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Amaro Augusto Dornelles*
O passado pode ajudar a entender a correlação de forças políticas do presente muito mais do que se poderia supor
Conhecer a história continua sendo o melhor antídoto para um povo não repetir erros já cometidos. A compreensão do passado ganha consistência quando são fartamente documentados. Melhor ainda quando os acontecimentos são redigidos com a isenção que se espera de um historiador, sem que se abra mão da melhor técnica narrativa, capaz de tecer o enredo como se fosse ficção. A realidade, pode superar a mais elaborada criação literária. Esta rara combinação de virtudes está em “Getúlio, 1945 – 1954, Da volta pela consagração popular ao suicídio”, o terceiro e último volume da biografia Vargas, escrita pelo jornalista e escritor cearense Lira Neto. Editado pela Companhia das Letras, o lançamento foi em 19 de agosto passado, 5 dias antes do aniversário dos 60 anos do suicídio de Getúlio Vargas.
O projeto de biografar o ‘Velho Caudilho’, iniciado com o primeiro volume – “1882 – 1930, Dos anos de formação à conquista do poder” (2012), seguido “1930 – 1945, Do governo provisório à ditadura do Estrado Novo (2013) – consumiu cinco anos de dedicação praticamente integral do autor: “Lembro que, na época, comprei um novo computador para a empreitada. Só que antes do final do trabalho ele se mostrou insuficiente para suportar o volume de dados e documentos digitalizados. Eram tantas fotos, filmes, arquivos sonoros, charges, cartazes, panfletos, cópias e recordes de jornais e revistas, bilhetes, telegramas, memorandos, ofícios, inquéritos policiais militares, anais parlamentares, processos judiciais, teses acadêmicas e livros, que faltou memória.
O resultado deste emaranhado de informações é o relato envolvente de um jornalista preocupado em traçar o perfil desapaixonado do estadista que até hoje se mantém atual e polêmico. “Para o bem ou para o mal, Getúlio é o personagem político mais importante da história do Brasil” costuma dizer Lira Neto, ao deixar clara sua isenção em relação ao biografado. O último volume da trilogia começa em São Borja, onde Getúlio buscou exílio depois de 15 anos de poder no Palácio do Catete. Um apontamento de 1945 registra o estado de espírito dele, ao voltar para o Rio Grande: “Entrei para o governo por uma revolução, saí por uma quartelada.”
Imaginário coletivo
O legado de Vargas permanece até hoje, goste-se ou não. A começar pela questão legislação trabalhista, toda a regulamentação da relação capital e trabalho, assim como no seu projeto de desenvolvimento, com a criação de Petrobras, BNDES, Banco do Nordeste, Eletrobras, só para citar alguns exemplos:
– Agora, temos que ter como perspectiva – e foi com isso que me preocupei como biógrafo – a necessidade de fugir do maniqueísmo; de tentar vê-lo só por um lado positivo, ou só negativo, do ditador que perseguiu liberdades democráticas. Ele é fascinante exatamente por isso: porque ele é isso e é aquilo. Qualquer tentativa de analisá-lo por um único viés vai cair no pecado original daqueles que simplesmente o amam ou o odeiam”, sustenta o biógrafo jornalista.
Getúlio é identificado como ditador, violento, responsável pelo fechamento do Congresso. Mas também como o homem que exerceu um papel de protagonista na invenção do Brasil moderno. Tais facetas fascinam quem conhece sua história; um homem que caiu em 1945, como ditador, e teve forças para voltar em 1950, eleito pelo voto popular, na condição de grande líder de massas: “A forma como ele escolheu para passar à história, dando fim à própria vida, ajudou a consolidar ainda mais a sua permanência no imaginário coletivo”, diz o autor.
