Ontem à noite, fui a um centro espírita. Sou cristão sem religião, porém, gnóstico[1], místico e esotérico. A palestra falava sobre a necessidade de amar cada vez mais a todos e de não julgar. Devo dizer que um dos aspectos que mais me impressiona no movimento espírita é a sua compreensão da mensagem de amor e caridade deixada por Jesus, o chamado Cristo. Amor sublime, que devemos levar a todos, inclusive aqueles por quem não temos afinidade. Óbvio, mas necessário enfatizar esse amor: não se trata de amar quem nos odeia da mesma forma pela qual amamos nossos amores. Antes, amar quem nos odeia, conforme registrado em Lucas 6:27, indica, por exemplo, orar pelo nosso colega de trabalho desagregador, fazendo o bem a tal pessoa, sempre que a oportunidade se apresenta. Esse amor não tem nada de ingênuo: ele devolve em energia positiva, a energia densa e primitiva direcionada a nós, ajudando a dissipar a ignorância. Da mesma forma, a caridade não implica em dar esmolas em feriados religiosos. Caridade é doação e toda pessoa que doa deve agradecer à Divindade por tamanho privilégio. Quem doa, tem a oportunidade de evoluir e fomentar a evolução moral, ética e espiritual da sociedade. Sem dúvida, esse é o caminho de amor perfeito, para além de dogmas.
A palestra transcorreu como música clássica. A pessoa da palestrante envolveu os presentes com uma dinâmica repleta de exemplos práticos, nos quais, acredito, estamos totalmente envolvidos: o “amigo” fofoqueiro, a pessoa avarenta, o indivíduo esbanjador, o ser humano ingrato, maldoso… desumano! Queiramos ou não, somos assim em escalas variadas. Julgamos pela aparência, etnia, orientação sexual, identidade de gênero, espécie, capacidade física e cognitiva, e tudo o mais que nos permita o acesso àquele sentimento imbecil de superioridade cravejado em nossa alma. Sujeitos repletos de neuroses, produzimos uma sociedade psiquicamente infantil, vaidosa e egocêntrica. Sabendo disso, um punhado tenta melhorar a si e ao mundo e outros, legítimos “zumbis existenciais” – conceito da geriatra e gerontologista Ana Cláudia Quintana Arantes – se atolam na obscura madrugada das suas vidas, como os prisioneiros da caverna do mito de Platão. Todavia, uma última parcela, talvez a mais numerosa, siga pela trilha da iniquidade, praticando violências das mais toscas às mais sofisticadas, como dar uma marmita contendo alimento misturado com vidro a um imigrante colombiano, caso ocorrido no último sábado, dia 6, na cidade de Vilhena, Rondônia.
Aqui, chegamos a um ponto de virada na palestra: não devemos julgar. A frase, fagulha que me leva a escrever essas linhas, acende em ecos repetidos, chamas, as quais, em segundos, incendiaram o território da minha mente: “não devemos julgar, para não sermos julgados, segundo o Evangelho de Mateus, capítulo 7, versículos 1 e 2. Inclusive muitas pessoas estão julgando o presidente desse país. Isso é errado! Devemos orar, torcendo para que o governo dê certo. Concordo: não devemos julgar. Também concordo em orar pelo Brasil. Toda a ajuda espiritual é válida: orações de cristãos, tambores e cantos vindos dos nobres e consagrados terreiros de candomblé, vibrações das mesas brancas da umbanda, mantras de templos budistas e todas as emanações sagradas de qualquer centro religioso. Vale também o racionalismo ateu e a compreensão agnóstica da realidade. Enfim, tudo aquilo que de alguma forma contribua para a positividade é muito importante nesse momento. Mas, torcer para que dê certo a sordidez humana manifestada em nosso solo, na figura daquele que ocupa a Presidência da República?…
100 dias de uma aeronave em pleno Triângulo das Bermudas. Detalhe: o piloto já afirmou sua inaptidão para corrigir a rota. Continuaremos nessa região nebulosa, onde todo e qualquer instrumento de navegação é inútil? Onde a demissão do ministro da Educação, ao invés de representar um alívio, assinala a chegada de alguém ainda mais despreparado? Um ente abrupto e reducionista, afirmando que as instituições de Ensino Superior do Nordeste não devem ter em seus currículos Sociologia e Filosofia?
Carta Maior
O presidente Jair Bolsonaro
100 dias de perseguição às lutas democráticas. O fim da obrigatoriedade sindical, na prática, representa o avanço do plano de, progressivamente, estrangular os sindicatos, entidades responsáveis pelo combate às arbitrariedades cometidas em postos de trabalho. Lembremos que, graças aos sindicatos, temos hoje folgas e férias remuneradas, jornada de trabalho com carga horária definida, piso salarial, entre outras conquistas históricas.
