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Guatemala: uma enorme latrina classista e racista

Ilka Oliva Corado

Tradução:

Ilka Oliva Corado*

Ilka Oliva CoradoQualquer um dirá ao ler estas linhas que não é o momento de fixar-se em coisas pequenas, que há que dar consistência à luta porque o inimigo é grande, que racismo e o ódio de classe se irá resolvendo na marcha como parte da mudança social.

Seguramente, isso me ocorre sempre que escrevo sobre o sistema de classes, da dupla moral e da discriminação que nos infesta como povo, é que me digam que sou uma ressentida, que odeio aos que sim tiveram a oportunidade de viver uma infância feliz e tranquila e de ter ingressado numa universidade. Dirão, como sempre, que escrevo com o fígado e que devo ser racional não emocional. Dirão que aprenda a debater emitindo minhas opiniões alicerçadas em fundamentos. E claro, também rezarão uma missa. Ou talvez não digam nada, ou, talvez até digam: pobre louca de merda.

HPIM1232.JPGEste artigo, contudo, não é de conjecturas de leitura fácil nem muito menos para falar de mim. Desde 20 de maio, dia em que se realizou a marcha camponesa na capital guatemalteca, trago o desejo de escrever, mas deixei passar os dias precisamente para me acalmar e não escrever com o fígado. Sinto cólera, essa fúria milenar com que temos vividos os marginalizados durante séculos de exploração e humilhação. Porém, o que me sufoca mesmo é o desconsolo de saber que a Guatemala nunca deixará de ser uma latrina clasista e racista. Nunca.

Pra início de conversa, tentaram desqualificar a marcha por ser camponesa. Uns poucos cabeludos do movimento universitário, que conseguiu unir as públicas e as privadas, estiveram presentes, mas não teve a repercussão que os meios deram à marcha urbana do sábado (16). A desculpa foi a de que as revelações sobre corrupção na rede do instituto de seguridade social era a prioridade. E claro que é importantíssimo mas, o ponto tampouco é esse. Falo da marcha de 20 de maio que não ocorreu nos outros departamento como sucede regularmente, e como já foi há tempo a projeção é diferente. É como ver o roubo de jade em Zacapa e a mineração em La Puya nas cercanias da capital.

Alguns não estavam de acordo com esse movimento indígena por razões políticas e ideológicas, mas, curiosamente apoiaram as marchas urbanas e o tema das denúncias é o mesmo: a corrupção. Então?

Na Guatemala a questão da equidade fica no mero discurso de classe média. Foram à manifestação, tiraram fotografias com os camponeses que há séculos se manifestam solitários, como se fossem um cartão postal. Também saudaram os trabalhadores e proletaáios que marchavam em uníssono. Só que não querem a nenhum deles em postos de governo, não nos principais. Os povos milenares servem só como folklore. Querem que continuem carregando sobre as costas os desperdícios da classe média e da oligarquia. Querem para que deem a cara enquanto os outros recuam. Para que se queimem ao sol. Para que apodreçam em vida enquanto os meninos bonitos com seus privilégios vão às universidades privadas a cultivar seus neurônios. Nunca para fazer florescer suas consciências.

É. Em Guatemala jamais teremos um Nicolás Maduro de presidente (motorista de ônibus, proletário) nem muito menos a um Evo Morales (camponês dos povos originário) porque nos corrói o racismo, porque o ódio de classe nos divide, porque há quem se crê de sangue azul e por ter um diploma universitário também se julgam superiores em inteligência e conhecimento. O único verdadeiramente certo é que estão cagados.?Toda minha vida tenho sido cética com relação a qualquer iniciativa da classe media que inclua o tema consciência e equidade, porque pertenço ao galinheiro dos parias que essa mesma classe teima em menosprezar.  Contudo, para as recentes marchas sobre as ruas da capital quis dar o benefício da dúvida, quis acreditar que fosse possível uma mudança e que ela percebera o cheiro da exclusão que sofremos os “ninguém”  os “faz-tudo”, os “vende-tudo”, os “come-tudo”, Nos que, tontos alguns ou não, somos filhos da gran puta.

Com toda força de minha alma quiz acreditar que se emendariam, que finalmente sentiriam a dor alheia, que por fim nos fraternizaríamos, que a mudança aconteceria e seria profunda, a partir da repulsa à opressão. Pretendi que o “oxalá” se tornasse realidade. Pensei que esses retumbares de rios revoltos nos encheria de solidariedade e que abraçaríamos por igual todas as causas como um só coração, uma só luta: humanos todos. Mas como sempre ha sonhos inatingíveis  e o de ver uma Guatemala em equidade, livre de discriminação e ódio de classe é provavelmente um deles. E será assim até que de verdade surja a consciência e que todos nos enteremos de  que ninguém é mais importante que o outro.

Essa Guatemala que no papel é pluricultural, plurilingue  e multiétnica, concretamente não existe. Escrevo este artigo com minha impressão pessoal do que ví nos últimos dias. Gentes da capital, de universidades privadas com seus comentários racistas ditando cátedra aos camponeses de como devem se manifestar pacificamente. Para sua informação digo que os camponeses também se manifestam de forma pacífica, mas o governo com seus braços armados os reprime e a mídia vendida altera a versão dos fatos e voces a engolem sem mastigar, é outra paragem.

