Cinco meses de Bolsonaro no poder. Sem surpresas, desastre atrás de desastre e a exaltação da não-política. Se aventam impeachment ou renúncia. Contudo, e mesmo que alguma das duas opções venha a ocorrer, não haverá um reconhecimento do fracasso — a autocrítica é uma exigência que só se faz à esquerda.
A política deste governo lembra uma cena de A Grande Beleza (2013), de Paolo Sorrentino, onde um baile de gente famosa, rica, clerical, numa celebração hedonista que nos afoga na superficialidade brega (e devota) dos que tudo possuem. A diferença, no caso da nossa realidade, é que não estamos em Roma, mas numa Sucupira em conexão Brasil-Miami, com os grandes salões brancos das Ana Hickmann, dos heróis constituídos de papel-moeda e de um morto-vivo como mestre de cerimônias.
Flick | Eduardo Aigner
Palácio do Planalto, sede do governo brasileiro
Mas, com a licença de Sorrentino, esqueçamos um pouco a festa em si, e nos concentremos nos preparativos, que começaram anos atrás, com o desmantelamento do governo Dilma e o país surpreendido por uma gravação que chocou parte da sociedade. Não nos referimos ao grampo reproduzido num ridículo jogral do Jornal Nacional, uma análise de conjuntura tornada crime político, uma gravação ilegal da presidenta da República feita por um juiz de primeira instância que a entregou qual mordomo à principal mídia do país. A gravação que queremos resgatar é outra, embora também contenha uma análise de conjuntura, além de uma confissão, ao explicar como se orquestra o Estado — às vezes de maneira criminosa, através de suas instituições —, e que, porém, não gerou a indignação daqueles que berram por ética em palestras e programas de tevê. Tratava-se do jogo de poder que culmina na articulação que preparou o Brasil nascido naquele maio de 2016, e cujos desdobramentos continuam em pleno processo de desenvolvimento: o famoso diálogo do Grande Acordo Nacional, entre Romero Jucá (então ministro do Planejamento e senador afastado) e Sérgio Machado (ex-presidente da Transpetro, subsidiária da Petrobras).
Relembre o diálogo:
Jucá chocou não pelo que disse — não era exatamente uma novidade — e sim pelo incrível didatismo. A Nova República estava nua: juízes, militares, políticos, empresários, todos foram descritos em suas posições de poder e influência na derrubada de um governo que era ruim, porém legítimo. A fala de Jucá era tão pornográfica, neste sentido de mapear todo o aparelhamento do Estado, que é difícil não rir de tamanha sinceridade ou imaginar o sonho dos antipetistas de que tudo aquilo tivesse saído da boca de um figurão do partido, alguém como José Dirceu, que por qualquer espirro já é preso novamente. De qualquer modo, o Grande Acordo Nacional foi tema restrito às bolhas politizadas, abafado pela imprensa hegemônica e ocultado do grande público. E se chegava aos papos de feira, ou às filas na padaria, era meio clandestino e/ou distorcido. Nesses lugares, o antipetismo berrado pela Jovem Pan, pelos programas femininos das nossas tardes e pelo datenismo cultural vigora até hoje, pleno, forte, violento.
Mas as grandes obras são sempre redescobertas. Eis que o Grande Acordo Nacional volta a nos assombrar, na forma da série O Mecanismo, criada para ressignificar o Acordo, e dar a ele o uso social que as elites queriam, que as hordas protobolsonaristas queriam.
Um diretor aclamado (José Padilha), contratado por uma plataforma de streaming americana (Netflix), entregaram o fan service mais ansiado pelo imaginário fascista: botar a fala de Jucá na boca do Lula. Um Lula ficcional, mostrado como um gangster ao estilo Al Capone tupiniquim, uma figura na medida do que esse imaginário queria.
O Grande Acordo Nacional, em sua versão Padilha, é A Grande Beleza de Sorrentino, o antipetismo hedonista, do champagne nas manifestações e dos camisas negras dos tempos em que Dilma, para tentar salvar seu governo, tentou fazer de Lula ministro da Casa Civil. As pessoas comentam a série nas ruas, se sentem esclarecidas através de uma escandalosa falsificação histórica. Sentado em seu trono, montado sobre seu ego, Padilha desdenha de quem o contesta, diz ser a única coisa que os petistas apontam como problema de sua série, fazendo ouvidos surdos às distorções históricas e até mesmo à pobreza e extremo simplismo da sua narrativa — que, novamente, está adequada ao público que pretende atingir.
A grande beleza, para Padilha, está nos heróis aventados por uma classe média violenta: é o “bom” policial que usa uma calibre 12 para que seu aprendiz estoure a cara de um traficante que pede para não estragar o enterro, é o juiz-batman que desvenda a origem do mal de um Brasil em crise, que, por fim, se mostra ética. Não importa se Padilha tenta corrigir seus erros e suas culpas não confessadas nas cenas dos capítulos seguintes, ou como tenta fazer nesta segunda temporada de O Mecanismo, com a mesma desfaçatez com a que tentou transformar o fascista Capitão Nascimento do primeiro Tropa de Elite no paladino dos direitos humanos que vimos na parte dois — aliás, se unirmos as duas caras do Capitão Nascimento, encontramos o arquétipo do herói policial que alenta o bolsonarismo.
Por mais que negue, o diretor sabe que sua obra é celebrada justamente pelos frequentadores das festas Brasil-Miami, os grã-finos que posam de liberais, mas que no fundo são tão idênticos aos ostentadores chefes milicianos que estes são seus cúmplices e aliados políticos, numa aliança que também agrega o nosso fundamentalismo religioso mais charlatão e os fazendeiros escravocratas.
