O golpe de Estado a que foi submetido o povo boliviano, por meio da pressão das Forças Armadas para que o presidente Evo Morales e seu alto escalão renunciasse ao governo, expõe o avanço acelerado das milícias religiosas conservadores na América Latina e o racismo delas contra os povos originários indígenas e os negros latinos.
Qualquer paralelo com o momento vivido atualmente no Brasil, com ataques a templos de religiões de matriz africana e perseguição aos povos indígenas que vem tendo seus espaços de culto incendiados e seus direitos sociais vilipendiados, não é mera coincidência. Trata-se de uma ação articulada, e em violenta escalada, em todo o continente.
As cenas que se sucederam no roteiro de consumação do golpe militar na Bolívia — que ainda está em curso até o momento em que ficará mais nítido quem será o ditador a ocupar o comando do país — apontam que o ódio aos povos andinos é o combustível que faz mover a deposição de Evo.
Reprodução/ Twitter
Luis Fernando Camacho entra no palácio do governo e ora diante de uma bíblia
Além da imagem aberrante do opositor Fernando Camacho, líder da extrema-direita, de joelhos defronte a uma bíblia dentro do Palácio de Governo, relatos e vídeos publicados ainda dão conta de atos de incêndio contra a bandeira Whipala, símbolo das nações originárias, os quíchuas e os aimarás, para os quais tal representação é a expressão do pensamento filosófico andino.
O golpe, que tenta se justificar com base em ilações de fraudes no percentual da vantagem obtida por Morales no primeiro turno das eleições bolivianas, é edificado, contudo, nesse sentimento de fundamentalismo religioso, de destruição de tradições e de “conversão” de todo um povo.
A ultradireita – que fortalece-se em todo mundo, vide o resultado das eleições espanholas deste final de semana com um crescimento enorme do ultraconservador Vox nas urnas – segue em marcha para dar respostas às recentes vitórias das forças de esquerda, como triunfo do kichnerismo e do lulismo na Argentina e no Brasil e a revolta do povo chileno nas ruas.
As Forças Armadas da Bolívia, prontamente apoiadas pelo governo Bolsonaro e pelos generais que compõem as fileiras do bolsonarismo (atual instrumento de atuação da ultradireita brasileira), iniciaram logo cedo a perseguição aos governistas, com prisões, violência, saques e ameaças veladas. Também estão, até a finalização desse texto, em perseguição a Evo, que tenta chegar até o México para receber lá asilo político.
Situação grave? Imaginemos, então, que o Brasil, possuidor das mesmas características de avanço do conservadorismo evangélico neopentecostal, e com a assunção a passos largos de um Estado miliciano, já tem tido que lidar com declarações dos filhos do presidente Jair Bolsonaro a favor de “um novo AI-5”.
Os fatos que se desenrolam na vizinhança atestam que tais discursos não são desarticulados. E geram uma reflexão importante de se responder: O que será de nós caso a tendência que emerge de forma concreta da Bolívia consolide-se também por aqui?
A aliança conservadora-religiosa-paramilitar já está formada e em atuação no Brasil, infestando a estrutura do Estado e vencendo algumas batalhas todos os dias.
Sem se mostrar com nitidez, e ainda às sombras do patrimonialismo que domina o Brasil, essa coalizão ultraconservadora já foi capaz de matar a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, de destruir templos de candomblé e umbanda na Baixada Fluminense numa combinação igreja-tráfico, de incentivar a morte da população LGBTQI+, de pregar a catequização violenta dos povos indígenas em pleno ano de 2019, de defenestrar o direito dos quilombolas ao território, de apostar nas queimadas na Amazônia, por meio do qual ataca os povos tradicionais da floresta, entre outros golpes diários.
Resta saber qual impacto o avanço de um grupo golpista de características idênticas na Bolívia terá sobre a nossa conjuntura política.
Terão coragem de escancarar ainda mais a disposição que possuem para o golpismo, o autoritarismo e o genocídio? Sairão definitivamente do armário em que tentam se esconder mesmo com a porta entreaberta?
É difícil saber, mas sem dúvida o incentivo à radicalização ultraconservadora nunca foi tão excitante para os cães que entram no cio ao menor sinal de coturnos por perto.
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*Yuri Silva é jornalista formado pelo Centro Universitário Jorge Amado – Unijorge, coordenador nacional do Coletivo de Entidades Negras (CEN) e membro do Conselho Editorial 4P. Foi repórter de Cidade, Política, Economia e outras editorias no jornal A Tarde durante quatro anos e meio, especializando-se na cobertura de temas relacionados à pauta negra e das religiões afro-brasileiras. Também trabalhou no jornal O Estado de S. Paulo, o Estadão, como correspondente na Bahia durante as eleições presidenciais e estaduais de 2018. Atualmente, atua como consultor na área de comunicação política, para meios digital e offline, além da paixão que mantém pela reportagem
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