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Fundeb: uma breve avaliação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica

Recurso não tem contribuído para desenvolver educação básica pública. Entre 2007 e 2017, o número de matriculas nas escolas públicas caíu, enquanto ensino privado se expandiu
Nicholas Davies
Diálogos do Sul Global
Niterói

Tradução:

Este texto pretende fazer uma breve avaliação do que foi o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) criado pela Emenda Constitucional (EC) nº 53, em 2006, e com vigência prevista de 2007 até o final de 2020. Esta avaliação se faz necessária porque muitos tiveram a expectativa de que o Fundeb iria manter e desenvolver a educação básica e valorizar os profissionais da educação e, porque estão em tramitação no Congresso Nacional propostas de emenda constitucional que pretendem tornar o Fundeb permanente.

Antes de examinar o Fundeb, convém esclarecer que o financiamento da educação pública não começou com ele, pois a Constituição Federal de 1988 prevê que a União deve aplicar no mínimo 18% dos impostos na Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE) e os Estados, Distrito Federal e prefeituras, no mínimo 25% dos impostos em MDE. Tal vinculação, por sua vez, foi subvinculada pela EC nº 14, de 1996, que determinou, até 2006, a aplicação de 15% dos impostos no ensino fundamental pelos Estados, DF e prefeituras, e o equivalente a 5,4% dos impostos pelo governo federal na universalização do ensino fundamental e erradicação do analfabetismo. 

Além disso, a EC nº 14 criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização dos Professores (Fundef) com vigência também até 2006 e que era uma conta única, estadual, formada por 15% de alguns impostos estaduais e municipais, e repartida entre o governo estadual e as prefeituras de cada Estado, de acordo com o número de matrículas no ensino fundamental regular. A participação federal no Fundef, assim como no Fundeb, só ocorreria por meio de uma complementação se o valor per capita (matrícula) em cada Estado não alcançasse o valor mínimo nacional fixado pelo governo federal.

Assim como o Fundef, o Fundeb, ao contrário do que muitos pensaram e pensam, não foi nem é a redenção da educação básica, pois apenas constitui uma conta única, formada pela contribuição de 20% de vários impostos do governo estadual e prefeituras, sendo repartida entre estes governos com base no número de matrículas municipais na educação infantil e ensino fundamental e matrículas estaduais no ensino fundamental e ensino médio e pesos diferentes atribuídos a estas matrículas. 

Em outras palavras, o Fundeb basicamente distribui, entre governo estadual e prefeituras, recursos já vinculados constitucionalmente antes de sua criação. Isso significa que as receitas extras (os ganhos) de alguns governos com o Fundeb resultam de perdas de outros governos em âmbito estadual. Portanto, nem todos ganharam ou ganham com o Fundeb, sobretudo quando o Fundeb estadual não recebe complementação federal para garantir o valor mínimo nacional, o que acontece quando em cada unidade federativa o valor per capita (matrícula) não alcança o valor mínimo nacional, fixado sem qualquer referência a custo-aluno-qualidade. 

Em síntese, o Fundeb trouxe e traz pouco dinheiro novo para o sistema educacional como um todo, embora talvez milhares de prefeituras tenham ganhos expressivos com ele. A complementação (10% do total nacional) é o único dinheiro novo para o sistema nacional como um todo, pois a contribuição dos Estados, DF e prefeituras compreende 90% do total nacional. A complementação é pouco significativa em termos nacionais, embora muito importante em centenas ou milhares de prefeituras do Nordeste e do Pará. Todos os governos estaduais e centenas (talvez milhares) de prefeituras perdem com o Fundeb. Portanto, embora a proposta do Fundeb permanente tenha méritos, os seus defensores equivocam-se ou mentem quando dizem que o fim do Fundeb seria a ruína da educação, pois desconhecem ou fingem desconhecer o fato de que todos os governos estaduais e também milhares  (talvez duas mil) de prefeituras não mais terão perdas com o Fundeb.