100 dias de perseguição à liberdade de expressão. Jornalistas acostumados a atacar os governos Lula e Dilma, sem receber ameaças à sua integridade física – pelo contrário, as mídias nas quais trabalhavam recebiam vultosas quantias de repasses do Governo Federal, à época – veem hoje a si mesmos e a seus familiares em apuros: após veicular matéria sobre os 80 tiros disparados contra um automóvel, por uma blitz do Exército, que matou uma pessoa e deixou duas feridas no último domingo, dia 7, em Guadalupe, Zona Norte do Rio, o jornalista Carlos de Lannoy, da Rede Globo, foi ameaçado por Erik Procópio de Moura, militante de direita do Rio Grande do Norte e advogado de uma conhecida família de juristas de Natal. Erik, escreveu no Instagram de Lannoy: “Se você escolher falar merda e defender bandido, é escolha sua! Seu merda! Se for errado, paga com a vida! Mexeu com o exército, assinou sua sentença! Sua família vai pagar! Aguarde cartas!”
100 dias… completamos trezentos e sessenta e cinco dias da prisão política do maior presidente e candidato ao Nobel da Paz, Luiz Inácio Lula da Silva. O combate à fome e à miséria, a geração de empregos e a distribuição de renda foram abandonados. Temos 12,7 milhões de desempregados e 23,9 milhões de pessoas no mercado informal de trabalho. Estamos retornando ao Mapa da Fome e não vemos nenhum sinal de ofensiva para resolver esse e outros problemas.
Levantei a mão e pedi a palavra. Houve um breve silêncio e a pessoa da palestrante sinalizou positivamente, com a mão direita em minha direção. Fui breve e taxativo: “não vou torcer pra quem faz apologia ao pior crime que se pode cometer contra um ser humano: a tortura!” Ouvi, daí, por diante, que não devemos julgar, assim como Jesus nos ensinou, que o amor é o melhor caminho. Concordei, deixando o melhor para o final: “Assim como Jesus se indignou contra os vendilhões do templo, eu também me indigno contra a injustiça de quem homenageia torturadores e fala que mulheres têm que ganhar menos por que engravidam!” A palestra foi encerrada rapidamente, eu tomei a água habitualmente servida e vim embora para casa, onde já cheguei ligando meu velho computador para desenrolar em palavras os nós presos à garganta.
Eu deveria ter dito muito mais. Deveria ter falado sobre o exemplo de subversão de Jesus ao sistema ditatorial romano, andando com putas e cobradores de impostos. Deveria ter falado dos Evangelhos Gnósticos, que mostram o Mestre beijando Maria Madalena na boca. Jesus sem perder a notável espiritualidade, porém, mais humano. Jesus, que hoje se estivesse no Brasil, seria o primeiro a ir contra o mercado financeiro e o sistema religioso – o atual antro de vendilhões do templo (João 2:13-25). Entretanto, a hora já era adiantada, e eu não poderia tomar mais tempo, obrigando, com meu discurso, as pessoas presentes chegarem mais tarde em suas casas, em um município com altos níveis de violência.
100 dias de mentiras. Principalmente por conta delas, não vou torcer por esse governo. Antes, com a proximidade da Páscoa, devo dedicar ao mentiroso-mor dessa confraria de falsos cristãos, analfabetos políticos e farsantes sem escrúpulos, as mesmas palavras do Mestre, dirigidas aos líderes religiosos de seu tempo – aqueles que certamente hoje estariam fazendo sinal de arma com as mãos dentro de centros religiosos: “Vós sois do diabo, vosso pai / Ele foi homicida desde o princípio / e não permaneceu na verdade, / porque nele não há verdade: / quando ele mente, / fala do que lhe é próprio, / porque é mentiroso e pai da mentira.[2]
Armando Januário dos Santos – Sexólogo. Psicanalista em formação. Concluinte da graduação em Psicologia. Professor de Língua Inglesa. E-mail: armandopsicologia@yahoo.com.br
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[1] Gnosticismo é um termo originado da palavra grega gnosis, que significa conhecimento adquirido através das experiências místicas, transcendentais, diretamente obtidas através do autoconhecimento e do reconhecimento de que uma parcela do Divino está em cada um de nós. Os primeiros cristãos eram gnósticos e acreditavam na versão esotérica dos ensinamentos de Jesus. Esse movimento foi duramente perseguido pela Igreja Católica e quase extinto.
[2] A Bíblia de Jerusalém.