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"Estive na Ucrânia e vou esclarecer as mentiras que a imprensa tem contado para você"

Estamos sendo enganados: com ou sem conflito, o pior não está por vir na região de Donbass porque já está aqui há anos
Julio Zamarrón
El Salto
Madri

Tradução:

Nota da edição: este artigo, publicado em 17 de fevereiro de 2022, é assinado por dois jornalistas que viajaram e cobriram, entre 2015 e 2019, o conflito ucraniano na região de Donbass. Diante da desinformação e do silêncio de outras vozes, este artigo procura transmitir as abordagens invisíveis e as más práticas informativas que envolvem o conflito.

Nove anos após a eclosão do conflito no Donbass ucraniano, estamos de volta à estaca zero. Como jornalistas e testemunhas no terreno da guerra na Ucrânia, estamos particularmente aflitos com este eterno retorno ao que antes era uma tragédia e agora é uma farsa tão grotesca que é muito difícil de engolir — e temos engolido muita coisa quando se trata de política internacional por aqui. A guerra de hoje não pode ser compreendida sem compreender o mapa político ucraniano e como ele responde às divisões linguísticas, religiosas e culturais que remontam a séculos atrás. 

Estamos sendo enganados: com ou sem conflito, o pior não está por vir na região de Donbass porque já está aqui há anos

Julio Zamarrón
Guarda noturno, Donbass 2015. Desde 2014, Kiev vem bombardeando e atacando diariamente as posições das Repúblicas Populares

O conflito não pode ser simplificado para uma questão de gás, rublos e tanques, pois o que está em jogo é, em grande parte, o controle de uma narrativa. E, infelizmente, para os nostálgicos como os autores, também não pode mais ser resumido com a lógica da Guerra Fria, mesmo sendo derivada diretamente dela.

Não podemos pedir ao público que aborde a política internacional quando ela é explicada como conflitos descartáveis (alguém se lembra dos afegãos? E do que aconteceu com o Cazaquistão?), mas é legítimo pedir padrões mais elevados ao jornalismo mainstream e à classe política que nos arrasta para uma fragata de guerra.

Talvez estejamos pedindo muito: Boris Johnson vai a Kiev para encobrir suas festas malucas em Downing Street, enquanto sua ministra das relações exteriores não consegue situar a cidade russa de Rostov no mapa. 

Biden tem problemas de memória e quando ele quer dizer Afeganistão, diz Ucrânia, desculpe, Iraque, porque que diferença isso faz? Enquanto isso, Pedro Sánchez tira fotos dele mesmo telefonando para a Otan e oferecendo a base militar naval de Rota, e navios de guerra, mas, como no filme espanhol de comédia Welcome Mr Marshall, os americanos passam por ele novamente e o excluem da rodada de negociações. O pior de tudo é que nada disso nos surpreende mais. 

Quando se trata de manipulação de informações, também não estamos em melhor situação. Quem já cobriu conflitos armados sabe que as guerras não são feitas por histórias individuais, mas devem estar situadas na história e na análise geopolítica; não há nada mais coletivo do que guerras. 

No entanto, é muito mais eficaz narrar um conflito através de testemunhos, lágrimas, dor e empatia. O preocupante é que só temos as vozes de uma parte do conflito, aquelas que querem ampliar, porque a menos que você traga à tona histórias de vidas destroçadas pelo exílio e pela morte, ninguém vai aceitar o envio de navios de guerra para um país a cinco mil quilômetros de distância onde você não perdeu absolutamente nada.

O problema vem quando nenhuma dessas histórias se mantém: em apenas duas semanas, vimos El Diario retificar uma história na qual entrevistou uma ativista ucraniano que no fim era neta de um criminoso de guerra da Waffen SS-Galitzia, a divisão ultra-nacionalista ucraniana que implantou políticas nazistas no território. 

El Mundo também entrevistou Ivan Vovk, porta-voz da Associação Patriótica de Ucranianos na Espanha, cujas redes sociais o mostraram fazendo continência nazista cercado pela parafernália militar alemã; e a Televisión Española entrevistou mulheres idosas em Kharkov como “voluntárias civis”: uma pena que as bandeiras de ultra-direita e emblemas nazistas do Batalhão Azov, o destacamento militar fascista, para o qual as senhoras abastadas costuravam redes de camuflagem, tenham caído.

Quem conhece outros lados do conflito também têm histórias. A história do professor em Kirovsk que ficou sem escola. Das crianças deixadas para se defenderem em hospitais sem futuro. Das babushkas que alimentaram as cozinhas populares. A dos voluntários do “não passarão” de toda a Europa. 

Mas não é nossa intenção romantizar uma guerra: somente imbecis e fascistas, como Filippo Tommaso Marinetti, que disse que a guerra é bela, podem idealizá-la. Nossa intenção é pedir às pessoas que não caiam nos erros de quase uma década atrás para normalizar a agressão e a dor de um povo, para banalizar um conflito que vem grassando na Europa há uma década.