Recurso não tem contribuído para desenvolver educação básica pública. Entre 2007 e 2017, o número de matriculas  nas escolas públicas caíu, enquanto ensino privado se expandiu

FUNDEB / Divulgação
Um dos problemas do Fundeb é a inconsistência da sua legislação

Inconsistência da legislação

Um dos problemas do Fundeb é a inconsistência da sua legislação. Por exemplo, a EC nº 53 define que ele se destina a manter e desenvolver a educação básica pública, porém a Lei nº 11.494/2007, que regulamentou o Fundeb, permite que seus recursos sejam utilizados em creches, pré-escolas (estas “apenas” pelos quatro anos iniciais, vigência prorrogada posteriormente até o final de 2020) e instituições de educação especial confessionais, filantrópicas e comunitárias sem “fins lucrativos” e conveniadas com o Poder Público. Tal permissão foi incluída pela Câmara dos Deputados no projeto de lei de conversão da medida provisória nº 336, que regulamentou o Fundeb em 2006, mas que não constava dela. Esta inclusão, além de nefasta do ponto de vista do interesse público, é inconstitucional por duas razões: uma é que tais instituições não são públicas e o Fundeb se destina a financiar apenas a educação básica pública presencial. Outra é que o inciso II do Artigo 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estabelece que o Fundeb será distribuído de acordo com as matrículas nas redes estaduais e municipais. Ora, tais creches, pré-escolas e instituições de educação especial não integram tais redes, embora façam parte dos sistemas estaduais ou municipais de ensino, conforme definidos na LDB. 

Além de inconstitucional, a inclusão demonstra o peso dos interesses privatistas no Congresso Nacional e o descompromisso dos governos com a educação infantil e especial estatal. Os privatistas foram beneficiados ainda com a permissão de os profissionais do magistério da educação básica pública cedidos a tais instituições serem considerados como se estivessem em efetivo exercício na “educação básica pública” (Art. 9º, § 3º). Além destas inconstitucionalidades, a Lei nº 11.494 é internamente contraditória, pois o inciso I do seu Art. 23 veda a utilização dos recursos do Fundeb no financiamento das despesas não consideradas como de manutenção e desenvolvimento da educação básica, conforme o Art. 71 da LDB. Ora, embora tais instituições filantrópicas, confessionais e comunitárias possam receber recursos públicos (Art. 213 da Constituição Federal de 1988 e Art. 77 da LDB), desde que atendam a uma série de requisitos (cujo cumprimento e sobretudo fiscalização deixam muito a desejar, conforme revelam as denúncias que vez por outra aparecem na imprensa), não podem ser classificadas como MDE. Um dos requisitos é que tais instituições ofereçam atendimento educacional gratuito a todos os seus alunos. Portanto, os recursos do Fundeb, como são classificados como MDE, não poderiam ser destinados a tais instituições. 

Uma fragilidade do Fundeb está também em não possibilitar objetivamente a valorização do magistério (pelo menos no sentido de melhoria salarial), em consequência das perdas de todos os governos estaduais e de prefeituras  com ele, por conta de sua lógica e não levar em conta a totalidade dos recursos vinculados à educação (a receita com o Fundeb e os impostos vinculados à MDE que não entram na contribuição para o Fundeb). Se um governo contribui com R$ 10 milhões para o Fundeb e recebe dele R$ 5 milhões, o mínimo de 60% destinado à remuneração dos profissionais do magistério será calculado sobre uma receita menor do que foi a contribuição. É óbvio que, apenas com base na receita, será impossível haver valorização. Tal fragilidade é confirmada pelo fato de o MEC nunca ter divulgado estudo que comprove que o Fundeb possibilita (com o mínimo de 60%) a valorização do magistério ou dos profissionais da educação.

Outra debilidade foi não manter nem desenvolver a educação básica pública, pois, segundo os Censos Escolares do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Pedagógicas Anísio Teixeira (INEP), entre 2007 e 2017 caiu o número de matrículas  estaduais (-5.704.486, ou -26%) e municipais (-1.429.275, ou -5,8%) na educação básica, porém o de matrículas privadas cresceu 1.540.858 (+21%) entre 2006 e 2017. O percentual de queda estadual variou desde o mínimo de -6,9%, no Amazonas, até o máximo de -46,8%, no Rio de Janeiro. A única rede estadual que teve aumento foi a do Acre. As matrículas municipais, por sua vez, diminuíram em 13 Estados, sendo as redes municipais de oito Estados do Nordeste as que mais caíram em termos percentuais, o que chama atenção sobretudo porque a maioria, ou pelo menos um grande número de suas prefeituras, teve e tem receitas adicionais expressivas por conta da complementação federal e perdas dos governos estaduais para as prefeituras. No entanto, em 13 Estados elas cresceram, de um mínimo de +0,05% (Paraná) até um máximo de +99,4% (Roraima). Já o número de matrículas privadas cresceu em 23 Estados, variando do mínimo de 2,2%, em Minas Gerais, até o máximo de 143,2%, em Roraima.  Apenas em quatro Estados o setor privado diminuiu.  