Que vocês tenham a sorte de se manifestar sem que o governo interfira diretamente com balas para contê-los, não significa que se isso ocorresse vocês teriam as mesmas prisões que os camponeses por dar a cara em defesa da causa. O mais seguro é que corram e se escondam em suas casas e nunca mais saiam em manifestação. Ao contrario de vocês, os camponeses sairão uma e outra vez como fazem há séculos. Essa é a diferença entre vocês e eles: a integridade e isso não se aprende nos salões de universidades. Dá pra ver que não são tão superiores como pensam?

Também li comentários nas redes sociais dos meninos bonitos da classe media utilizando maçãs para explicar pros estudantes das escolas públicas como se organizam as marchas. He, he. Alguns desses meninos bonitos apoiou as marchas dos estudantes quando o Ministério da Educação eliminou a carreira de Magistério? Eles também marcharam pacificamente e o governo reprimiu com a força de caceteies e balas. Não me fodam com isso de dizer que os instruídos fazem melhor. Ademais, foram esses jovens das escolas públicas o que nas décadas mais terríveis do Confronto Armado Interno deram a cara e manifestaram, enquanto os meninos bonitos viam a vida passar pelas janelas das universidades privadas, sem imiscuir-se para não sujar os sapatos e para não colocar em risco sua comodidade.

Por acaso acreditam que por manifestar contra a corrupção são mais dignos dos que deram a cara pela vida dos massacrados e os torturados e as violadas” Por favor, estão cagados. Não pretendo desestimar as marchas atuais mas tampouco ficarei calada vendo como vocês atacam aos que durante séculos deram a vida por todos. Por marcharem, agora se sentem galinhos de briga e galinhas inglesas?  Vocês ainda não tem consciência do real. O que estão vivendo é apenas o chapisco, nada mais. Por algo se começa, é certo, que hoje é a corrupção porque doeu no próprio bolso, mas para quando será as causas que curtem a alma, as verdadeira? O esgoto já fez transbordar a fossa e as águas negras já nos chegam ao pescoço, Quando seremos capazes de mudar o sistema de raiz, no mais profundo do pessoal e coletivamente?

Vê-se uma enxurrada nas redes sociais em que a classe média já nomeia os pares para os postos de governo e em nenhuma lista aparecem indígenas. Quando se pergunta por que, respondem que não há indígenas capazes. E suas listas são exclusivas de egressos de universidades privadas. Então, pra onde foi o “somos povo”? Como sempre, os guatemaltecos, na hora de repartir o bolo todos querem a fatia maior. O divisionismo, picaretagem, o protagonismo e o oportunismo. Algo como quem diz: que marchem os camponeses, os operários e os proletários mas , na hora das nomeações só nós, os das fotografias, os dos privilégios. Quando Guatemala conseguirá sair do atoleiro em que nos mesmos nos metemos?

Percebem? as mudanças tem que começar por cada um de nós mesmos. O genocida Otto Perez Molina ainda não renunciou e voces já querem repartir o botim. Ainda não se tornou efetiva a reforma da Lei Eleitoral  dos Partidos Políticos e vocês já jogam na loteria, para que continue a corrupção só que em outras mãos, em outras contas bancárias. Sempre n classe media e sempre se rendendo à oligarquia. Pretendem ser os protagonistas de uma mudança pela qual os camponeses vem lutando e apanhando, levando tiro, passando fome.

As mudanças na Guatemala ocorrerão quando aprendamos que os seres humanos temos o mesmo valor, que todas as vozes contam, que toda luta é necessária e que a solidariedade e a união são essenciais para avançar. Que cada um pode contribuir com seu conhecimento e experiência. Que tem o mesmo valor uma profissão que um ofício. Que vale tanto a voz de um vendedor de tubaína que a de um diplomado. Que tem o mesmo sangue uma trabalhadora do sexo dos bares da boca que uma doutora de um hospital privado. Que as mãos de um pedreiro são tão necessárias com as de um artista plástico e um pianista.

Quando deixemos a vaidade, a arrogância, a apatia e o sistema de casta para irmanarmos como humanos e caminhar todos em direção a um mesmo objetivo, humildes e comprometidos, então, talvez, na Guatemala exista uma oportunidade para que volte a florescer. Não antes. Não assim como estamos agora, peste.

Não se consegue nenhuma revolução sem a consciência que dói e que mata. Aqui não significa que seja mais capaz um indígena que um ladino, nem vice-versa. Aqui se trata da discriminação. Aqui se trata de que todos exalaremos o mesmo fedor quando na tumba. Pra que nos serve a avareza e a vaidade? Pra merda nenhuma.

Escrever este artigo me doeu a alma, em minha raiz camponesa, de trabalhadora e proletária. Bom, vamos pra diante porque o que temos que enfrentar é mais que a corrupção. A ver se é certo que podemos e que amamos Guatemala e que choramos de alegria e de esperança e que a mudança sim virá. A mudança está em nós mesmos. Mudar o sistema significa mudar a nós mesmos. Atacar a corrupção significa deixar a avareza própria e de classe. Pensar em Guatemala é renunciam ao racismo e tornar realidade a inclusão. Do contrário continuaremos sendo uma enorme latrina de racismo e ódio de classe que há séculos nos atormenta.

Com amor do bom para os párias de sempre curtidos de tanto apanhar.

Nota: em nenhum momento pretendo generalizar. Há letrados que honram o título, ha gente de classe média que sim é íntegra, há indígenas que sería melhor mete-lo em prisão perpétua por traição a seu povo.

*Colaboradora de Diálogos do Sul, do território estadunidense


As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul do Global.

Ilka Oliva Corado Nasceu em Comapa, Jutiapa, Guatemala. É imigrante indocumentada em Chicago com mestrado em discriminação e racismo, é escritora e poetisa

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