Orfãos de Gorlovka, 2017. Hospitais, orfanatos e população civil localizada em vilarejos próximos à linha de frente têm sido sistematicamente bombardeados pelo exército ucraniano desde 2014. Foto: Julio Zamarron 

Estamos sendo enganados: uma parte significativa da população ucraniana que mais ativamente apoia a intervenção defendida por Washington, Londres e Varsóvia pertence a partidos e movimentos ultra-liberais, de extrema-direita ou neonazistas. Estes grupos foram financiados e cresceram no calor do “soft power” até provocar uma explosão social de enorme violência no país em 2013, na Praça Maidan. Convidamos você, pelo menos, a desconfiar de “democratas” e “patriotas” de origem obscura.

Eles estão mentindo para nós: os maus não são tão maus e os bons não são tão irrepreensíveis. Não queremos parecer equidistantes, nem queremos parecer um panfleto pró-Kremlin-Pequim, mas temos que reconhecer que a russofobia está embutida no coração da União Europeia. É até anterior à União Soviética: as crônicas de Luca de Tena, em Moscou, no início do século 20 já estavam carregadas de ódio a todas as coisas russas; e depois Vallejo Nájera, o Menguele espanhol, passou a estudar o gene vermelho, apontando para as mulheres russas com “fúria e repulsa”, por exemplo. 

A desumanização da russividade (incluindo a população etnicamente maioritária russa em Donbass e na Crimea, com toda a diversidade de posições dentro dela) levou a estereótipos xenófobos e excludentes: eles são mafiosos e opacos; elas, sexualizadas e passivas. Este silenciamento ativo de suas identidades é injusto, para dizer o mínimo. 

Na questão política, a lacuna linguística e cultural limita as informações que operam a partir destes territórios: poucas pessoas sabem que Donbass foi o coração de uma milícia popular e de um projeto político socialista destruído por seus próprios aliados. Também não nos deram permissão para contá-lo. 

Estamos sendo enganados: não se trata — somente — de gasodutos, oligarcas, clãs e investimentos, ou escudos de mísseis. Trata-se de dominar as narrativas em torno do controle de uma região (o coração continental, como diria McKinder) e o que ela significa simbolicamente em nossa história. 

Pensemos nisso: a Ucrânia, com sua grívnia no marasmo e à beira da recessão, pode pagar uma guerra? Quem quereria um parceiro europeu assim? Da mesma forma, o que Moscou ganharia ao confrontar o Ocidente quando toda sua artilharia diplomática é direcionada para a China? 

Vamos nos perguntar que interesses há em reavivar a narrativa de um ocidente democratizador (através do imperialismo brando) e de uma Otan forte em meio ao declínio da hegemonia euro-atlântica. É claro que, pelo menos em Donbass, dói dizer isso, mas eles estavam melhor com Trump.

dg

Posições de primeira linha em 2016. O Parlamento Europeu fez ouvidos moucos às reivindicações relativas às violações dos direitos humanos em Donbass, feitas por vários voluntários e eurodeputados anos mais tarde. Foto: Julio Zamarrón

Estamos sendo enganados: havendo ou não conflito, o pior ainda não está por vir porque já está aqui há anos. Por trás do alarmismo, por trás dessas imagens de tanques na neve, há pessoas. Milhares de mortos. Seis milhões de refugiados. As populações condenadas a esperar por uma restauração pós-conflito que nunca chega. Um estado fracassado. Uma economia submersa entre clãs e oligarcas de todas as faixas que sufoca a população civil, especialmente as mulheres, que se tornaram a carne da indústria do sexo: mas essa é outra velha guerra.

Estamos sendo enganados: a cobertura de um conflito não pode ser deixada nas mãos do apresentador Risto Mejide e para os funcionários de quatro agências internacionais. Há analistas maravilhosos, como Rafael Poch, como Inna Efigenoviena, como Pedro G. Bilbao, que fornecem dados e conhecimentos para enquadrar esta guerra fora da narrativa confortável, a de Biden, a democracia telecomandada e as fragatas. Compartilhemos o trabalho deles. E, por favor, amigos à esquerda: parem de convidar Pedro Baños e, a partir de agora, convidem algumas mulheres. Somos numerosas.

A máquina de propaganda faz sua parte, os interesses geopolíticos fazem a sua, incluindo aquele pequeno barco que custou tão caro à legitimidade deste estado. Mas gostaríamos, a partir do jornalismo crítico, do ativismo, ou simplesmente da curiosidade, de deter esta escalada de mentiras e manipulações e de ser críticos desta abordagem. 

Porque hoje é novamente a Ucrânia, mas sabemos que em outros momentos são as verdades mais próximas que se afogam na intoxicação de informação e na economia da atenção. Quem esteve lá onde não chegou ninguém, nem a OSCE, nem os corredores humanitários, nem a ajuda militar, nem a ajuda civil, onde não chegou a paz nem as tréguas, também queremos contar a história.

Tradução: Vanessa Martina Silva, Diálogos do Sul


As opiniões expressas nesse artigo não refletem, necessariamente, a opinião da Diálogos do Sul

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