Queda das escolas públicas e da educação no campo 

Basicamente, os censos e resumos técnicos do INEP e outros textos dizem que a evolução das matrículas se explica pela transição demográfica (queda da taxa de natalidade) e pela melhoria do fluxo escolar (por meio de classes de aceleração de aprendizagem, por exemplo). Sem negar a importância destes fatores, acredito que ações deliberadas de governos estaduais e municipais tiveram muita importância em tal evolução negativa, por várias razões. Uma é que a redução da taxa de natalidade é gradual, não abrupta, e, portanto, para este fator ter muita importância a queda do número de matrículas teria de ser também gradual, porém, o que se observa são diminuições grandes (sobretudo estaduais), inclusive de um ano para outro. Outra é que, se o argumento da transição fosse tão importante, a queda das matrículas estaduais e municipais seria mais ou menos semelhante em todas as regiões e redes ou sem enormes diferenças entre elas, o que não aconteceu.  

Sem desconsiderar possíveis erros ou falsificação de dados no preenchimento dos censos pelas escolas e secretarias municipais e estaduais, acredito que se deve considerar também tais ações deliberadas dos governos para explicar diferenças tão grandes nos dados. Isso pode ser demonstrado na evolução das matrículas rurais, sobretudo as municipais, que diminuíram 1.393.713 entre 2007 e 2017, redução concentrada no Nordeste, responsável pela queda de 1.097.507 matrículas (78,7% do total). Tal resultado se deve muito provavelmente ao fechamento de escolas do campo (também chamado eufemisticamente de “nucleação” de escolas rurais), de 17.512 no Nordeste e 26.816 no Brasil, sendo o percentual do Nordeste (65,3%)  proporcionalmente muito superior ao das outras regiões. É pouco provável que tal declínio rural se explique com base em queda da taxa de natalidade, mas sim em ação deliberada de milhares de prefeituras Brasil afora, pois o número de matrículas municipais rurais caiu em todas as regiões.

Também o número de escolas estaduais e municipais diminuiu de 2007 a 2017, respectivamente, -2.595 (-7,8%) e -19.555 (-14,8%), porém o de privadas (2006 a 2017) cresceu 4.491 (+12,6%). Um aspecto que chama atenção é a queda nacional do número de 19.555 escolas municipais ter se concentrado no Nordeste, com redução de 16.123 (82,4% do total da queda). O setor privado, por sua vez,  expandiu-se em 19 Estados, desde o mínimo de +0,4% (Santa Catarina), até o máximo de +276,9% (Roraima). No entanto, em 8 Estados, a rede privada diminuiu, desde o mínimo de -1,6% (Minas Gerais) até o máximo de -27% (Espírito Santo). Em termos absolutos, os cinco Estados com maior crescimento privado foram São Paulo (+1.718), Rio de Janeiro (+1.011), Rio Grande do Sul (+748), Pará (+330)  e Bahia (+303).

Conclusão

O Fundeb trouxe pouco dinheiro novo para o sistema educacional como um todo, tendo sido, na verdade, apenas uma redistribuição, entre o governo estadual e as prefeituras. 

No que se refere à complementação federal, ela foi pouco significativa em termos nacionais, porém bastante significativa para muitas prefeituras de Estados que não conseguiam alcançar o valor mínimo nacional.  

A valorização dos profissionais do magistério pretendida pelo Fundeb, por sua vez, é frágil porque a lógica do Fundeb, assim como a do Fundef, provocou e provoca perdas de receitas em todos os governos estaduais e muitos municipais, embora milhares de prefeituras tenham tido ganhos com o Fundeb. 

Por fim, o Fundeb, apesar de ser apresentado como um fundo para manter e desenvolver a educação básica pública, não contribuiu para isso, pelo menos no sentido de número de matrículas e estabelecimentos estaduais e municipais, que diminuíram de 2007 (primeiro ano do Fundeb) a 2017, enquanto o número de matrículas e estabelecimentos privados cresceu entre 2006 e 2017.  

Nicholas Davies, Professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Nicholas Davies

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