Clima histórico
A grande contribuição de Lira Neto para a compreensão do fenômeno Getúlio Dornelles Vargas é o resgate da correspondência – inédita – mantida com a filha Alzira, que continuou a morar no Rio de Janeiro depois de o pai ser deposto. Para o jornalista, a primogênita se tornou uma espécie de embaixatriz do getulismo na capital federal, mantendo o pai informado sobre os bastidores do governo Dutra e ao mesmo tempo ajudando-o a manter as rédeas do Partido Trabalhista Brasileiro, PTB. Procurado pela imprensa – ou mesmo por correligionários – para falar sobre sua volta à política, Getúlio sempre desconversava. Dizia estar disposto a permanecer calado até as eleições, para não aumentar a confusão já existente.
Um ano depois, em 46, no entanto, o ex-ditador voltaria ao Rio de Janeiro nos braços do povo, que votou maciçamente em seu nome na eleição para o Senado. Era o primeiro movimento para a retomada do poder. A partir do amplo ‘arsenal de informações’ coletadas, o autor vai reproduzindo o clima histórico do País ano após ano, transportando o leitor para o clima político de então. Foi só em 1949, com a sagacidade que se tornou sua marca registrada, que Getúlio deixou transparecer a possibilidade de voltar ao Palácio do Catete. A partir daí o movimento “queremista” recomeçou a ecoar por todo Brasil, exigindo a volta do “Pai dos Pobres” à presidência.
O retorno ao Catete, com a consagradora votação alcançada na eleição de 1950, foi o marco inicial de um dos períodos mais conturbados da vida política nacional. A oposição visceral da União Democrática Nacional, UDN, e da imprensa – liderada por Carlos Lacerda – combateu todas as iniciativas populares do segundo governo Vargas. E também as nacionalistas. Em 3 de outubro de 1953, por exemplo, foi criada a Petrobrás, depois de 22 meses de tramitação no Congresso.
“Monstruosidades”
Como sempre acontecia, “Última Hora” foi o único jornal a dar destaque positivo ao fato na primeira página. Os demais veículos de imprensa deram a notícia em espaços reduzidos em páginas internas. Ao contrário dos editoriais e comentários assinados, todos contra a Petrobras – geralmente ácidos e irônicos – que ganhavam destaque. No seu “Diário da Noite”, Assis Chateaubriand, rotulou a abertura daquela que se tornaria a maior empresa brasileira de todos os tempos como “Capricho Caro”, reprovando a opção brasileira pelo monopólio estatal do petróleo.
No artigo, Chatô lembrava que os governos de Estados Unidos e Canadá jamais haviam cedido à tentação de nacionalizar a pesquisa ou a indústria de petróleo. “Se essa lição parte das duas nações melhor administradas da terra”, raciocinava ele, “por que vamos adotar aqui um sistema peculiar a xenófobos de países inferiores?” Já o “Correio da Manhã” taxou a criação da Petrobrás como aventura de “nacionalistas rasteiros”, defensores de “monstruosidades” como monopólio estatal petrolífero.
Os Diários Associados deram espaço para o deputado Plínio Pompeu (UDN) ‘cometer’ uma análise primorosa: ”A Petrobrás é um convite para que se retirem do Brasil os que colaboram conosco”, sustentava o parlamentar, dizendo que a culpa era do governo Vargas, covarde e incapaz de resistir à onda comunista. Do alto de sua indignação, o udenista previu que a experiência – fruto de um “nacionalismo tacanho” – fracassaria dentro de um ano, no máximo.
Competentes e nacionalistas
Com a autoridade de quem mergulhou de corpo e alma durante meia década na vida do mais controverso político deste país, Lira Neto ressalta que, depois de governar com mão de ferro o Brasil durante o Estado Novo – perseguindo adversários, imprensa e quem contrariasse seus planos – de 1951 a 1954, Getúlio jamais utilizou-se da força para fazer valer sua vontade. E ressalta que o segundo governo se deu sob o estado democrático, com Congresso funcionando e imprensa livre para criticar. Seu ministério foi de coalizão – uma espécie de pacto de governabilidade como se diz hoje – trazendo até um representante da arquirrival UDN, para ocupar o Ministério da Agricultura.
