de distanciá-lo de suas práticas como arcebispo da Argentina, consolidaram-no nesse aspecto. No princípio foram detalhes, mas nestes mais de 100 dias foi afirmando e confirmando Não só os sapatos comuns com que percorria as ruas de Buenos Aires, ou a maleta com seus objetos pessoais que levava ao subir em um avião comum de Alitalia, ou sua negativa de viver no cerco de seu real apartamento no Vaticano. É muito mais.

O papa e a segurança, mais férrea e total, eram quase que sinônimos depois do atentado contra João Paulo II na praça São Pedro. A insegurança e o contato direto com seu povo, com os fieis e com os outros mas que são convocados por este personagem novo e renovador, são uma constante. Em Roma, no Rio de Janeiro, em cada aparição. E o perigo, de deixar a proteção do papamóvel blindado, de viajar em meio de potentes autos escuros em seu automovelzinho cinza entre as multidões do Brasil, já construiu não só uma imagem mas um épico. O papa se arrisca, confia na gente, e que ocorra o que Deus quiser. Num mundo de extremos, de dirigentes blindados, ele se expõe. Agora será muito difícil abandonar essa atitude e não creio que Francisco tenha alguma intenção de fazê-lo. Está dando excelentes resultados e ademais têm uma sólida trajetória nesse sentido.

Porém onde mais se expôs o novo papa foi em seus discursos, em suas declarações à imprensa. Não é só através das encíclicas papais que fala um papa, fala de maneira muito mais contundente em sua vida cotidiana e em seus contatos permanentes com o mundo, em suas missas e seus discursos. E Francisco não perde oportunidade de comunicar. Já não são mensagens, já não é uma postura, é toda uma visão que ele transmite.

Essa combinação de sua vida pessoal, de seus gestos, de sua renúncia aos ouropéis e as imagens do poder terrenal, com seu discursos constante e permanente em favor dos mais débeis, dos pobres, dos que protestam e não se resignam da injustiça, a favor da Utopia… em um mundo de realismo feroz e não precisamente mágico, constituem uma mensagem muito forte. Como é um forte na história da igreja o pronunciamento sobre os homossexuais. Ocupa as primeiras páginas da imprensa por sua ousadia.

Francisco declarou que foi morar no mesmo alojamento em que residem os que chegam ao Vaticano de visita, a Casa Santa Marta, onde dorme, toma café da manhã, almoça e ceia, porque dessa maneira fala com os bispos e os sacerdotes e sente o pulso de sua igreja. É um método e uma mensagem. A pequena mudança introduzida nas autoridades da outrora todo-poderosa cúria romana e em particular do secretário de Estado, faz com que agora os bispos se dirijam diretamente ao papa, sem passar por algum filtro. É uma reforma profunda e radical.

O papa saiu em disputa dos corações, das almas e a moral de milhões de pessoas no mundo, particularmente dos jovens com uma mensagem de valores, não só proclamados como evangelho  mas como uma forma de vida.

Eu sou ateu, fui católico praticante, não concordo com pontos de vista da igreja católica sobre a vida familiar, social, sexual, as diversidades e é possível que essas diferenças se mantenham, mas prefiro mil vezes um mundo em que uma grande instituição e um líder se destaque por sua sensibilidade social, por promover valores de fraternidade, de solidariedade, de irmandade entre os seres humanos, que um mundo em que todos nos precipitamos pelo tobogã da decadência de todos os valores. E Francisco se destaca de forma constante desde há quatro meses, com um discurso e uma sensibilidade social progressista. E nem por isso tem que se apropriar do alheio, é a mensagem original da igreja católica em suas origens, mas também foi um impulso que se foi esgotando, dispersando, confundindo-se nos ouropéis do poder.

Prefiro mil vezes a João XXIII que a Pio XII ou inclusive que a Ratzinguer. Não por simpatia, mas porque o mundo necessita tensões morais. Prefiro discutir, dissentir desde a esquerda, desde uma visão laica que luta por um mundo mais jutos, mas fraterno, mais decente, que conviver com todos no lodo bem lambuzados. Não gosto do consolo da decadência compartilhada.

Teremos que nos perguntar se a própria esquerda não deve retomar a rua e sair bastante do palácio. A rua do contato com as pessoas, a rua da audácia em suas ideias e da procura na realidade, mas também nos sonhos milenares de um mundo mais justo. A mensagem de Francisco é também contra a resignação, todas as resignações.

Milhões de jovens e não tanto receberam, recebemos nestes dias uma catarata de mensagens papais com sentido franciscano, de seu fundador, do “poverello de Asis” e, o mundo político – dos que detêm o poder, dos que temem as folhas e as multidões quando se agitam, dos que se falam dentro de palácios – deve estar incomodado. Eu não me sinto incomodado, em absoluto, todo o contrário.

Gosto, me desafia intelectualmente, me dá esperanças. Para alguns será a voz de Deus, e têm todo direito, para outros é a voz de um homem que desde um trono elegeu esse caminho, essa linguagem, essas atitudes e nos interpela a todos.

*Jornalista, escritor, diretor de Uypress e Bitácola. Uruguai. Ex coordenador geral da IPS


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

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