Agora estamos cá, com esse imaginário louco, falso e irracional com o qual temos que lidar aqui no andar de baixo: o PT como o grande demônio da corrupção — embora todos digam que “o mecanismo envolve todos os partidos”, sem jamais admitir quem são os outros, algo que a própria série repete, também em sintonia com a ladainha do seu público —, e qualquer um que contesta essa visão acaba sendo taxado de comunista, petista, mortadela, burro, analfabeto, etc.
O Grande Acordo Nacional alcançou a arte através da versão de Padilha, para se legitimar no imaginário antipetista, como costumava fazer Stalin, reescrevendo a História para ela caber dentro de um projeto de poder. É uma versão canalha, como a de Reinaldo Azevedo, o sujeito que construiu sua fama abusando do termo “petralha”, de sua autoria, e agora tenta se erguer como inimigo do antipetismo e paladino de uma suposta civilidade política. Ambos são responsáveis diretos pelo nascimento disso que chamamos de bolsonarismo. Hoje, tentam recompor suas posições ideológicas acima da atual ruptura entre os setores governistas, acreditando que a dinâmica do mundo moderno permite ocultar o que antes era soberba, e agora se tornou vergonha. Contudo, sempre haverá os que não esquecem, e os que não perdoam. Um dia, a História que tentam falsificar, os cobrará, e rindo de suas caras, eventualmente.
Agora, maio de 2019, estamos entre os escombros do que já fomos um dia. Vivendo o absurdo político. Ao contrário do que se pensa, as instituições continuam funcionando normalmente. O problema é o que restou de nós. Vivemos um momento inédito, o qual podemos comentar com uma citação, possivelmente mal aplicada, de Game of Thrones, (assistiremos depois do hype, foi mal pessoal), que virou meme e tendência nas redes sociais: “já tivemos reis cruéis, e já tivemos reis idiotas, mas não sei se algum dia fomos amaldiçoados com um rei cruel e idiota”.
Talvez esta fala do personagem Tyrion não esteja exata, mas a direção é essa: o puro caldo do bolsonarismo é o idiotia cruel. A tal carta, compartilhada via Twitter pelo presidente, é reflexo disso. Não há qualquer elaboração ao estilo Jânio Quadros, ou Getúlio Vargas – que, inclusive, escreveram suas próprias cartas. A elaboração está na boca de outros, dos Jucá, dos Padilha, dos Reinaldos, das Mirians, dos Datenas.
Não de Bolsonaro, que nada mais é que a personificação de uma elite desvairada, ignorante, que passa a vida lamentando a sorte de ser brasileira, e foge para Miami como quem busca consolo em um bordel (pobres putas). Em nossa festa hedonista, feliz daquele que conquista a dupla nacionalidade europeia, um green card, um prêmio dado em algum salão de festas ianque.
Já que vamos de Roma a Westeros sem maiores cerimônias, lancemos mais uma inspiração ficcional, nosso morto-vivo: Jair, o Frankenstein com o que o antipetismo sempre sonhou no “qualquer coisa é melhor que o Lula e a Dilma”. Seus esquemas de corrupção tão ridiculamente simples e tradicionais, a tão conhecida (e de longa data) ligação com as milícias, suas declarações de bêbado de boteco glorificadas como “a voz da simplicidade do povo”, a conformação de um ministério cheio de personagens tão caricatas, como vilões de histórias em quadrinhos, até mesmo nos nomes pitorescos (Ônix, Damares, Vélez, Abraham), cujas ações são sua imagem e semelhança… É curioso como seu corpo e sua família reproduzem os crimes, as condutas e a psicopatia que nossa tosca elite sempre se esforçou em ver e apontar no PT, incluindo até as lendas dos filhos do ex-presidente.
E assim chegamos a um Brasil em meio a uma situação absolutamente caricata da festa romana de Sorrentino, que no nosso caso mais parece um roteiro para um sketch de Hermes e Renato, onde Frankenstein se tornou presidente e apareceu bebendo champanhe na festa de ano novo no salão da Ana Hickmann, e que começou sendo bem atendido, quando era conveniente aos anfitriões, até que passou a ser mais incômodo do que se esperava.
No fundo, o Grande Acordo Nacional — que nasceu com Jucá e Temer — é a “Grande Beleza” das nossas instituições, a Miami desvairada que atira nas nossas cabeças, nos oferece abacate para apartar a fome e mulheres aos gringos que quiserem nos visitar. O poder político e econômico nas mãos daqueles que odeiam o Brasil, mas que não podem ser tão ricos, cruéis e idiotas sem ele. A psicopatia e a irracionalidade como norma que rege as decisões do país.
No filme de Sorrentino, o protagonista vê um grupo de velhos ricaços fazendo um trenzinho na pista de dança, e diz a uma amiga, em tom de piada pastelão, que aquele é o trem mais belo do mundo, porque não vai a lugar nenhum. Depois, olha de novo para os fanfarrões e diz: “olhe para esta gente… esta é a minha vida, e ela não é nada”.
Pois o trenzinho dos ricaços brasileiros, os que celebram diariamente o banquete do bolsonarismo, talvez não seja tão belo, já que tem um rumo: a nossa comédia que é sempre tragédia. Olhemos para esta gente… isto é o que querem fazer do nosso país, e se tiverem sucesso, em breve, ele não será nada.
* Milagros Casas é historiadora e jornalista luso-brasileira residente em São Paulo.
** Victor Farinelli é jornalista brasileiro, correspondente internacional no Chile.