Assim como hoje, as pressões contra o governo eram múltiplas. Demonstrando mais uma vez a astúcia que se tornou marca de sua política, Vargas montou uma equipe especial para assessorá-lo. No primeiro dia de seu mandato, convocou o economista baiano Rômulo de Almeida – diretor da Confederação Nacional da Indústria – e o incumbiu de uma importante tarefa, a ser cumprida longe da imprensa: compor uma Assessoria Econômica, ligada diretamente à secretaria da presidência, para elaborar estudos e projetos de infraestrutura em áreas consideradas estratégicas, como energia, transporte e industrialização.
No livro, o próprio Rômulo de Almeida – que recebeu carta branca do chefe para selecionar auxiliares em função da competência técnica, desde que fossem nacionalistas – conta que “quase ninguém” sabia da existência da Assessoria Econômica.
Ministério dos tubarões
– Era o chamado Ministério dos Tubarões, por reunir representantes dos empresários, banqueiros e usineiros, só peixe graúdo. Eles tinham uma sala no primeiro piso do Catete e trabalham livres de qualquer tipo de pressão político,militar ou o que fosse. Foi desse grupo que saíram todos os projetos de desenvolvimento daquele período, como Petrobrás, Eletrobrás, BNDES, Banco do Nordeste.
O tempo passava e aposição não dava tréguas. Comandada por Carlos Lacerda, a imprensa espetacularizava denúncias reais e forjadas, mantendo o governo sempre em cheque. Até chegar a hora em que a pressão se tornou irresistível: era o ‘mar de lama’ que transbordava no noticiário político e se transformava no assunto de todo mundo. Pelo que se constata, mesmo com toda evolução do aparato tecnológico, a velha mídia não muda.
Até hoje envolto em uma aura de mistério, o atentado a Lacerda é apresentado em múltiplas versões. Inclusive uma segundo a qual o próprio jornalista confessa não ter entregue sua arma à perícia por temer que dela tivesse partido o tiro no militar, acidentalmente. Acuado pela eminência de um golpe militar, Getúlio chegou a esboçar uma resistência, mas preferiu o tiro no coração à renúncia.
Peitando general
Segundo Lira Neto, a resistência ao golpe – “sim, golpe, pois Vargas foi eleito pelo voto democrático e governou como o Congresso” – suscita dúvidas até hoje. Lembra que há interpretações – como a da própria filha, Alzira, seu braço direito – sobre uma possível resistência. Ela acreditava que o pai tinha todas as condições objetivas, militares, de resistir ao cerco de brigadeiros, almirantes, e generais. O trio havia assinado os 3 famosos manifestos exigindo a renúncia. A Vila Militar ainda não havia aderido ao golpe.
Na célebre reunião que antecedeu o suicídio de Getúlio Vargas , Alzira irrompeu na sala onde o ministério discutia a conjuntura política com o presidente. Depois de bater na mesa, a moça peitou o general Zenóbio, ministro da Guerra, propondo não entregar os pontos diante das adversidades. E perguntou à queima-roupa:
-E a Vila Militar? Alguém faz uma revolução, ou dá um golpe, sem a Vila Militar? Pois nós estamos prontos para responder à bala! Meus informantes dizem que a Vila Militar está como o presidente.
Lira Neto lembra que Alzira Vargas escreveu um livro – Getúlio Vargas,meu pai” – mas deixou de fora outras notas destinadas ao segundo volume, que ficaram inéditos. Foi nelas que o autor encontrou, com impressionante riqueza de detalhes, informações sobre o que aconteceu até a crise final:” Alzira diz que os Vargas estavam armados. Ela tinha um revólver na bolsa, esperando que os militares viessem tirar Getúlio do Palácio.
