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Estudo realizado pelo Brasil de Fato mapeia interações em redes sociais em torno do termo em países da América Latina
Por Rute Pina, no Brasil de Fato
“Somos contra a ‘ideologia de gênero’ porque ela busca distorcer a mente dos nossos filhos, confunde as crianças e mete na cabeça delas conceitos equivocados de sexualidade.”
A declaração poderia ter sido de qualquer manifestante que estava no SESC Pompeia, em São Paulo (SP), contra uma conferência da filósofa estadunidense Judith Butler no Brasil no início deste mês
Na ocasião, milhares de peruanos saíram às ruas em defesa da família e contra a educação sexual nas escolas, em um processo semelhante ao que ocorre em outros países na América Latina. A mobilização teve apoio de setores religiosos e parlamentares.
Um levantamento feito pelo coletivo Actantes, em parceria com o Brasil de Fato, analisou as ocorrências dos termos “Ideologia de Gênero” em páginas de Facebook de 1º de agosto a 20 de novembro. Além do Brasil e Peru, o termo teve destaque no Uruguai, Paraguai, Equador, Chile, Bolívia, Costa Rica e Panamá.
Grafo acima mostra interações na América Latina em torno do termo “ideologia de gênero”; em verde claro, temos o principal grupo formado no período, que reuniu as principais páginas da campanha “#ConMisHijosNoTeMetas”; em verde água, temos a nova direita brasileira, com articulações em torno de Eduardo Bolsonaro, MBL e Frota; no terceiro maior grupo, em rosa, estão páginas progressistas que representam a reação ao debate.
O levantamento também explicitou a aproximação temática entre a nova direita e os grupos evangélicos e católicos. Eles têm na agenda a pauta da defesa da família e dos valores tradicionais. A pesquisa encomendada pelo Brasil de Fato mostra as palavras mais utilizadas nas redes nesse contexto:
Retrocessos na Educação
Em todo o continente, as publicações contrárias à “ideologia de gênero” nas redes sociais têm em comum as críticas aos planos de educação e o boicote a instituições, empresas, artistas e intelectuais julgados como promotores da diversidade sexual.
Por causa da pressão das mobilizações que ocorreram no país, no final do agosto, a Suprema Corte de Justiça do Peru anulou o enfoque à igualdade de gênero no currículo escolar de 2017. Com isso, o governo peruano recolheu os novos exemplares de livros didáticos. As edições haviam sido distribuídas há pouco menos de seis meses em mais de 11 mil escolas públicas do país.
Os livros foram alvo de uma ação popular encabeçada pelo coletivo Padres en Acción [Pais em Ação]. A ministra da Educação à época, Marilú Martens, foi destituída do cargo. Ela defendia a resolução ministerial que inseriu no glossário do currículo escolar palavras como igualdade de gênero, sexualidade e orientação sexual.
Liz Medrano, da Marcha Mundial de Mulheres do Peru, explicou que as mobilizações começaram a tomar corpo em novembro de 2016, com a criação da Coordinadora Nacional Pro Familia [Coordenação Nacional Pró-Família], formada por grupos conservadores e entidades religiosas como a Alianza Cristiana y Misionera [Aliança Cristã e Missionária] e o Movimiento Misionero Mundial [Movimento Missionário Mundial], cujo fundador, Rodolfo González, é proprietário da Bethel Televisión, cadeia televisa peruana religiosa de sinal aberto, que fez campanha abertamente contra a reforma curricular, como é possível ver no vídeo abaixo (em espanhol):
“É sabido que os organizadores desta campanha são líderes de igrejas cristãs, radicais e fundamentalistas no Peru, que agora integram a Coordenação Nacional Pró-família”, diz Medrano.
Mas, para a militante feminista, as mobilizações no Peru também revelaram a falta de conhecimento da população sobre os estudos de gênero: “A única resposta que te davam quando se perguntava o motivo pelo qual estavam se mobilizando era que o governo — impulsionado pela esquerda peruana e pelos movimentos de lésbicas, de gays e transsexuais — tinha interesse de ‘homossexualizar’ nossos alunos, tirar o domínio dos pais para convertê-los em homossexuais através do novo currículo”.
Medrano afirmou ainda que as conquistas concretas do conservadorismo mostram a influência direta dos grupos religiosos. “Vale ressaltar que o Peru é um estado laico somente na teoria. Os resultados de agosto nos permitiram reafirmar que não: não somos um estado laico. A opinião da Igreja Católica (e de outras igrejas) tem um grande peso sobre as decisões políticas”, adicionou a feminista.
Conceito distorcido
Manifestações contra a “ideologia de gênero” também foram convocadas no Equador em outubro deste ano. No país, o alvo mais recente foi a proposta da lei de prevenção e erradicação da violência de gênero contra as mulheres.
Mas a professora da Universidad Central del Ecuador Soledad Varea ponderou que o discurso está presente no país desde 2004, pelo menos, quando começam as discussões do Código Orgânico de Saúde — um conjunto de leis que englobavam os direitos sexuais e reprodutivos e permitiam o acesso a métodos anticonceptivos e à Pílula do Dia Seguinte.
A influência conservadora também foi marcante no contexto das discussões constitucionais em 2008. Na época, grupos autointitulados pró-vida elegeram diversos representantes para redigir a nova Constituição do país, inclusive dentro do Alianza País, partido governista de esquerda, e inseriram, na Carta Magna, o que no Brasil chamamos de direitos do nascituro.
“Existiu um lobby político para que, dentro da última Constituição, não apenas se excluísse o direito ao aborto e a métodos que dizem respeito ao direito que mulheres têm de decidir quando e quantos filhos vão ter, como também incluiu um artigo que protege a vida desde sua concepção”, contou Varea.
Para a professora equatoriana, o uso da expressão “ideologia de gênero” é depreciativo e tem como objetivo deslegitimar estudos históricos feitos nas áreas da sociologia, antropologia e ciências sociais: “Eles utilizam a palavra ideologia como uma ameaça e o que fazem é, de alguma maneira, esconder ou desconhecer todos os estudos de gênero, todo o processo histórico que houve de investigações porque eles o colocam como uma ideologia e ideologia entraria em outro plano, se afastaria do plano científico”.
Jimena Hernández, militante feminista e doutoranda de psicologia social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), apontou que a confusão fomenta a construção de um inimigo político comum entre os grupos conservadores.
“Eles usam a palavra ideologia como um [sinônimo para um] doutrinamento que estaria ocorrendo nas escolas de forma totalmente distorcida, falando que as professoras e professores que trabalham com esse tema estão querendo que as crianças mudem de sexo e sejam homossexuais; quando, na verdade, a proposta é sempre discutir violência, discriminação e identidade em um sentido mais amplo.”
Hernández observa que a emergência dos movimentos contra a “ideologia de gênero” está relacionada à ascensão do feminismo e de coletivos LGBTs a partir da década de 1990, quando começa a ser construir noções de direitos reprodutivos e sexuais na pauta de entidades internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU). “Na América Latina, a década de 1990 foi de crescimento reflexivo na questão dos direitos em um período pós-ditaduras, com o crescimento econômico, que também começava… Então, isso é um porquê de a América Latina ser tão importante para esses movimentos conservadores e do quanto eles estão investindo em todos esses movimentos de rua.”
No Brasil, a polêmica em torno do termo cresceu a partir da tramitação do Plano Nacional de Educação, em 2014, quando as bancadas religiosas conseguiram retirar as referências a gênero e sexualidade do texto que dita as diretrizes e metas da educação.
Como estratégia de mobilização, os grupos de direita contra a chamada “ideologia de gênero” apostam em abaixo-assinados virtuais para marcar posição.
Essas petições online são, em sua maioria, encampadas pela plataforma espanhola CitizenGo, organização não-governamental com foco em pautas ultra-conservadoras. Ela reúne os principais abaixo-assinados que, em alguns casos, chegaram a coletar cerca de 400 mil assinaturas.
Edição: Vanessa Martina Silva