Cansado e enojado
A carta-testamento de Getúlio Vargas permite mais de uma leitura. Maciel Filho, o secretário particular que a datilografou – o chefe não sabia usar a máquina de datilografia – declarou não entender aquilo como carta de um suicida. Mais tarde, quando foi cobrado pela família sobre o motivo de não alertar ninguém, disse achar que fosse uma carta de resistência, não de suicídio. Se você ler a carta-testamento na perspectiva de alguém que está disposto a morrer com a arma na mão, ela tem esse sentido.
Para o Maciel, o documento era o testemunho de um homem disposto a morrer lutando. Mas Getúlio escolheu poupar os outros e disse, textualmente, que “Se algum sangue for derramado, será o de um homem cansado e enojado de tudo isso”.
Equação troca sinais
Em geral, o senso comum costuma entende o suicídio a um ato de desespero ou covardia. Para o Lira, naquele momento, o ato de Getúlio não correspondia a nenhum dos dois. Era, na verdade, um ato político, calculado friamente, do qual ele sabia da eloquência, do significado e dos efeitos sobre a crise política. Ele sabia que o gesto seria tão forte, com efeitos tão intensos, que seus adversários teriam que partir para a defensiva.
– Curiosamente, a derrota naquele momento – sua morte – significou uma vitória. Ele conseguiu trocar os sinais de uma equação política que já parecia resolvida: quem era vitorioso passou a ser derrotado, e o quase certo derrotado foi o grande vitorioso, não só para aquele momento, mas para a própria história.
FH e o “Fim da Era Vargas”
Já estamos no terceiro milênio, a Petrobras é uma das maiores empresas do setor no mundo – além de dispor da tecnologia mais avançada para prospecção de petróleo – mas ainda tem muita gente contra. A começar pelo PSDB. Eleito no final de 1994, Fernando Henrique Cardoso fez um discurso histórico e inflamado no Senado (o último como titular do cargo) chamado “O Fim da Era Vargas”. À época, o líder tucano prometia “acertar contas com o passado” e promover um futuro de desenvolvimento sem as amarras impostas pelo “modelo de desenvolvimento autárquico e seu Estado intervencionista” imposto ao Brasil pelo presidente Getúlio Vargas.
Dito, mas não feito. Mas bem que tentaram. Em 1998, para lembrar um caso emblemático, o governo FHC impediu a Petrobras, de obter empréstimos no exterior e de emitir debêntures para a obtenção de recursos para novos investimentos. Ao mesmo tempo, criou o Repetro – regime aduaneiro especial – concedendo isenção fiscal a empresas estrangeiras que importassem equipamentos de pesquisa e lavra de petróleo, sem a devida contrapartida para as empresas nacionais. Com isso, cinco mil empresas brasileiras fornecedoras de equipamentos para a Petrobras quebraram, provocando desemprego e perda de tecnologia nacional.
Padrão PSDB
Em 2001, com a desculpa dos desafios trazidos pela internacionalização da marca Petrobras, a diretoria chegou a anunciar um projeto de mudança de nome para Petrobrax. Seria o primeiro passo para uma futura privatização O plano fez água e FH foi obrigado a voltar atrás diante do desgaste político que medida causou. Mas os peessedebistas são persistentes. Se não dá para vender a Petrobras, eles se contentam em “desbastá-la”.
No programa de governo do tucano Aécio Neves a proposta é rediscutir o modelo de partilha para a exploração do pré-sal adotado por Dilma Rousseff, retomando as concessões da era FHC. O modelo de concessões dá ao setor privado o direito de exploração dos campos de petróleo. O governo é remunerado apenas pelos royalties. No sistema atual – em vigor desde 2010 – a produção é dividida entre o consórcio e a União. Vence o leilão quem oferece a maior parcela da produção ao governo.
*Amaro Dornelles é do núcleo de colaboradores de Diálogos do Su;
Serviço
Título original: Getúlio 3 (1945-1954)
Páginas: 464
Formato: 16.00 x 23.00 cm
Peso: 0.64500 kg
ISBN: 9788535924701
Selo: Companhia das Letras
Custo: R$ 49,50
E-Book: R$ 29,90